Por Ricardo Rodolfo Rios Bezerra e Milena Lopes Vieira de Farias -
Recentemente a 6° Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que não há de se falar em crime no furto de dois filés de frangos, cujo valor soma R$4,00 reais, considerando, então, atípica a conduta de furto. A decisão da turma foi unânime e baseada na aplicação do princípio da insignificância.
Diante da situação exposta, faz-se uma pergunta ao leitor: um pacote de um frango empanado é materialmente relevante para a aplicação da complexa e custosa máquina jurídica do Direito Penal?
O relator do caso, ministro Rogerio Schietti, mostrou sua indignação com a persecução penal em um processo de furto cujo bem material é avaliado em 0,5% do salário-mínimo brasileiro.
O que espantou o ministro é o fato de o processo ter chegado até o STJ para julgar recurso em Habeas Corpus do réu, pois, segundo o ministro, o processo deveria ter sido extinto com o acolhimento da tese de defesa: o princípio da insignificância.
Conforme apresentado, existem fatos pontuais que devem ser criticados e analisados.
O ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis Júnior, durante uma sessão do dia 1º/6/2021, se posicionou em relação ao caso supra e apontou o grande número de processos que devem ser julgados pela corte. Na visão do ministro, é absurdo julgar um HC que discute a insignificância de um furto do valor de R$ 4.
Para entendermos o apelo do ilustre ministro Sebastião Reis Júnior, é preciso saber que o sistema judiciário brasileiro está se tornando uma estrutura que não consegue atender às demandas da justiça dentro do ritmo necessário; além de ser ineficiente, é um sistema caro.
O valor do bem furtado é irrisório, trata-se de míseros R$ 4. Em contrapartida, é preciso refletir: quanto já se gastou com esse processo?
O ministro esclarece que se o Ministério Público e a advocacia não insistissem em teses superadas e aplicassem entendimentos e jurisprudências do STJ, muitos processos tramitariam de forma mais rápida e, consequentemente, mais eficiente e econômica.
Ademais, o número de processos tem aumentado significativamente desde 2017, assim como a criminalidade. Nesse ínterim, fica nítida a necessidade de o Poder Judiciário brasileiro trabalhar formas de ressocialização e prevenção de crimes, e não "perder tempo em julgar Habeas Corpus para trancar uma ação por insignificância", nas palavras do próprio ministro Sebastião Reis.
Para uma melhor análise do tema é preciso conhecer o princípio da bagatela, também citado anteriormente como princípio da insignificância.
O Direito Penal pune condutas que são materialmente lesivas à sociedade; o homicídio é exemplo de um tipo penal que protege o mais relevante dos bens jurídicos, a vida.
Já o furto protege o bem jurídico do patrimônio, que sem dúvida nenhuma tem a sua importância formal dentro do Código Penal. Ocorre que, em casos nos quais o objeto do delito é materialmente irrelevante frente ao uso do aparato persecutório, é dever do Ministério Público analisar se de fato deve lançar mão do imbricado e complexo sistema do direito criminal, sendo esse a ultima ratio do direito.
Nessa esteira, surgem questionamentos basilares e necessários que se fazem: será válido lotar tanto a cadeia dos processos quanto a cadeia com sentenciados, por muitas vezes primários, em face de condutas penalmente irrelevantes e que não mereceriam nada mais que uma simples reprimenda, ou reparação cível/administrativa do dano causado?
Analisando o instituto da insignificância, a conduta só poderá ser punida pelo Estado se coexistirem os elementos do crime. O fato típico, a ilicitude e a culpabilidade. No contexto do fato típico encontra-se a conduta, o nexo causal, o resultado e atipicidade. O princípio da insignificância atinge diretamente a tipicidade, que se divide em duas partes, formal e material. Dentro da formalidade, é analisado se a conduta do agente se adequa com a descrição abstrata prevista na lei.
É na tipicidade material que observamos a existência de lesão ou exposição de perigo do bem jurídico penalmente tutelado. No furto de dois filés de frango empanados não há tipicidade do fato, pois analisando a relação entre conduta do réu e os seus resultados não há de se falar em crime; ademais trata-se de uma conduta irrelevante. Assim, em face do apresentado, o furto praticado é materialmente atípico.
O princípio da bagatela não é considerado excludente de culpabilidade; em verdade, trata-se de excludente de tipicidade, resultando na inexistência do crime. Para sua aplicabilidade, segundo o Supremo Tribunal Federal, é necessário preencher quatro requisitos: a mínima ofensividade da conduta, a inexistência de periculosidade social do ato, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão provocada.
Não obstante, para esclarecer que o recente entendimento do STJ deve ser aplicado, trago os ensinamentos de Platão para a discussão. O filósofo leciona que o "mundo das ideias" é uma realidade abstrata, onde não existe mudança e a perfeição seria possível.
O crime de furto está tipificado no Código Penal Brasileiro em seu artigo 155, ou seja, a norma pertence ao "mundo das ideias", onde é possível julgar todos os crimes e aplicar a melhor pena para cada caso.
Em sentido contrário, Platão nos apresenta outro conceito, o "mundo dos sentidos", onde impera a percepção da realidade; para Platão, é o mundo em que habitamos, no qual reside a possibilidade do erro.
Apesar do furto ser uma atitude reprovável perante a sociedade, nosso sistema judiciário está sobrecarregado e não suporta julgar crimes com insignificância penal na conduta, cujo bem jurídico violado é irrelevante se comparado ao gasto do dinheiro público na punição deste delito.
Sem querer estipular o papel de um defensor do crime ou de pensador que defenda a impunidade, necessitamos compreender que por diversas vezes a estrutura criada para se combater o mal demonstra-se tão deletéria quanto o próprio mal praticado.
Se dentro da estrutura judiciária é necessário encarcerar um indivíduo que furta um alimento de subsistência básica, por período máximo de quatro anos, sendo que o valor desse bem furtado mostra-se patentemente insignificante, é necessário que repensemos se o estado está retribuindo o mal causado pelo delito, alargando ou criando novos autores delituosos ou se está, em um processo fabril, julgando pessoas no modo automático, encarcerando pessoas no modo automático, e não ressocializando pessoas de modo lógico.
Para finalizar a digressão, perguntamo-nos se realmente engrandecer o sistema penal brasileiro trará frutos doces às novas gerações ou somente retirará de circulação temporariamente alguns indivíduos, fazendo com que retornem à sociedade menos civilizados e entregando mais delitos, gerando, assim, um ciclo vicioso nocivo.