A DESCABIDA METAMORFOSE PROBATÓRIA NO PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL

Por Rodrigo Casimiro Reis - 

O presente artigo tem por pano de fundo a abordagem em torno do julgamento do Habeas Corpus nº 632.778/AL , writ no qual a 6ª Turma do STJ analisou caso em que a condenação pela prática de ato infracional estava lastreada em depoimento prestado por testemunha em sede inquisitorial e em depoimento de autoridade policial que confirmou, em juízo, relato de testemunha ouvida na fase pré-processual.

O relator ministro Nefi Cordeiro, acompanhado pelos demais membros da turma, concedeu a ordem pleiteada pela Defensoria Pública do Estado de Alagoas e anulou a sentença por violação do artigo 155, caput, do CPP , sob o fundamento de que a condenação do paciente estava fundamentada em elementos colhidos exclusivamente em sede inquisitorial.

O relator consignou que o depoimento prestado em juízo pela autoridade policial não tinha a natureza de prova judicial, já que "o delegado não relata fatos do crime tampouco é testemunha adicional do que consta do inquérito policial".

O caso analisado pelo tribunal superior não constitui fato isolado na rotina dos profissionais que militam na área criminal.

Revela-se comum em algumas comarcas que o Parquet, com o intuito de corroborar os relatos das testemunhas do delito ou mesmo de suprir o depoimento de alguma testemunha não encontrada para depor em juízo, arrole a autoridade policial para ser ouvida na audiência de instrução e julgamento com o estrito fim de reproduzir o que fora apurado na fase inquisitorial.

E nesse sentido o precedente do STJ tem grande valia, visto que demonstra de forma patente que a autoridade policial, via de regra, não é testemunha de crime, não detendo o seu depoimento — ainda que prestado em juízo — a natureza de prova apta a ser valorada pelo magistrado quando do exame acerca da autoria do delito imputado.

É preciso ter em mente que compete à autoridade policial, a partir do conhecimento da suposta prática de infração penal (notitia criminis de cognição imediata, mediata ou coercitiva), instaurar o inquérito policial (poder-dever), que é um procedimento administrativo conduzido pelo Estado-acusação para, de forma sumária, colher elementos de informação e apontar um provável autor do delito; esse é o real escopo da fase inquisitorial. Veja que não há, nessa seara, preocupação com ampla defesa, até mesmo porque sequer se exerce a defesa do investigado.

Ao delegado de polícia cabe, nos termos do artigo 2º, §1º, da Lei nº 12.850/13 , presidir o inquérito (tomando todas as providências previstas no artigo 6º do CPP), apresentar relatório  (peça descritiva na qual se faz um sumário dos trabalhos desenvolvidos na fase pré-processual e que, apesar de constituir dever funcional da autoridade policial, é dispensável ao oferecimento de denúncia ) e realizar eventualmente o indiciamento do investigado , valoração técnica privativa do delegado de polícia que, em juízo superficial de cognição, aponta o suspeito como possível autor do delito (fato que deverá ser objeto de prova judicializada em processo dialético iluminado pelas luzes garantistas do contraditório e da ampla defesa).

A autoridade policial (salvo quando houver presenciado a suposta prática do crime) não é testemunha de infração penal. A ela cabe, em procedimento inquisitorial, colher indícios que possam subsidiar (ou não) o oferecimento de denúncia pelo dominus litis da ação penal de iniciativa pública.

O máximo que pode ser obtido em depoimento prestado por delegado de polícia em juízo são as impressões que essa autoridade teve quando da investigação do delito. Ocorre, porém, que o próprio artigo 213 do CPP  veda que eventual testemunha manifeste suas apreciações pessoais, dado que reforça a tese ora sustentada de que o depoimento da autoridade policial não se revela apto a servir de prova da autoria delituosa.

Caso haja interesse em saber as conclusões tomadas pela autoridade policial na fase pré-processual, cabe ao Parquet consultar os autos do inquérito. Submeter o delegado de polícia a comparecer a toda e qualquer audiência de instrução criminal para narrar o que já consta do relatório apresentado é subestimar o tempo desse agente público, que, por certo, tem muitos afazeres em seu cotidiano profissional.

A possível pretensão de conferir roupagem de prova  — capaz de ser valorada pelo magistrado em desfavor do denunciado — a um dado que não tem essa natureza jurídica caracterizaria o que denominamos de "metamorfose probatória", fenômeno que não se amolda ao modelo de processo penal adotado pela Constituição Cidadã.

Inviável que o Estado-acusação tente, por via transversa, sustentar eventualmente a observância do artigo 155, caput, do CPP e a respectiva condenação do acusado em casos similares ao analisado no aludido precedente do STJ. Tal intento, se obtido, evidenciaria indevido rebaixamento do standard probatório exigido pela lei processual para a prolação de sentença condenatória.

Em um Direito Processual Penal constitucional em que vigora o sistema acusatório, cabe ao Parquet o ônus de carrear aos autos provas seguras das acusações irrogadas em juízo. E por provas compreenda-se o material produzido sob o crivo do contraditório (ainda que diferido) que possa influir diretamente no exame da suposta prática delituosa (testemunhas do crime, interceptações telefônicas, provas periciais).

Impressões pessoais não são provas, tampouco, conforme analisado no aludido precedente do STJ, depoimento que apenas confirma a existência de relato de terceiro, ouvido em sede inquisitorial.

Processo instaurado para apuração de suposta infração penal trata, ao fim e ao cabo, da reconstrução de um fato da vida (tarefa deveras complexa, já que está ligada diretamente à falibilidade humana — falsas memórias, idiossincrasias que podem repercutir na veracidade de depoimentos, desaparecimento de vestígios, dentre outras situações) que culmina com a prolação de sentença que, se condenatória, impõe graves consequências ao cidadão condenado.

É importante ressaltar que a imposição da sanção prevista no preceito secundário do tipo penal demanda que a persecutio criminis in iudicio seja conduzida com respeito às garantias individuais, requisito indispensável para que se confira legitimidade à própria decisão judicial condenatória.

Sobre o tema, colho lição de Nestor Távora et al :

"A pretensão punitiva deve perfazer-se dentro de um procedimento regular, perante autoridade competente, tendo por alicerce provas validamente colhidas, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa.(…)
O processo deve ser instrumento de garantia contra os excessos do Estado, visto como ferramenta de implementação da Constituição Federal, como garantia suprema do jus libertatis".

O eventual insucesso do Ministério Público na coleta de elementos mínimos de autoria (em juízo) deve, necessariamente, conduzir a uma única conclusão ao final da instrução criminal, que é a de absolvição do denunciado.

Justiça não se faz a todo e qualquer custo. Como adverte o ministro Rogério Schietti, "justiça penal não se faz por atacado e sim artesanalmente, examinando-se atentamente cada caso para dele extraírem-se todas as suas especificidades, a torná-lo singular e, portanto, a merecer providência adequada e necessária" .

Em um Estado democrático de Direito, o processo penal é instrumento que tutela os cidadãos contra eventuais excessos praticados pelas instituições incumbidas da persecução penal, cabendo ao Poder Judiciário a nobre missão de velar por essa salvaguarda decorrente do sistema acusatório, acolhido tanto em sede constitucional  quanto infraconstitucional .

Corroborando a argumentação em torno da imperiosa necessidade de que toda e qualquer intervenção do Estado no âmbito privado do cidadão seja expressamente motivada à luz dos ditames constitucionais, colho trecho de decisão exarada pelo ministro Celso de Mello nos autos do HC 186.421 , no qual delimita os contornos de um processo penal que pretenda ser denominado de garantista:

"A razão desse entendimento resulta do fato, juridicamente relevante, de que o processo penal figura como exigência constitucional ('nulla poena sine judicio') destinada a limitar e a impor contenção à vontade do Estado, cuja atuação sofre, necessariamente, os condicionamentos que o ordenamento jurídico impõe aos organismos policiais, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra possíveis excessos e o arbítrio do Poder, especialmente em face de eventuais abusos perpetrados por agentes estatais no curso da 'persecutio criminis' (…)".

No mesmo sentido, transcrevo trecho de voto exarado pelo ministro Gilmar Mendes nos autos do HC nº 164.493 :

"Diante disso, pode-se afirmar que o fundamento do processo penal, sua razão de existir, é o reconhecimento de que, em um Estado Democrático de Direito, uma sanção penal somente pode ser imposta após a obtenção de uma condenação definitiva com total respeito às regras do devido processo penal. E, assim, ele adquire o sentido de ser um instrumento de limitação do poder punitivo ao condicionar a aplicação de uma sanção penal ao seu transcorrer e encerramento com uma sentença condenatória, em respeito às regras do devido processo" (Binder, Alberto M. La implementación de la nueva justicia penal adversarialAd-hoc, 2012. p. 74).

Nas palavras de Francesco Carnelutti, "o processo penal é um banco de prova da civilização" , detendo as regras processuais tanto a função de: 1) garantia em prol do jurisdicionado (de que as provas eventualmente utilizadas em seu desfavor foram colhidas em observância aos ditames legais/constitucionais); quanto de 2) limitação do poder punitivo estatal, neutralizando eventuais abusos de poder por parte de agentes estatais.

Em suma, condenação prolatada nos autos de um processo penal, por implicar em possível restrição a um direito fundamental de primeira dimensão (liberdade), deve estar respaldada por substrato probatório idôneo e indene de dúvidas, restando descabida a tentativa de remediar eventual ineficiência do Estado-acusação com a adoção de providência que não encontra amparo no sistema de garantias insculpido na Constituição da República e que é resultado de lento e gradual processo histórico de conquistas no âmbito dos direitos humanos.

 

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