Por Luciana Simmonds de Almeida -
O aumento contínuo de fraudes no ambiente das criptomoedas escancara que o Direito Penal possui dificuldades estruturais para seguir o desenvolvimento das tecnologias, deixando, por vezes, o bem jurídico desamparado.
A tecnologia blockchain (blocos de dados em corrente que registram informações de forma imutável) já se tornou uma realidade cotidiana no Brasil, com seu uso sendo aplicado em instituições financeiras , no comércio de energia , registro em cartório , na área da saúde e em setores inovadores como tokens não fungíveis (NFTs), entre outros .
Na área da inovação financeira, um dos usos mais recorrentes é para a implementação de aplicativos financeiros construídos com a tecnologia blockchain, conhecidos como finanças descentralizadas — ou DeFi.
Esse ecossistema financeiro permite que as pessoas tenham controle de seus ativos e informações e que valores sejam transferidos sem a necessidade de intermediários, como bancos e outras instituições financeiras. A rede é aberta e global, permitindo o acesso igualitário a todos.
Os aplicativos são construídos em blockchain e a maioria utiliza código aberto, ou seja, qualquer desenvolvedor pode visualizar e construir (ou copiar) nos próprios aplicativos, acelerando a inovação e adicionando atualizações como se fossem "pecinhas de Lego".
A DeFi utiliza o smart contract, que possibilita a construção de cláusulas auto-executáveis. Como se diz, "o papel aceita tudo". A tecnologia segue o mesmo caminho e não questiona se as cláusulas são abusivas ou mal intencionadas, desde que seja viável programá-las. O contrato não fará análise moral ou jurídica de suas obrigações.
Vislumbra-se, então, um primeiro problema: a possibilidade de criação de smart contracts que, mais cedo ou mais tarde, vão beneficiar seus desenvolvedores em prejuízo de investidores pouco atentos.
Diversas são as fraudes conhecidas no mercado tradicional, e no mercado de cripto não seria diferente. Além das fraudes já conhecidas no mercado financeiro, os investidores que não se atentarem ao projeto antes de investirem seus ativos podem ser vítimas de golpes, como exit scam— em que os fundos ficam bloqueados no smart contract para, posteriormente, serem subtraídos pelos desenvolvedores — ou rug pull—, em que os desenvolvedores possuem uma quantidade considerável de tokens do projeto e , no momento certo, despejam os tokens no mercado, sacando seu valor e derrubando o preço a zero.
A liberdade trazida pela DeFi de transacionar seus ativos para qualquer contrato tem, por outro lado, a responsabilidade pessoal do investidor em realizar seus estudos e análises antes de mergulhar nessas águas. A descentralização traz em seu núcleo a impossibilidade de recorrer a um responsável para solicitar o estorno ou cancelamento de uma transação, como se faria nas finanças tradicionais.
Para evitar a exposição a projetos maliciosos, é importante conhecer qual o propósito do projeto, analisar seu código, verificar o posicionamento de auditorias independentes, saber sempre quem são os criadores e como os tokens foram distribuídos.
As questões técnicas podem assustar o investidor despreparado, mas isso mostra o risco inerente à descentralização. Por outro lado, a comunidade busca ajudar o crescimento responsável desse setor, tendo no mercado diversas empresas de auditoria independentes que acompanham os projetos e os classificam, inclusive apontando irregularidades e sinais de alerta.
Ainda não existe uma regulamentação específica para os ativos digitais, tendo as normas brasileiras os reconhecido como "bens e direitos", além de o Banco Central declarar que não se tratam de moeda, enquanto a Comissão de Valores Mobiliários não os considera como valores mobiliários.
A falta de definição jurídica assertiva, não sendo conceituada como moeda, tampouco valor mobiliário, causa insegurança jurídica, inclusive quanto à aplicação de tipos penais, uma vez que o STF já se posicionou no sentido de que a mera negociação de criptomoedas não é resguardada pela salvaguarda dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional . De fato, no presente caso, seria forçada a analogia de que projetos DeFi se enquadram na definição de instituições financeiras.
Assim, resta buscar amparo nos crimes contra a economia popular, que, por si só, não se apresentam suficientemente sequer para coibir a prática de fraudes no sistema financeiro tradicional .
A forma anacrônica e centralizada do Direito Penal é incompatível com o crescimento e inovação exponenciais que a base do blockchain oferece. Enquanto os contratos são abertos para qualquer um participar, a elaboração e votação de uma legislação penal passa por trâmites amarrados e morosos, sem contar a sua limitação estrutural e fronteiriça para a apuração de crimes cibernéticos.
O respaldo para a tutela do bem jurídico seria a aplicação dos crimes comuns, aqueles criados pela legislação elaborada ainda pelo Estado Novo, para evitar a subtração e desvio dos antigos réis, muito antes de se imaginar os atuais reais, quiçá criptomoedas.
Mas furto, estelionato, apropriação indébita ou mesmo crimes do sistema financeiro não condizem com a realidade complexa das criptomoedas, tampouco suas penas, algumas de pequeno potencial ofensivo, são o suficiente para prevenir a conduta que pode gerar milhares de vítimas e milhões de prejuízo. Da mesma forma, a nova Lei de Crimes e Delitos Cibernéticos não apresenta estrutura para lidar com a transnacionalidade da tecnologia descentralizada .
A título de exemplo, no final de 2020, um exit scam aplicado pelo projeto Yfdexf.Finance gerou prejuízos de US$ 20 milhões, deixando vítimas em diversos países. O projeto fez propaganda por dois dias em mídias sociais como Twitter e Telegram.
A questão vai além da tipificação penal, devendo ser considerada a estrutura jurídica como um todo, em especial as condições de investigação e apuração dos delitos, em razão da descentralização e com isso a transnacionalidade dos autores e das vítimas.
Em outubro de 2020, o projeto Wine Swap aplicou o golpe de exit scam, levando US$ 345 mil de seus clientes, desviando os fundos do endereço do contrato para o endereço de seu criador. No entanto, não só os golpistas dominam a tecnologia. A plataforma que realizou o lançamento do projeto, por meio de sua equipe de segurança, conseguiu follow the money através de transações cross-chain, sendo possível identificar o endereço eletrônico e físico do autor, possibilitando o bloqueio e restituição do valor quase que integralmente .
Toda a investigação das diferentes contas utilizadas, de redes diversas e da localização física do autor demorou apenas um dia. Essa atuação só foi possível em razão da iniciativa privada não possuir jurisdições e bloqueios de soberania, além do domínio da tecnologia, o que não seria possível realizar somente por órgãos governamentais.
A reflexão acima demonstra que não basta uma nova tipificação penal. A questão é mais complexa e as parcerias com o setor privado são necessárias, visto que a tecnologia veio para ficar.
Antes de mudar a lei, é necessário alterar o entendimento de conceitos preestabelecidos que dificultam o desenvolvimento da própria sociedade. A melhor forma de se resguardar é a prevenção por meio do conhecimento, do estudo de onde será investido o seu dinheiro. E, antes de se aventurar em novas águas, faça sua própria pesquisa (DYOR) .