Por Rossana Brum Leques e Myrella Antunes Fernandes -
O uso de geolocalização em investigações tem sido alvo de intensos debates nos tribunais superiores.
No Superior Tribunal de Justiça, as discussões são capitaneadas pelo ministro Sebastião Reis Júnior no decorrer das sessões da 6ª Turma da referida corte.
Neste semestre, a discussão sobre delimitações temporais e de alcances dos pedidos de compartilhamento dos chamados "dados telemáticos" a empresas de tecnologia e provedores de serviços na internet, como o Google, bem como seu caráter genérico, já foi afetada pelo Supremo Tribunal Federal sob o Tema 1.148.
A esse respeito, não são poucos os pontos interessantes sobre a discussão.
Um dos primeiros aspectos controversos é a utilização do geofencing (registro de geolocalização), tecnologia originalmente voltada para envio direcionado de mensagens, propagandas ou notificações a determinadas pessoas em uma determinada região (por meio de smartphones, smartwatches, tablets e outros equipamentos).
Nas investigações que foram judicializadas, em regra, a autoridade policial requer ao magistrado encaminhamento de ofício a grandes empresas, como o Google, para que informem diversos dados vinculados à plataforma, como fornecimento de geolocalização de todas as pessoas que transitaram sob determinadas coordenadas geográficas indicadas num determinado período de tempo.
Não raro, os magistrados deferem o pedido sem maiores justificativas e fundamentação, ao argumento de se tratar tão somente de meio para obtenção de registro de localização, trazendo desconforto às plataformas, que frequentemente se insurgem contra os pedidos genéricos sob a premissa de que há uma violação à privacidade dos usuários (que passam a ter seus dados compartilhados com autoridades policiais sem qualquer motivo concreto).
Em caso julgado no início deste mês de agosto (cf. RMS 64.941/RJ — que versa sobre a apuração da execução da vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes), por exemplo, solicitou-se ao Google dados cadastrais, registros de conexão, eventuais mídias postadas na plataforma Google, histórico de navegação, de pesquisa, de localização, listagem de backups efetuados, agendas e aplicativos instalados de todas as pessoas que transitaram por determinada coordenada geográfica no período de dois anos anteriores ao fato investigado, sob a premissa de que seriam essenciais para descobrir quem cometeu o crime.
No início do século, o Supremo Tribunal Federal foi categórico em afirmar e delimitar a possibilidade de restrição dos direitos e garantias individuais e da possibilidade de compartilhamento de dados que permitam a identificação de determinada pessoa (cf. MS 23.452/RJ). Ocorre que, passados mais de 30 anos da Constituição Federal, com o aperfeiçoamento tecnológico, a velha definição do que seriam dados telemáticos merecem uma atenção maior. Até porque, o constituinte, ao prever o que seriam dados telemáticos, não tinha como antever os avanços tecnológicos que o mundo passaria.
E, frise-se, não é intuito do presente artigo se insurgir contra o uso de meios de investigação aperfeiçoados com um apoio da tecnologia. No entanto, o sacrifício de direitos fundamentais, como o direito à privacidade e intimidade de dados, que hoje são extremamente sensíveis e pessoais, não pode ser chancelado.
O que geralmente ocorre não é o mero acesso aos dados telemáticos, mas acesso a um leque de informações que se referem quanto ao modo que inúmeras pessoas que transitaram por um determinado local se utilizaram do seu telefone, dos sites acessados, históricos de pesquisa e backup — é uma verdadeira invasão de privacidade. Tudo isso em decisões muitas vezes genéricas, que sequer especificam as pessoas que são objeto da investigação.
Assim, os magistrados não fundamentam de forma adequada a decretação das medidas pleiteadas pela autoridade policial ou Ministério Público porque não há um afunilamento das investigações. Desse modo, em sacrifício à privacidade de muitos — cuja violação deveria se dar em um cenário de exceção e necessidade —, independentemente da gravidade do crime investigado, o uso da tecnologia serve como meio mais rápido para concluir uma investigação, tal como uma "escada" ou "atalho". Isso é dizer, o problema do uso da tecnologia se dá quando a determinação judicial não observa a necessidade de delimitação concreta, de modo a preservar a privacidade daqueles que nenhuma relação possuem com as condutas criminosas em apuração.
Os avanços tecnológicos e a grande ineficiência das investigações não podem justificar o ato de pular etapas necessárias de averiguação e a indicação de justamente ser essa fase a responsável por garantir a delimitação das pessoas suspeitas. Até porque, a pretexto de realizar o filtro necessário, viola-se a privacidade de um número indeterminado de pessoas, muitas vezes por uma devassa de dados sigilosos que são mantidos pelas plataformas. O braço do Estado não pode violar direitos individuais sob a premissa de ser tão somente dados atinentes a registros cadastrais, quando em verdade não o são.
Com os avanços da Lei Geral de Proteção de Dados, mesmo que não regulada no âmbito penal, fato é que essas empresas de tecnologia têm um dever de guardar e não compartilhar os dados de seus usuários — tanto a entes privados, quanto a entes públicos, sem que justifiquem a violação do direito à privacidade (que deve ocorrer excepcionalmente, vale reiterar).
Parece comezinho, mas a fundamentação da decisão judicial possui previsão no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, e não deve ser letra morta. Decisões genéricas devem ser rechaçadas. O avanço na proteção de dados abarca tanto o público quanto o privado e a justificativa de avanço na tecnologia não pode ser o meio violador. Um número baixo de investigações policiais sobre crimes graves, como o homicídio, não pode ser argumento válido para relativização de direitos fundamentais. Até porque, acolhido esse argumento como válido, é possível fazer valer as palavras de Orwell em 1984: "Nada era seu de fato, exceto por alguns centímetros cúbicos dentro de seu crânio". Precisamos estar atentos.