DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL

Por César Dario Mariano da Silva -  

Discute-se tanto a nível legislativo quanto judicial a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

Desde a publicação da Lei de Drogas a questão ganhou relevo e, em todas as esferas, com raras exceções, sempre foi decidido que se trata de crime.

A Lei de Drogas trouxe significativas modificações no que é pertinente a crimes relacionados a drogas.

Uma das principais mudanças é que ao usuário de drogas será dado tratamento especial. Inovando nosso ordenamento jurídico, a essa pessoa poderão ser impostas penas restritivas de direitos cominadas abstratamente no tipo penal (artigo 28). Não mais será possível a aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de drogas, mas a conduta de porte de droga para consumo pessoal continua sendo considerada crime.

As penas restritivas de direitos elencadas no Código Penal são aplicadas autonomamente, não possuindo qualquer relação com as penas privativas de liberdade. Elas não são cominadas abstratamente no tipo penal. Há a substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de direitos, desde que preenchidos os requisitos previstos no artigo 44 do Código Penal. Essa substituição dar-se-á quando da imposição da pena pelo juiz na sentença, que fará uma análise da viabilidade da substituição.

Todavia, nada obstante o caráter substitutivo das penas restritivas de direitos descritas no Código Penal, já podemos encontrar no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) algumas restrições de direitos que serão aplicadas cumulativamente com a pena privativa de liberdade. Exemplos: artigos 302 e 303 do CTB.

Não me convence o argumento defendido por alguns doutrinadores de que o porte de drogas para consumo pessoal, bem como a semeadura, cultivo ou colheita de plantas destinadas à preparação de drogas para consumo do agente (artigo 28, caput, e §1º), não mais são considerados crimes, mas infrações sui generis, haja vista que a Lei de Introdução ao Código Penal — Decreto-lei 3.914/1941 — considera como crime a infração penal a que a lei comine pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (artigo 1º).

A Lei de Introdução ao Código Penal, como o próprio nome já diz, traz considerações acerca do Código Penal de 1940. Sabemos que a parte geral do Código Penal foi totalmente modificada pela reforma de 1984. A antiga parte geral do Código Penal sequer previa penas restritivas de direitos. Eram consideradas penas principais apenas a reclusão, a detenção e a multa (artigo 28). Havia penas acessórias elencadas no artigo 67, mas não existia previsão de penas restritivas de direitos como conhecemos hoje.

Por esse motivo, a Lei de Introdução ao Código Penal não fez menção às penas restritivas de direitos, que são consideradas espécies de penas pelo artigo 32 do atual Código Penal.

O artigo 28 está inserido no Capítulo III, do Título III da Lei de Drogas. E este capítulo trata dos crimes e das penas. Ou seja, a própria lei diz que estas condutas são crimes.

Desta forma, como as condutas são tipificadas como crime e a lei é especial, não há como aceitar que houve descriminalização.

Vencidos esses argumentos, outros passaram a ser levantados. Que apenas o usuário seria prejudicado, não podendo a lei punir a autolesão, e que haveria indevida invasão à sua intimidade, direito protegido pela Constituição Federal.

A delimitação do tema já começa de forma equivocada, pois o crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas tem como objetividade jurídica a saúde pública (principal), e a vida, a saúde e a tranquilidade das pessoas individualmente consideradas (secundário).

Não está sendo punida a autolesão, mas o perigo que o uso da droga traz para toda a coletividade. Também não está sendo violada indevidamente a intimidade e a vida privada do usuário de drogas, uma vez que esses direitos não são absolutos e podem ceder quando entrarem em conflito com outro direito de igual ou superior valia, como a saúde e a segurança da coletividade.

Se, é certo, que o uso de drogas prejudica a saúde do usuário, o que ninguém coloca em dúvida, também é certo que ele não é o único prejudicado. A coletividade como um todo é colocada em risco de dano. A saúde pública é bem difuso, mas perceptível concretamente. E cabe ao Estado proteger seus cidadãos dos vícios que podem acometê-los. O vício das drogas tem o potencial de desestabilizar o sistema vigente, desde que quantidade razoável de pessoas for por ele atingida.

Não há levantamento do número de mortes por overdose ou por doenças causadas pelo uso de drogas ilícitas. Também não há estatística confiável do número de crimes que são cometidos por pessoas sob o seu efeito. E, também, não são sabidos quantos crimes são praticados pelo fato de a vítima ser usuária de drogas.

Mas uma coisa não pode ser negada, o malefício das drogas, seja de forma direta ou indireta, é muito grande.

Bem por isso esse crime é considerado de perigo abstrato, ou seja, o risco de dano não precisa ser provado, sendo presumido de forma absoluta.

Quem milita na área penal, notadamente no Júri, sabe que boa parte dos crimes de homicídio é cometida por pessoas que se encontram sob o efeito de drogas, sejam lícitas ou ilícitas. Muitos crimes são praticados contra os usuários de drogas por algum motivo relacionado ao seu vício (desentendimentos, pequenos crimes, dívida com traficantes etc.).

Aquele velho argumento de que o álcool também é droga, sinceramente não convence. Não é porque a situação está ruim que nós vamos piorá-la. O número de pessoas alcoolistas é enorme, e não é por isso que vamos aumentar a quantidade de viciados em drogas.

Um dos motivos que inibe o uso da droga é o fato dela ser proibida. Liberando o seu uso, que é o que a descriminalização irá fazer, certamente vai incentivar a dela se valerem aqueles que têm medo das consequências, seja na área penal ou na social. Se, é permitido, porque não posso fazer uso social da maconha, da cocaína, do crack e de outras drogas? Essa indagação passará pela cabeça de inúmeras pessoas, mormente das mais jovens.

E não pensem que isso vai acabar com o tráfico. O traficante, na maioria das vezes em que é preso, tem em sua posse pequena quantidade de drogas para poder se passar por usuário. Nessa situação, nenhuma punição haverá com a descriminalização. E a condenação pelo artigo 28 da Lei de Drogas atualmente enseja reincidência. Nem isso será mais possível, o que incentivará a prática de outros delitos. E já há forte jurisprudência no sentido de que nem a reincidência a condenação pelo porte de drogas para uso pessoal acarreta.

E quem irá fornecer a droga para os usuários? O Estado? Certamente que não! O usuário continuará a comprar a droga dos traficantes. Mesmo que o Estado passe a fornecer a droga de forma controlada, nem assim o tráfico irá acabar. A procura será muito maior do que a oferta. E o Estado não terá condições de fornecer todos os tipos de drogas, o que o traficante saberá explorar.

Essas são algumas das razões pelas quais não é possível a declaração da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

A situação, que está ruim, pois estamos perdendo a guerra contra as drogas, só irá piorar.

A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal não é o caminho. Ela somente irá aumentar o número de usuários e de viciados, além de fomentar o tráfico e colaborar para o aumento dos crimes violentos.

Glamourizar o uso de drogas, enaltecer ou mesmo justificar a conduta daquele que as vende, dentre outros motivos, para saciar seu vício é atitude impensada, irresponsável e que prejudicará ainda mais o combate ao comércio maldito.

Pior ainda é ver autoridades públicas, até mesmo operadores do direito em todos os níveis, defender esse absurdo, chegando ao ponto de um deles escrever que "... a criminalização da venda de drogas, entre pessoas maiores e no gozo de suas faculdades mentais, é inconstitucional, por violar princípios penais como os da legalidade e da lesividade, além de ser incapaz de proteger a "saúde pública", pois não há demonstração de que a conduta possa lesá-la ou colocá-la em perigo concreto" (ConJur, 4/7/2020).

Esquecem-se aqueles que assim pensam que há obstáculo intransponível para a declaração da inconstitucionalidade do tipo penal de tráfico de drogas em todas as suas formas. Isso porque existe mandado de criminalização expresso no artigo 5º, inciso XLIII, da CF, determinando que a lei o considere como crime de especial gravidade, equiparado a hediondo, ensejando a seu autor, coautor ou partícipe, severas consequências penais e processuais penais. Nem mesmo por emenda constitucional referido dispositivo pode ser alterado ou revogado, por se tratar de cláusula pétrea, núcleo intangível da Constituição Federal (artigo 60, §4º, IV, da CF).

No entanto, já começou o julgamento de recurso extraordinário interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em que se discute a questão da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal (artigo 28 da Lei de Drogas) e os três primeiros votos são pela declaração da inconstitucionalidade da norma (RExt 635.659).

O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade total da norma do artigo 28, ou seja, para todas as espécies de drogas.

Já os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin votaram pela inconstitucionalidade apenas quanto à maconha (cannabis sativa), permanecendo crime o porte para uso pessoal das demais espécies de drogas.

Foi pedido vista dos autos pelo ministro Teori Zavascki, que, devido a seu falecimento, foi substituído pelo ministro Alexandre de Moraes, que apresentará seu voto.

Sendo a norma julgada inconstitucional, deixam de ser aplicáveis todos os dispositivos previstos no artigo 28 da Lei de Drogas, alcançando tanto o porte de drogas para consumo pessoal quanto o seu cultivo (artigo 28, caput, e §1º).

Vai depender se a decisão alcançará apenas a maconha ou a todas as outras espécies de drogas.

A situação ficará um tanto esdrúxula. Será punido o tráfico de todas as espécies de drogas, mas o porte e cultivo para consumo pessoal de todas elas ou apenas da maconha, a depender do resultado do julgamento, não continuarão a ser criminalizados, sendo fato atípico.

Não sendo mais a conduta considerada criminosa, não gerará reincidência e a polícia deixará de intervir para sua prevenção e repressão. Isso porque o artigo 144 da Constituição Federal atribui às polícias (federal, civil e militar) o combate a infrações penais e não a outras espécies de ilícitos. Não nos parece constitucional seu emprego para apreender usuários e viciados se o porte de droga para consumo pessoal e seu cultivo não mais forem considerados infração penal.

Somente com o julgamento final do recurso é que teremos conhecimento das suas consequências. Sendo desprovido, nada mudará. No caso de provimento, dependerá de qual o seu resultado (total ou parcial).

Espero, sinceramente, para o bem da nação, que já sofre demasiadamente com o tráfico de drogas desenfreado, que os próximos ministros a votarem abram divergência e não permitam que o caos seja instalado no país, como ocorreu em vários países que adotaram esse modelo, como o Uruguai, em que a criminalidade que o tráfico traz em seu bojo aumentou e sem que houvesse a redução do comércio ilícito de drogas.

 

Comments are closed.