SISTEMA ACUSATÓRIO: TEM NO ORDENAMENTO JURÍDICO, MAS FALTA NA JURISPRUDÊNCIA

Por Gina Ribeiro Gonçalves Muniz -  

O pacote "anticrime" — que ratificou expressamente a opção constitucional pelo sistema acusatório — já está em vigor há quase dois anos, mas ainda encontramos inúmeras decisões com matizes inquisitoriais envolvendo a temática das prisões preventivas.

O Código de Processo Penal, consoante os artigos 282, §2°, 311 e 316, todos com redação dada pela Lei n° 13964/19, veda a decretação de ofício da prisão preventiva, bem como das medidas cautelares diversas da prisão. Qualquer interpretação enviesada dessas ou de outras normas do CPP que visem a retirar do juiz a qualidade de espectador no processo penal viola o sistema acusatório.

Inicialmente, vamos abordar de forma crítica a decisão da 2ª Turma do STF, nos autos do AgRg no HC 203.208 (relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 22/8/2021), que concluiu pela não vinculação do magistrado a eventual pedido de revogação de prisão preventiva formulado pelo representante do Ministério Público, no curso do processo penal [1].

Imagine-se que, em um determinado processo, foi decretada a prisão preventiva do acusado, mediante decisão fundamentada do juiz competente. Transcorrido um intervalo de tempo, o representante do Ministério Público — diga-se de passagem, titular da ação penal pública — entende que se esvaiu o periculum libertatis outrora apresentado como o fundamento para a segregação cautelar e requer, ciente de que a medida preventiva se submete à cláusula rebus sic standibus, a revogação da prisão. Foi justamente diante de um caso concreto semelhante a essa situação hipotética narrada que entendeu o ministro Gilmar Mendes, nos autos da decisão acima mencionada, pela possibilidade de o juiz negar o pedido de revogação da preventiva, sob o fundamento de que já foi provocado a decretar a prisão outrora e que, portanto, não estaria agindo de ofício.

Pensamos, todavia, que se a acusação entende que houve mudança do substrato fático-probatório naquele momento processual e, portanto, não é mais necessária a prisão cautelar, sua manutenção por decisão judicial seria uma burla ao sistema acusatório, porquanto estaria o magistrado indo de encontro ao pedido do titular da ação penal e agindo, pois, de ofício.

A (infeliz) redação do §5° do artigo 282 do CPP preceitua que "o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem" (grifo da autora). Uma interpretação literal desse artigo autorizaria concluir que o juiz pode, de ofício, voltar a decretar a prisão preventiva. Todavia, há muito restaram consolidadas a importância da interpretação sistemática e a inadmissibilidade de se compreender o sistema exegeticamente. Não se pode desrespeitar a teleologia da norma e afastar os demais cânones hermenêuticos na concretização normativa [2] do disposto no citado artigo.

Para evitar inconsistências interpretativas, entende-se que o juiz pode, de ofício, apenas revogar ou substituir a prisão preventiva e as demais medidas cautelares ou ainda conceder uma ordem de Habeas Corpus. Nessas situações, o juiz age consoante sua missão constitucional de ser guardião dos direitos e garantias fundamentais do acusado.

Vamos além: independentemente de pedido expresso de revogação da prisão pelo Parquet, não pode o juiz manter uma prisão, se houver qualquer manifestação ministerial incompatível com a existência de uma segregação cautelar. Por exemplo, se o representante do Ministério Público requer a absolvição em alegações finais, isso nos autoriza a concluir que, na ótica da acusação, não mais subsistem os requisitos autorizadores da prisão preventiva e, portanto, o magistrado deveria, mesmo diante da famigerada (e inconstitucional) regra do artigo 385 do CPP, conceder liberdade ao réu, sob pena de violação ao sistema acusatório [3].

Em outro giro, é preciso frisar — porque o óbvio às vezes precisa ser dito no processo penal — que, se o réu responde solto a um processo penal, eventual requerimento de condenação do Parquet desacompanhado de expresso pedido de prisão preventiva não autoriza que o juiz decrete a segregação cautelar, haja vista que a proibição de agir de ofício vigora durante toda a persecução penal, e não apenas até o momento da sentença condenatória recorrível.

Admitir-se que o juiz pode decretar prisão preventiva de ofício na sentença condenatória recorrível equivale a reconhecer que, a partir de desse momento processual, o magistrado pode usurpar o papel do Ministério Público, o que destoa do modelo constitucional acusatório.

Trata-se de um raciocínio simples, mas que é deturpado na práxis penal brasileira. Não é à toa que a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro só conseguiu cessar saga inquisitória em caso similar mediante impetração do remédio heroico no STJ (HC 699150/RJ, 6ª Turma, relator ministro Reynaldo Soares, decisão monocrática, julgado em 11/10/2021).

Nessa onda inquisitória que invade o sistema prisional, destacamos ainda uma decisão do STJ, nos autos do AgRg no RHC 144.647, relator. ministro Antônio Saldanha, 6ª Turma, julgado em 17/8/2021, na qual se ratificou que é vedada a conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva (entendimento firmado pela 3ª Seção do STJ no RHC nº 131.263/GO, relator ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/2/2021, DJe 15/4/2021 [4]), mas se admitiu a convalidação da prisão, quando há manifestação posterior do Ministério Público em pedido de revogação. Pensamos ser inconstitucional essa brecha inquistória. Vejamos.

O sistema acusatório rechaça a figura do magistrado protagonista como forma de assegurar a imparcialidade do julgador no processo penal. A teoria da dissonância cognitiva [5] explica que, quando um juiz decreta uma prisão preventiva de ofício, sua postura ativa contamina, muitas vezes involuntariamente, suas posteriores decisões no curso do processo.

Ora, depois que o juiz converte de ofício a prisão em flagrante em preventiva, já está maculada a sua imparcialidade e violado o sistema acusatório. Eventual pedido ou parecer posterior do Ministério Público — órgão que teve sua função indevidamente usurpada — não tem o condão de restabelecer o status quo ante.

Lutar pela implementação da figura do juiz espectador não significa inviabilizar a possibilidade de decretação de medidas cautelares em desfavor do réu ou obstar a eficiência persecutória. Trata-se, tão somente, de conferir à acusação e ao órgão julgador os lugares que lhe foram constitucionalmente estabelecidos e, em consequência, garantir ao acusado que as decisões que lhe atingem serão tomadas por um juiz imparcial.

Colacionamos, por fim, lição importante de Rosmar Alencar: "Não é consentâneo com o sistema acusatório e positivista, a criação de direito pelos tribunais sem amparo nos estreitos limites constitucionais" [6].

O sistema acusatório está previsto, ainda que implicitamente, na Constituição Federal (artigo 129, inciso I) e expressamente no CPP (artigo 3ºA — cuja vigência encontra-se suspensa, em razão de decisão cautelar do ministro Luiz Fux nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6298, 6299, 6300 e 6305 — e inúmeros outros dispositivos).

Todavia, para além da enunciação do sistema acusatório no ordenamento jurídico, impõe-se hoje o desafio de garantir a sua efetividade e evitar que um distanciamento prático da diretriz constitucional dele emanada conduza a um processo penal autoritário e repressivo.

 

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