Por Luis Irapuan Campelo Bessa Neto -
Sancionada a aguardada nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), ainda que se trate de legislação não tão audaciosa quanto esperado por alguns, trouxe modificações quanto aos crimes então previstos. Antes, na própria Lei n° 8.666/93, transferiram-se para o Código Penal as suas disposições penais, que agora constam do "Título XI –— Dos crimes contra a administração pública, Capítulo II-B — Dos crimes em licitações e contratos administrativos".
Com relação às modificações, essas se deram especialmente quanto à redefinição de alguns dos delitos e a alteração/majoração de seus preceitos secundários, passando a prever a pena de reclusão como regra — na sistemática anterior era a de detenção — e uma pena mínima em alguns deles, como a frustração do caráter competitivo de licitação, fixada em quatro anos, maior do que a do peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por exemplo. Daí decorrem, aliás, duas questões processuais importantes: 1) a impossibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal (artigo 28-A, caput, do Código de Processo Penal); e 2) a possibilidade, agora, de interceptação de comunicações telefônicas a partir de investigações com foco único e exclusivo em crimes licitatórios, o que era vedado anteriormente em virtude da previsão de pena de detenção (artigo 2º, inciso III, da Lei n° 9.296/1996 — STJ, HC 242.398/SC).
Não obstante inúmeras outras consequências das alterações trazidas — como o regime inicial de cumprimento da pena, eis que alterada a pena para reclusão, bem como a possibilidade de decretação de prisão preventiva em virtude do aumento da pena em abstrato de alguns crimes —, a presente análise restringir-se-á à alteração promovida no artigo 96 da então Lei n° 8.666/93, hoje artigo 337-L do Código Penal. Na sistemática antiga, dispunha mencionado artigo e seu inciso I — delimitação que aqui importa: "Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: I — elevando arbitrariamente os preços".
A antiga redação do caput sempre foi muito questionada pela doutrina, sobretudo porque incoerente. Como se via, a figura típica se limitava à conduta de fraudar o certame, ou contrato dele decorrente, que visasse a aquisição ou venda de bens ou mercadorias. Não se incluía no tipo eventual fraude em licitações ou contratos que tivessem por objeto a contratação de obras e serviços. Assim, em virtude do princípio da legalidade estrita — taxatividade, tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal, de forma acertada, entendiam que a norma incriminadora efetivamente se limitava à aquisição ou venda de bens ou mercadorias (STJ, REsp 1.571.527/RS–STF, APn 991/MT). Segundo Cezar Roberto Bitencourt:
"Com efeito, se a fraude ocorrer em licitação ou contrato de serviços ou execução de obra não configurará a conduta incriminada neste artigo 96, devendo encontrar adequação típica em outro dispositivo deste mesmo diploma legal. Haveria, indiscutivelmente, absoluta inadequação típica, e, embora seja incompreensível essa opção político-criminal do legislador, a verdade é que a taxatividade da tipicidade e o princípio da legalidade não admitem tal extensão" .
Toda essa discussão, entretanto, parece ter findado, ao menos com relação aos fatos ocorridos após a vigência da nova redação. Agora prevê o artigo 337-L do Código Penal: "Fraudar, em prejuízo da Administração Pública, licitação ou contrato dela decorrente, mediante". Aliás, também derruída a problemática envolvendo a expressão licitação instaurada — se correspondia ou não à disposição do artigo 38 da Lei n° 8.666/93 —, eis que excluída a palavra instaurada da nova redação.
Além disso, alterou-se a expressão Fazenda Pública para Administração Pública , de abrangência muito mais ampla. Não obstante se entenda que para a configuração do crime ainda seja exigida a demonstração de efetivo prejuízo patrimonial, esse não se limita mais à Fazenda Pública, expressão que remonta à Lei nº 6.830/1980 e diz respeito ao patrimônio da União, Estados, municípios e respectivas autarquias, não englobando empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas de direito privado e consórcios públicos de direito privado. Agora todas elas passam a ser sujeitos passivos do crime do artigo 337-L, tanto em virtude do uso da expressão Administração Pública, quanto pela disposição do artigo 1º, §1º, da Lei nº 14.133/2021.
Veja-se que, na sistemática antiga, uma sociedade de economia mista, ainda que possuidora de regime diferenciado e simplificado de contratação (STF, RE 441.280/RS), poderia ser sujeito passivo do crime do artigo 90 (STJ, EDcl no AgRg no REsp 1.758.459/PR) — também por previsão do artigo 85 —, mas não daquele do artigo 96, que possuía inclusive pena em abstrato maior, justamente em decorrência da terminologia Fazenda Pública.
O que se vê, portanto, é uma ampliação do tipo, a alcançar condutas antes não punidas, ao menos com um olhar restrito ao então artigo 96.
Chama a atenção, por outro lado, e de forma positiva, a revogação do inciso I daquele artigo. Era a redação: "Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: I — elevando arbitrariamente os preços".
Destaca-se, de início, que o verbo fraudar, empregado tanto no artigo 96 quanto no artigo 337-L, tem por objeto a finalidade da licitação, de seleção da proposta mais vantajosa; o sujeito ativo se utiliza de meio que acaba por ludibriar a contratante — Administração Pública, na nova redação —, acreditando ela que está a contratar a melhor proposta. Segundo João Paulo Martinelli, "(...) é uma espécie de estelionato voltado aos procedimentos licitatórios" .
Em atenção a isso, pontuando-se que havia/há um rol de meios executórios da conduta fraudulenta, tinha-se a elevação arbitrária de preços como uma das condutas aptas a caracterizar a fraude, à época, à Fazenda Pública.
Nesse contexto, não era incomum a condenação de sujeitos que se sagravam vencedores em processos licitatórios com propostas para a venda de bens ou mercadorias com preço superior ao praticado no mercado privado, sem qualquer conluio com agentes públicos ou particulares. Ou seja, a simples majoração pelo licitante dos preços praticados ao mercado privado, se fosse considerado arbitrário — expressão deveras vaga e subjetiva —, poderia conduzir a uma responsabilização penal. Isso se dava sobretudo naqueles processos em que havia licitante único, muito embora devidamente publicizado o edital e demais atos e documentos do certame. Entendia-se configurada a fraude justamente na medida em que, podendo oferecer preço menor, não o fazia o licitante, "ludibriando" a Administração ao aceitar proposta que, em teoria, não seria efetivamente vantajosa, se comparada ao mercado privado.
Justamente por isso, a doutrina advertia ser inconstitucional o inciso I do revogado artigo 96 da Lei 8.666/93 por ofender os artigos 5º, inciso XXII (garantia ao direito de propriedade), e 170, inciso IV (livre concorrência), ambos da Constituição Federal. Bastante esclarecedora era a lição de Marçal Justen Filho, compartilhada por Cezar Roberto Bitencourt :
"Todo particular tem assegurada a mais ampla liberdade de formular propostas de contratação à Administração Pública. Para tanto, examinará seus custos, estimará seus lucros e fixará os riscos que pretende se sujeitar. Não pode ser constrangido a formular proposta para a Administração Pública idêntica à que formularia para terceiros. Portanto, se o particular decidir elevar seus preços, ainda que de modo arbitrário, não praticará ato reprovável pela lei penal. Se a Administração reputar que os preços são excessivos, deverá rejeitar a proposta e valer-se dos instrumentos jurídicos de que dispõe (inclusive e se for o caso, promovendo a desapropriação mediante prévia e justa indenização)" .
E mais: se não havia conluio com o agente público, que por dever coletaria orçamentos de variadas empresas para a definição do valor de mercado e o preço máximo a que estaria disposta a pagar a Administração Pública — também não havendo conluio entre as empresas fornecedoras dos orçamentos —, por qual motivo não poderia o particular — aqui com a análise restrita à seara criminal — apresentar proposta em valor máximo e acabar se sagrando vencedor? Ora, compete à Administração analisar o interesse na adjudicação e homologação de tal proposta.
Portanto, a exemplo do que ocorreu com o artigo 89 — agora artigo 337-E do Código Penal —, em que se excluiu do tipo a conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade" — ainda objeto de condenação em inúmeros tribunais, por mais que afastada nas cortes superiores —, verifica-se o acerto do legislador em retirar da norma incriminadora a conduta de elevar arbitrariamente os preços.
E nem se diga, aliás, que em decorrência do princípio da continuidade normativo-típica a elevação arbitrária de preços continuaria materialmente prevista no ordenamento, agora no inciso V do artigo 337-L do Código Penal. A uma, porque tal redação já constava da Lei n° 8.666/93, em conjunto com o revogado inciso I, não sendo lógico imaginar que criminalizariam a mesma conduta; e a duas, porque claramente inconstitucional naquilo que se propunha o inciso I do artigo 96. Inclusive, poder-se-ia também questionar a constitucionalidade do inciso V, porquanto demasiado aberto seu conteúdo.
Fato é que se existente conluio no procedimento licitatório, seja com o agente público ou com os particulares, oferecendo-se proposta com sobrepreço, tal conduta já se insere no delito do artigo 337-F, justamente porque, ao fim e ao cabo, a fraude ou frustração do caráter competitivo do certame obsta a finalidade do processo licitatório: a busca pela proposta mais vantajosa à Administração — não necessariamente a de menor preço. Inclusive, o preceito secundário dos artigos 337-F e 337-L é idêntico, ao contrário do que ocorria na Lei n° 8.666/93.
A bem da verdade, o que se buscou com a reformulação do artigo 96, agora artigo 337-L, foi dar um enfoque maior na execução do contrato, o que fica bastante claro a partir de uma simples análise de seus incisos.
Portanto, ao menos no que toca à redefinição do tipo, acertada a modificação realizada pelo legislador.