Por Eduardo Januário Newton -
Ainda que seja fruto de uma construção que decorre da decisão liminar proferida no agravo regimental na Reclamação Constitucional nº 29.303, não resta mais qualquer dúvida quanto à ampla abrangência da audiência de custódia. Superada, portanto, se encontra a quadra histórica em que subsistia limitação na fruição desse direito subjetivo público aos casos de prisão em flagrante, tal como se verificava no momento de implementação dos diversos projetos-piloto incentivados pelo Conselho Nacional de Justiça.
As normas convencionais sobre a audiência de custódia, aliás, jamais legitimaram a exegese restritiva que perdurou até o advento de paradigmática manifestação decisória elaborada pelo ministro Edson Fachin diante da provocação do Supremo Tribunal Federal realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).
Em razão do decidido na aludida reclamação constitucional, e que não se olvide os sucessivos pedidos de extensão, uma nova realidade foi estabelecida no processo penal brasileiro, qual seja, independentemente do título prisional, deve a pessoa privada de liberdade ser apresentada à autoridade judicial.
A questão a ser tratada neste texto vai além do próprio objeto da citada reclamação constitucional, pois visa a examinar a possibilidade, ou não, da realização da audiência de custódia nos casos de imposição da prisão administrativa, uma questão que não foi expressamente provocada pela DPRJ.
Antes mesmo de realizar uma análise sobre a possibilidade, ou não, da realização da audiência de custódia diante da imposição da prisão administrativa, é imprescindível tecer considerações jurídicas sobre essa modalidade de restrição da liberdade ambulatória, o que justifica volver os olhares para o Direito positivo.
Na ordem constitucionalmente existente, a prisão administrativa tem de ser compreendida como sanção imposta aos militares que implica em restrição da liberdade ambulatória. Considerando o fato de que o critério da proporcionalidade deverá pautar qualquer responsabilização administrativa, essa modalidade prisional somente restará cabível diante dos ilícitos administrativos reputados como graves.
A previsão de prisão administrativa nos regulamentos disciplinares das Forças Armadas está em conformidade constitucional [1]. Por sua vez, no âmbito das forças auxiliares, isto é, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, não se mostra possível visualizar mais a compatibilidade legal de eventuais previsões da prisão administrativa, já que, por meio da Lei Federal nº 13.967/19, ocorreu a positivação da proibição de imposição dessa modalidade de sanção aos militares estaduais e distritais. Ao tempo da elaboração deste texto, duas ações diretas de inconstitucionalidade — ADIs nºs 6595 e 6663 — questionam essa vedação de imposição da prisão administrativa. Todavia, em nenhuma delas foi concedida liminar, devendo, por força da presunção de constitucionalidade, ser reputada a vedação em questão como compatível com a ordem jurídica instituída em 5/10/1988.
A necessidade de realização da audiência de custódia no caso da prisão administrativa, quando esta se mostra possível, é aferida nas normas convencionais que positivam o direito de o preso ser apresentado à autoridade judicial. Como já assinalado, o artigo 7º, 5, Convenção Americana sobre Diretos Humanos e o artigo 9º, 3, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em suas redações, não permitem interpretações restritivas, o que, ademais, possui arrimo no cânone interpretativo da regra pro homine. Se não bastasse isso, a partir das normas convencionais, mais especificamente da previsão de apresentação da pessoa detida, Mauro Fonseca Andrade e Pablo Rodrigo Alflen sustentam o caráter amplo do dever de apresentação [2], o que, portanto, alcançaria a restrição à liberdade ambulatória decorrente da responsabilização administrativa de determinado grupo de servidores públicos.
A questão terminológica não pode ser compreendida como uma questão cerebrina ou de menor importância, vez que, apesar de a prisão civil não ter sido objeto de expressa menção da Reclamação Constitucional nº 29.303, a apresentação do devedor de alimentos à autoridade judicial, quando efetivada a medida coercitiva extrema, é uma realidade e que tem amparo na vasta amplitude do conceito de pessoa detida.
Diante do que veio a ser apresentado, não constitui qualquer posicionamento heterodoxo sustentar o cabimento da audiência de custódia nos casos de imposição da prisão administrativa. Na verdade, a não realização da audiência de custódia diante da prisão administrativa constitui modalidade de omissão inconvencional [3], o que, em tese, permite a responsabilização internacional pelo descumprimento de tratados internacionais de direitos humanos.
Mas não basta defender a realização da audiência de custódia no caso de prisão administrativa, é necessário apontar, caso existentes, os limites cognitivos do ato judicial. Para o estabelecimento dos contornos da atuação jurisdicional é salutar ter em vista o disposto no artigo 142, §2º, Constituição da República, que veda o manejo da ação de Habeas Corpus para se discutir sanções administrativas impostas aos militares. Como já destacado por Eros Roberto Grau, o Direito deve ser interpretado como um sistema [4]; daí, necessário que a proibição contida no artigo constitucional destacado seja parametrizada com o direito constitucional de acesso à Justiça, que se encontra previsto no artigo 5º, inciso XXXV, Constituição da República. Como resultado dessa interpretação sistemática, consolidou-se o entendimento de que o mérito da prisão administrativa não é sindicável; porém, os elementos vinculados do ato podem ser passiveis de aferição por meio do controle jurisdicional [5].
A lógica estabelecida jurisprudencialmente quanto à possibilidade de uso de Habeas Corpus para o questionamento de sanções disciplinares impostas aos militares, isto é, o exame sobre os elementos vinculados do ato administrativo, deverá servir como limite cognitivo para a atuação judicial em sede de audiência de custódia decorrente da anterior imposição da prisão administrativa. Assim, a competência, a finalidade e a forma poderão ser objeto de apreciação da autoridade judicial, no momento da realização do ato decorrente da cominação de prisão administrativa, podendo mesmo gerar a anulação da sanção. Esse mesmo resultado poderá ser alcançado, caso se trate de prisão administrativa imposta a um militar estadual ou distrital, já que, conforme assinalado, a Lei nº 13.967/19 impede que pena seja imposta a qualquer integrante das forças auxiliares. Ademais, essa pronta atuação jurisdicional atenderia ao "princípio" da celeridade processual, pois a declaração de nulidade da prisão administrativa não dependeria de um posterior ajuizamento da ação de Habeas Corpus.
Além da possibilidade de anulação da prisão administrativa, a audiência de custódia, diante dessa hipótese, se justifica por ser um importante elemento de prevenção e repressão à tortura. E que não se despreze a forte presença do ethos guerreiro [6] no ambiente militar, o que acaba por conferir uma forte possibilidade da violência se fazer presente na realidade da caserna.
Considerando o recente levantamento publicado por importante canal da mídia [7], a realização do controle judicial da prisão administrativa por meio da audiência de custódia poderá impedir a perpetuação de um cenário de responsabilização que mais leva em conta o local ocupado na hierarquia militar do que efetivamente o grau de culpa pela prática de um ilícito.
Por fim, a realização da audiência de custódia no caso de imposição da prisão administrativa encontra amparo nas normas convencionais que positivam o instituto jurídico, sendo certo que, por conseguinte, a não realização configura omissão inconvencional. Diante da função de prevenção e repressão à tortura, depara-se com mais um fundamento para a realização da audiência de custódia no caso retratado neste texto. Todavia, a atuação judicial se mostra limitada ao exame dos elementos vinculados do ato administrativo que impôs a sanção mais gravosa e ainda poderá se mostrar alvissareiro instrumento de limitação ao ethos guerreiro e a um injusto modelo de responsabilização que leva em conta o grau ocupado na hierarquia militar, e não o ilícito em si praticado pelo agente público.