Por Gabriel Cardoso Cândido -
A tese da legítima defesa da honra foi muito conhecida devido ao assassinato de Ângela Maria Fernandes Diniz por Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street .
Em breve síntese, Ângela Diniz e Doca Street eram namorados e mantinham um relacionamento marcado por ciúmes e relatos de violência doméstica. Em dezembro de 1976, já ao final do ano, o casal estava em uma casa em Armação dos Búzios, na Praia dos Ossos.
No dia 30 de dezembro, Doca Street manifestou uma crise de ciúmes, pois Ângela Diniz estava na praia com uma turista alemã, Gabriele Dyer, o que já foi suficiente para gerar especulações sobre possível relação entre as duas. Ato contínuo, eclodiu uma grave briga física entre Ângela e Doca. Ângela decidiu terminar o conturbado relacionamento e disse para Doca ir embora da casa em que estavam.
Doca saiu de casa, pois "sair de casa, assim, era na verdade uma encenação, era uma estratégia que o Doca já tinha usado algumas vezes para reverter uma situação de briga", e em seguida retornava, mas essa situação especificamente foi diferente. Ele saiu da casa, foi até o carro e retornou com uma pistola dentro de sua bolsa. Doca insistiu pela retomada do relacionamento e Ângela disse o seguinte: "Se quiser me dividir com homens e mulheres, pode ficar, seu corno", e foi quando Doca disparou quatro tiros em direção ao rosto de Ângela, matando-a.
O julgamento de Doca Street ocorreu em 1979, com muita influência e repercussão midiática. No Tribunal do Júri, o advogado Evandro Lins e Silva sustentou que o réu se encontrava em um estado de legítima defesa de sua dignidade, visto que Ângela apresentava um comportamento devasso e promíscuo, provocando injustamente a reação de Doca Street, que, por sua vez, cometeu o delito motivado por ciúmes e por amor. Nos termos da sustentação de Evandro Lins e Silva:
"Qualquer pessoa vê na ação de Raul Fernando Street o gesto de desespero, e profundamente deplorável, de um homem apaixonado, dominado por uma ideia fixa, que o levou a um gesto de violência, que não é comum à sua personalidade (…) Não, não sustentamos o direito de matar. Não. Não suponha ninguém que eu vim aqui sustentar o direito que tenha alguém de matar. Não! Tenho o direito de… explicar, de compreender um gesto de desespero, uma explosão incontida de um homem ofendido na sua dignidade masculina. Compreende-se, desculpa-se, escusa-se. Isto o júri faz não é só no Brasil, não, mas no mundo inteiro. Quando há razões, quando há motivos (…) Ela provocou, ela levou a este estado de espírito, este homem que era um rapagão, um mancebo bonito, um exemplar humano belo, que se encantou pela beleza e pela sedução de uma mulher fatal, de uma Vênus lasciva".
Doca Street foi condenado a 18 meses por excesso culposo de legítima defesa, ou seja, o conselho de sentença entendeu que Doca agiu em legítima defesa e que o excesso fora sem intenção, além de um acréscimo de seis meses de pena por ter fugido da Justiça. À época, Doca já tinha cumprido mais de um terço de sua condenação, saindo do tribunal andando, o que provocou uma sensação popular de absolvição e de impunidade.
No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF), de modo unânime, expurgou do ordenamento processual penal brasileiro a tese da legítima defesa da honra, considerando-a inconstitucional, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista.
É incontroverso que a tese da legítima defesa da honra se constitui em uma manifestação do machismo estrutural presente na sociedade brasileira, em que a mulher é vista como propriedade do homem e integrante da honra masculina. De fato a presente tese mostra-se retrógrada, violenta, machista e desumanizadora. A inicial da ADPF 779 imputou à tese em questão como "horrenda, nefasta e anacrônica", configurando a lesa humanidade:
"Essa inferiorização jurídica coisificadora da pessoa humana da mulher frente ao homem é a óbvia origem histórica da axiologia que 'justificou' (leia-se, racionalizou a irracionalidade da horrenda, nefasta e anacrônica tese de lesa-humanidade da 'legítima defesa da honra' (sic), pela qual se atribuía ao homem o teratológico 'direito' de assassinar sua esposa quando a flagrasse em adultério com outro homem, a pretexto de lavar sua honra com sangue (sic). Afinal, data maxima venia, abstraídas tergiversações de machismo patriarcal, não há nenhuma outra forma que possa ser utilizada para se defender esse absurdo 'direito a assassinar quem comete adultério' (sic), a saber, a verdadeira coisificação da pessoa que comete (real ou supostamente) ato de infidelidade sexual, como uma verdadeira 'coisa' de 'propriedade' da pessoa que assassina (historicamente, sempre um homem assassinando uma mulher), para, somente assim, considerar tentar dar alguma racionalização (conceito distinto de racionalidade) a essa teratológica prevalência da suposta 'honra' da pessoa traída sobre a 'vida' da pessoa assassinada…" .
O presente ensaio tem por finalidade apresentar a ADPF 779 e promover alguns questionamentos a partir dela. A petição inicial destacou as normas fundamentais ora violadas pelo Estado, quais sejam: artigo 1º, III ; artigo 3º, IV ; artigo 5º, caput ; e artigo 5º, LIV , todos da Constituição Federal.
Propôs a inicial que a utilização da legítima defesa da honra ensejasse em "nulidade do veredicto do júri":
"Assim, a absolvição da pessoa acusada por teses de lesa-humanidade, no sentido de violadoras de direitos fundamentais, como a chamada 'legítima defesa da honra', gera a nulidade do veredicto do Júri, por se constituírem enquanto arbitrariedade que não pode ser tolerada à luz do princípio do Estado de Direito, enquanto 'governo de leis', à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, visto que todos que consagram a vedação do arbítrio em decisões estatais" .
Verificou-se a unanimidade dos ministros do STF no entendimento da nulidade do júri que for sustentado a legítima defesa da honra, referendando, assim, a decisão liminar proferida pelo ministro Luiz Fux. O Pleno do STF decidiu por julgar inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, vista a violação do princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à equiparação de gênero, bem como:
"Obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator".
Por fim, cabe ventilar um questionamento que pode pairar no ar acerca tanto da ritualística do processo penal quanto do direito penal material. A tese da legítima defesa da honra foi absolutamente rechaçada pela unanimidade dos ministros do STF, entretanto, nada foi dito acerca da sustentação da causa de diminuição de pena presente no artigo 121, §1º, do Código Penal, conhecido como homicídio privilegiado: "Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço".
O modo pelo qual a defesa advoga pela existência do privilégio pode se assemelhar consideravelmente à tese da legítima defesa da honra, uma vez que o acórdão da ADPF 779 proibiu essa argumentação direta e indiretamente. O que configura uma sustentação indireta da tese? Como explicar a existência de violenta emoção sem tangenciar aspectos que podem ser interpretados como legítima defesa da honra? Quais são os parâmetros processuais para se delimitar o que configura a tese da legítima defesa da honra e o que configura a sustentação do privilégio? Ou ainda, o privilégio ainda poderá ser sustentado? Qual será o órgão competente para diagnosticar o uso da tese? Uma vez diagnosticado qual o procedimento?
Evidencia-se, portanto, que os questionamentos acerca da decisão da ADPF 779 são inúmeros e maiores do que as certezas. Nessa toada, passaremos a discutir acerca do princípio da ampla defesa ou, no caso do Tribunal do Júri, da plenitude de defesa.
A plenitude de defesa no Tribunal do Júri tem sua previsão constitucional no artigo 5º, XXXVIII: "É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa". Salienta-se que a plenitude de defesa se diferencia do princípio da amplitude de defesa, apesar das semelhanças. O professor Guilherme de Souza Nucci leciona a referida diferenciação nos seguintes termos:
"A expressão 'amplo' indica algo vasto, extenso, enquanto a expressão 'pleno' significa algo completo, perfeito. A ampla defesa reclama uma abundante atuação do defensor, ainda que não seja completa e perfeita. Contudo, a plenitude de defesa exige uma integral atuação defensiva, valendo-se o defensor de todos os instrumentos previstos em lei, evitando-se qualquer forma de cerceamento".
Nesse mesmo sentido, trazemos a posição de Luiz Flávio Gomes , que advoga que a "plenitude de defesa é aquela atribuída ao acusado de crime doloso contra a vida, no Plenário do Júri e, vale dizer, é bem mais 'ampla' do que a ampla defesa garantida a todos os litigantes em processo judicial ou administrativo".
Extrai-se, portanto, que a plenitude de defesa significa a ausência de restrições argumentativas para realizar a defesa do acusado no Tribunal do Júri, sendo constitucionalmente alarmante qualquer decisão que restrinja a absoluta liberdade que o patrono possui para defender os interesses de seu patrocinado. O que se critica neste ensaio não é o repúdio à tese da legítima defesa da honra, mas sim o precedente gerado através da proibição de seu uso, há, portanto, uma modulação da plenitude de defesa. Questiona-se se o Poder Judiciário é competente para modular a defesa?
Ora, a modulação da plenitude de defesa descaracteriza-a como tal. A defesa plena não comporta adversativas como: "A defesa é plena, mas tais teses são inconstitucionais e não devem ser usadas". Estamos diante de um verdadeiro ataque à instituição do Tribunal do Júri.
Na inicial da ADPF 779, os postulantes afirmaram que o Estado não pode chancelar práticas que corroboram com comportamentos sexistas:
"Essa ideologia hierárquico-patriarcal que subordina a mulher ao homem não pode ser chancelada pelo Estado, porque acaba por legitimar uma 'estrutura social patriarcal', mediante uma 'ordem de gênero estatizada e fundada na hierarquia entre os sexos' (...). Algo pura e simplesmente incompatível com o direito de autonomia moral inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana, obviamente aplicável às mulheres, inclusive casadas" (inacreditável isso ainda precisar ser dito nesta quadra histórica…) .
No Tribunal do Júri, contudo, o Estado é representado pelo membro do Ministério Público, que têm o dever de exercer o contraditório, principalmente em situações em que a defesa possa vir a ser agressiva com determinadas coletividades.
Defende-se, portanto, que a tese da legítima defesa da honra deve ser combatida pelo contraditório, e não por uma decisão em controle concentrado de constitucionalidade, visto que a defesa não pode ser proibida de expor qualquer linha argumentativa.