Íntegra Do Voto Do Ministro Ayres Britto Sobre Norma Mais Branda Para Crimes De Tráfico

26/05/2011 Plenário
Recurso Extraordinário 596.152 São Paulo
V O T O – V I S T A
O Senhor Ministro Ayres Britto (Relator)
Cuida-se de recurso extraordinário, manejado pelo Ministério
Público Federal, contra acórdão proferido pelo Superior Tribunal de
Justiça. Acórdão assim ementado (HC 101.125/SP):
“CONSTITUCIONAL – PENAL – HABEAS CORPUS –
TRÁFICO DE DROGAS – CRIME PRATICADO SOB A ÉGIDE
DA LEI 6.368/1976 – REDUÇÃO DO ARTIGO 33, § 4º DA LEI
11.343/2006 – NOVATIO LEGIS IN MELLIUS –
RETROATIVIDADE – IMPERATIVO CONSTITUCIONAL –
ORDEM CONCEDIDA PARA RESTABELECER A DECISÃO
DE PRIMEIRO GRAU. CONCEDIDA ORDEM DE OFÍCIO
PARA SUBSTITUIR A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E
ALTERAR SEU REGIME DE CUMPRIMENTO.
1. É imperativa a aplicação retroativa da causa de
diminuição de pena contida no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei
11.343/2006 feita sob a pena cominada na Lei 6.368/1976, em
obediência aos comandos constitucional e legal existentes nesse
sentido. Precedentes.
2. Não constitui uma terceira lei a conjugação da Lei
6368/76 com o parágrafo 4º da Lei 11.343/06, não havendo óbice
a essa solução, por se tratar de dispositivo benéfico ao réu e
dentro do princípio que assegura a retroatividade da norma
penal, constituindo-se solução transitória a ser aplicada ao caso
concreto.
3. Ordem concedida para cassar o acórdão do Tribunal a
quo e restabelecer a decisão da Vara de Execuções Criminais de
São Paulo, juntada à f. 17/18, que aplicou retroativamente a
causa de redução.”
2. Pois bem, o Ministério Público Federal entende que a decisão por
ele impugnada ofende o inciso XL do art. 5º da Constituição Federal de
1988. Daí lembrar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(Extradição 925, Plenário) no sentido de que a norma em causa não
autoriza a “combinação das regras mais benignas de dois sistemas legislativos
diversos formando uma terceira lei”. Noutros termos, para ele, Ministério
Público Federal, não é de se dar a “aplicação pinçada e simultânea de duas
leis ao mesmo caso, quando estas se confrontam no tempo. A medida correta, em
tais situações, é a que pugna pela análise isolada de cada legislação, para que se
verifique qual delas se mostra mais favorável ao réu” (fls. 154 e 156).
3. De parelha com essa interpretação, argúi o recorrente ofensa ao
princípio da separação dos Poderes. É que “não cabe ao Judiciário o papel de
legislar, pois, se assim fosse, haveria patente invasão de competência de um poder
no outro, levando ao desequilíbrio o sistema de freios e contrapesos adotado por
nosso Ordenamento Jurídico”. Donde o pedido de conhecimento e
provimento do recurso extraordinário, tendo em vista a demonstrada
repercussão geral da matéria constitucional.
4. Em sede de contra-razões, a Defensoria Pública da União sustenta
que:
I - o acórdão recorrido concedeu a ordem de habeas corpus. Logo, não
é cabível o recurso ordinário de que trata a alínea “a” do inciso II do art.
102 da Magna Carta;
II – é de incidir a Súmula 400 do STF, uma vez que a decisão
recorrida deu razoável interpretação à lei;
III - o acórdão adversado nada mais fez do que dar plena efetividade
ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu (inciso XL do
art. 5º da CF/88);
IV - o julgador “não está criando nada, mas apenas se utilizando,
aplicando ao caso concreto leis federais que seguiram o processo legislativo
constitucional e foram aprovadas pelo Congresso Nacional”;
V - o magistrado “deve se utilizar do ordenamento jurídico como um todo,
uma vez que esse é sistemático e as leis não existem por si só, mas fazem parte
desse ordenamento”.
5. Assim equacionando juridicamente a causa, a Defensoria pugna
pelo não-conhecimento do recurso extraordinário. Quanto ao mérito,
requer o desprovimento do recurso por ausência de contrariedade à
Constituição Federal.
6. Continuo neste relembrar das coisas para pontuar que: a) a
Procuradoria-Geral da República opinou pelo provimento do recurso
extraordinário; b) foi reconhecida a repercussão geral da matéria
constitucional suscitada neste apelo extremo, conforme certidão de fls.
206.
7. Dito isso, faço um novo retrospecto dos fatos postos a julgamento:
I – Luís Fernando Penna (recorrido) foi condenado a 3 (três) anos e 4
(quatro) meses de reclusão, em regime fechado, pelo crime de tráfico de
drogas, nos termos do art. 12 da Lei 6.368/1976;
II – com a superveniência da Lei 11.343/2006, o Juízo da Vara de
Execuções Criminais da Comarca de São Paulo acolheu a pretensão
defensiva de estender ao acusado a causa de diminuição de que trata o §
4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. Pelo que a reprimenda ficou estabelecida
em 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão;
III – deu-se que o Tribunal de Justiça paulista acolheu agravo em
execução, interposto pelo Ministério Público. O que fez para tornar
prevalecente o patamar fixado na sentença originária (ou seja, 3 (três)
anos e 4 (quatro) meses de reclusão);
IV – já o Superior Tribunal de Justiça, esse concedeu a ordem de
habeas corpus impetrado pelo recorrido. Ao fazê-lo, restabeleceu a decisão
do Juízo das Execuções Penais para permitir ao paciente, ainda uma vez,
o gozo da nova causa de diminuição da pena, criada pela mais recente Lei
de Drogas.
8. Avanço para pontuar que o ministro Ricardo Lewandowski
(relator) votou pelo provimento do recurso (Sessão de 02/12/2010). No
que foi acompanhado pela ministra Cármen Lúcia e pelo ministro
Joaquim Barbosa. Divergiram do Relator os ministros Cezar Peluso e Dias
Toffoli.
9. Bem impressionado com as duas teses que se formaram no início
deste julgamento, pedi vista dos autos para uma análise mais refletida da
matéria. O que me permitiu elaborar o voto que ora trago a julgamento.
10. Muito bem. Anoto que a discussão aberta nestes autos diz com o
tema do conflito intertemporal de leis penais. Mais precisamente, o nosso
desafio é saber se a causa de diminuição de pena, instituída pelo § 4º do
art. 33 da Lei 11.343/2006, pode, ou não, ser estendida a réus também
condenados pelo crime de tráfico de entorpecentes, porém sob a vigência
da Lei 6.368/1976.
11. Transcrevo do voto do eminente Relator a procedente anotação
de que “a doutrina sempre esteve dividida em relação a esse tema”. Isso porque
“[...] Há quem defenda que a aplicação de tal medida
isoladamente equivaleria à vedada prática de combinar leis,
outorgando ao magistrado competência reservada ao
legislador, com infração aos princípios da legalidade e da
separação dos poderes.
Essa corrente doutrinária argumenta que a conjugação de
lei anterior com legislação posterior, para se extrair de cada
uma delas o que melhor beneficiar o réu, seria totalmente
inadmissível, pois o Poder Judiciário estaria criando uma
terceira lei, invadindo, por consequência, competência
reservada ao Poder Legislativo.
Nesse sentido, o grande jurista Nelson Hungria já
asseverava que:
'(...) cumpre advertir que não podem ser entrosados os
dispositivos mais favoráveis da lex nova como os da lei antiga,
de outro modo, estaria o juiz, arvorado em legislador, formando
uma terceira, dissonante no seu hibridismo, de qualquer das leis
em jogo. Trata-se de princípio pacífico em doutrina: não pode
haver aplicação combinada de duas leis'.
Nessa mesma linha, encontram-se, ainda, Aníbal Bruno,
Heleno Cláudio Fragoso, Jair Leonardo Lopes, Paulo José da
Costa Júnior, Von Lizt, Claus Roxin, entre outros.
Em doutrina mais recente, Eugenio Raul Zaffaroni e José
Henrique Pierangeli adotam, também, posicionamento
contrário à mistura de preceitos legais mais benéficos.
Sustentam que ao juiz é vedada a utilização de preceitos
isolados, pois tal proibição não possui natureza apenas lógica,
que seria em princípio superável, mas também racional, 'vale
dizer, democrático: o juiz não pode criar uma terceira lei porque
estaria aplicando um texto que, em momento algum, teve vigência'.
Há, no entanto, corrente diversa, que admite a combinação
de leis, capitaneada por doutrinadores de renome, tais como
Cezar Bittencourt, Magalhães Noronha, José Frederico
Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus e Celso
Delmanto. Invocando o princípio da retroatividade da lei penal
mais benéfica, concluem os citados jurisconsultos pela
possibilidade de uma lex tertia, no intuito de favorecer o réu.
De acordo com essa corrente de pensamento, segundo a
qual 'quem pode o mais pode o menos', se o juiz pode aplicar a
lei por inteiro, também pode aplicá-la parcialmente. Não se
trataria, portanto, de criação de nova lei, mas segundo o
saudoso José Frederico Marques:
'(...) o julgador em obediência a princípios de equidade
consagrados pela própria Constituição, está apenas
movimentando-se dentro dos quadros legais para uma tarefa de
integração perfeitamente legítima. O órgão judiciário não está
tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve imperar
hic et nunc . A norma do caso concreto é construída em função
de um princípio constitucional, com o próprio material fornecido
pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o mandamento
da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, a que lhe
pareça mais benigna, não vemos porque se lhe vede a combinação
de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constituição. Se
lhe está afeto escolher o 'todo', para que o réu tenha o tratamento
penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar
parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra
constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal.
(...) A verdade é que não estará retroagindo a lei mais benéfica,
se, para evitar-se a transação e o ecletismo da lei posterior não
for aplicada pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela
Constituição e tornar efetivos os postulados fundamentais com
que ela garante e proclama os direitos do homem'.
Assim, entendem cabível um verdadeiro recorte das
legislações, admitindo que se combine partes de uma lei
anterior com outras de uma lei nova, tudo sob pretexto de
beneficiar o réu.
[...]”
12. Foi diante desse dualismo doutrinário que o Supremo Tribunal
Federal acabou por se filiar à corrente que não aceita a conjugação de lei
anterior com dissonante legislação posterior, ainda que para beneficiar o
réu ou aquele já definitivamente condenado. Logo, jurisprudência que
inadmite o imbricamento ou a interpenetração de dispositivos legais que
se cruzem antagonicamente no tempo, porque tal conjugação culminaria
por criar um novo estatuto normativo para reger o caso concreto. E foi
assim que eu mesmo votei, nos autos da Extradição 925, julgada por este
Tribunal Pleno, na Sessão de 10/08/2005 (precedente mencionado tanto
pelo Relator quanto pelo recorrente), in verbis:
“[...] 55. Ora, ninguém discute a possibilidade da ultraatividade
e da retroatividade da lei penal mais favorável ao
acusado; postulado, esse, insculpido tanto na Constituição da
República do Paraguai (art. 14) quanto na Carta Política
brasileira (art. 5º, XL). Todavia, coisa diversa de pinçar o
conjunto mais favorável de normas de Direito Positivo é
arbitrariamente combiná-las para compor um novo modelo
legal. Uma lei imaginária. E a partir desse improvisado mosaico
fazer as vezes de legislador...
[...] 59. Este Supremo Tribunal Federal brasileiro também não
aceita a interpretação combinada de leis no tempo, com a
criação de um terceiro ordenamento só para reger um caso
específico. A propósito, o Recurso Criminal nº 1.381 (RTJ
94/501) o Recurso Criminal nº 1.412 (RTJ 96/547), e o HC 68.416
[da relatoria do ministro Paulo Brossard], este último assim
ementado:
“HABEAS-CORPUS. 'Lex mitior'. Execução de
sentença. Livramento condicional. Combinação de normas
que se conflitam no tempo. Princípio da isonomia. O
princípio da retroatividade da 'lex mitior', que alberga o
princípio da irretroatividade de lei mais grave, aplica-se
ao processo de execução penal e, por conseqüência, ao
livramento condicional, art. 5., XL, da Constituição
Federal e § único do art. 2º do Código Penal (Lei nº
7.209/84). Os princípios da ultra e da retroatividade da 'lex
mitior' não autorizam a combinação de duas normas que
se conflitam no tempo para se extrair uma terceira que
mais beneficie o réu.”
60. O que há de ser feito, então, ante um conflito de leis no
tempo e da impossibilidade da combinação de modelos legais
para resolvê-lo é buscar-se, nos parâmetros de cada caso, qual
das leis em confronto é de ser aplicada em face da sua condição
de maior benignidade.
[...]”
13. Nada obstante, prossegui meditando sobre o tema em discussão
e, hoje, passado algum tempo, alcanço uma compreensão mais elaborada
da matéria. A começar pela consideração de que não se pode perder de
vista o caráter individual dos direitos subjetivo-constitucionais em
matéria penal; sabido que o indivíduo é sempre uma realidade única ou
insimilar, irrepetível mesmo na sua compostura anímica e biopsíquica de
microcosmo ou de um universo à parte. Por isso é que todo instituto de
direito penal – crime, pena, prisão, progressão de regime penitenciário,
liberdade provisória, conversão da pena privativa de liberdade em
restritiva de direitos, por exemplo – há de ostentar o timbre da
personalização, quando de sua concreta aplicabilidade. Quero dizer: tudo
tem que ser rigorosamente personalizado na empírica aplicação do
direito penal, porque a própria Constituição é que se deseja assim
individualizadamente concretizada. Atenta, ela, Constituição, ao modo
personalíssimo de o ser humano interagir com as circunstâncias da
infração penal que lhe é imputada.
14. Nesse fluxo de compreensão do tema, penso que a norma do
inciso XL do art. 5º da Lei das Leis está a merecer de nossa parte uma
interpretação mais elástica ou tecnicamente “generosa” (falaria o
pranteado Miguel de Seabra Fagundes), na medida em que ela própria
dispõe sobre a não-retroação da lei penal, “salvo para beneficiar o réu”.
Por isso que sustentei, em obra de cunho doutrinário, que a principal
diretriz hermenêutica do cientista e operador do direito é conferir o
máximo de eficácia à Constituição, mormente naqueles dispositivos que
mais nitidamente revelem a identidade ou os traços fisionômicos dela
própria, como é o tópico dos direitos e garantias individuais. Confira-se:
“[...] 5.7.2. A Constituição é norma em sentido material, tem
força normativa própria (KONRAD HESSE) e deve ser
interpretada de acordo com a sua mais alta hierarquia; ou seja,
à lei maior deve corresponder u'a maior eficácia. Exceto se a
própria norma constitucional, inequivocamente, pedir o
adjutório de regra intercalar para a plenificação dos seus
efeitos. Noutros termos, no ápice do dilema entre reconhecer a
pleno-operância de uma norma constitucional e sua
dependência de regração de menor estirpe, a opção do exegeta
só pode ser pela operância plena da regra maior.
[...] 5.7.10. Nessa mesma direção, imaginemos uma fundada
hesitação exegética entre ampliar ou restringir a eficácia de uma
norma constitucional que outorgue direito individual oponível
ao Estado. Qual a preferência do intérprete? A preferência é
pelo fortalecimento eficacial da norma, sabido que os direitos e
garantia individuais cumprem o papel técnico e até mesmo
histórico de afirmar o princípio da dignidade da pessoa
humana e assim conter o Poder em certos limites. E a
Democracia política vive é de técnicas restritivas do Poder, ora
diretamente, ora de esguelha, e não de mecanismos
ampliadores das competências governamentais para além dos
estritos limites da necessidade do exercício delas.
[...]”
(Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 198-
200.)
15. Prossigo no raciocínio para ajuizar que o Magno Texto, no
aludido inciso XL do art. 5º, quando fala de lei penal, está falando, em
rigor, de norma penal (a “norma penal não retroagirá, salvo para beneficiar
o réu”, é como se deve ler). Cada qual dessas normas com o seu instituto
ou figura de direito, ora por inteiro, ora fragmentariamente. É dizer: em
sede de interpretação do encarecido comando que se lê no inciso XL do
seu art. 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário
de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule
por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Logo, o comando
constitucional para que a lei não retroaja é pertinente à norma jurídicopositiva,
com uma ressalva: a da imperiosa retroação dessa norma penal,
se mais benéfica ao réu ou à pessoa já penalmente condenada. Com o que
a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que
inserida a regra penal assim mais favorável, porém por mérito da
Constituição mesma. Constituição que se põe, então, como o único
fundamento de validade da retroação penal da norma de maior teor
benfazejo. É como dizer: se a benignidade está na regra penal, a retroação
eficacial está na Constituição mesma.
16. Deste ponto se infere que a prefalada discussão em torno da
possibilidade ou da impossibilidade de mesclar leis que antagonicamente
se sucedem no tempo (para que dessa combinação se chegue a um
terceiro modelo jurídico-positivo) é de se deslocar do campo da lei para
o campo da norma; isto é, não se trata de admitir ou não a mesclagem de
leis que se sucedem no tempo, mas de aceitar ou não a combinação de
normas penais que se friccionem no tempo quanto aos respectivos
comandos. E a se tomar como válido o juízo técnico de vedação da
mescla, então a pergunta que nos cabe fazer é simplesmente esta: quando
se tem uma indevida combinação de modelos prescritivos em matéria
penal? Resposta: o que a nossa Constituição rechaça é a possibilidade de
mistura entre duas normas penais que se contraponham, no tempo,
sobre o mesmo instituto ou figura de direito. Situação em que há de se
fazer uma escolha, e essa escolha tem que recair é sobre a inteireza da
norma comparativamente mais benéfica. Vedando-se, por conseguinte, a
fragmentação material do instituto, que não pode ser regulado, em parte,
pela regra mais nova e de mais forte compleição benéfica, e, de outra
parte, pelo que a regra mais velha contenha de mais benfazejo. Isso
equivaleria a criar uma normação extralegislativa, puramente imaginária,
como se fosse possível colocar um dos pés da interpretação na canoa mais
nova e o outro pé na canoa mais velha para alcançar um mesmo destino.
Proibição, portanto, decorrente do pétreo esquema constitucional da
separação dos Poderes (inciso I do § 4º do art. 60 da CF/88), já
antecipadamente formatado pelo art. 2º da mesma Lei Republicana, pois
ao Poder Judiciário descabe legislar.
17. O que proclama a Constituição, portanto, é a retroatividade
dessa ou daquela figura de direito que, veiculada por norma penal
temporalmente mais nova, se revele ainda mais benfazeja do que a norma
igualmente penal até então vigente. Caso contrário, ou seja, se a norma
penal mais nova consubstanciar política criminal de maior severidade, o
que prospera é a vedação da retroatividade. Equivale a dizer: na hipótese
de maior severidade ou endurecimento da norma penal mais nova, ela
revoga, sim, a norma penal mais antiga; que, no entanto, mantém
íntegros os efeitos que já deflagrou ou ainda esteja a deflagrar na esfera
subjetiva de quem protagonizou os fatos por ela descritos como crimes.
É o fenômeno da ultra-atividade eficacial da norma que, embora
revogada, conserva os seus efeitos penais comparativamente mais
benéficos quanto a determinados sujeitos de direitos. Morre a norma
antiga, mas sobrevivem os seus efeitos comparativamente mais
favorecedores de determinada(s) pessoa(s).
18. Em suma, o tema em debate ganha em clareza cognitiva à luz das
figuras constitucionais da ultra-atividade e da retroatividade, não de uma
determinada lei penal em sua inteireza, mas de uma particularizada
norma penal com seu específico instituto. Isto na acepção de que, ali onde
a norma penal mais antiga for também a mais benéfica, o que deve
incidir é o fenômeno da ultra-atividade; ou seja, essa norma penal mais
antiga decai da sua atividade eficacial, porquanto inoperante para reger
casos futuros, mas adquire instantaneamente o atributo da ultraatividade
quanto aos fatos e pessoas por ela regidos ao tempo daquela
sua originária atividade eficacial. Mas ali onde a norma penal mais nova
se revelar mais favorável, o que toma corpo é o fenômeno da
retroatividade do respectivo comando. Com o que ultra-atividade (da
velha norma) e retroatividade (da regra mais recente) não podem ocupar
o mesmo espaço de incidência. Uma figura é repelente da outra, sob
pena de embaralhamento de antagônicos regimes jurídicos de um só e
mesmo instituto ou figura de direito.
19. Nesse contexto, é de se ler a distinção feita por Cezar Roberto
Bittencourt, in verbis:
“[...] A regra geral é a atividade da lei penal no período de sua
vigência. A extra-atividade é exceção a essa regra, que tem
aplicação quando, no conflito intertemporal, se fizer presente
uma norma penal mais benéfica. São espécies dessa atividade
estendida a retroatividade e ultratividade. Esses dois efeitos
ocorrem: quando a lei revogada for mais benéfica, ela terá
ultratividade, aplicando-se ao fato cometido durante sua
vigência; no entanto, se a lei revogadora for a mais benigna, esta
será aplicada retroativamente.
[...]”
(Tratado de Direito Penal: parte geral, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 10ª
ed., 2006, p. 207/208.)
20. Atento a esses marcos interpretativos, hauridos diretamente da
Constituição Federal de 1988, tenho que o § 4º do art. 33 da Lei
11.343/2006 outra coisa não fez senão erigir quatro vetores à categoria de
causa de diminuição de pena para favorecer a figura do pequeno
traficante. Minorante, essa, não objeto de normação anterior. E que, assim
ineditamente positivada, o foi para melhor servir à garantia
constitucional da individualização da reprimenda penal (inciso XLVI do
art. 5º da CF/88). Mas para melhor servir a essa garantia pelo uso de u'a
mais justa proporcionalidade entre o castigo e as circunstâncias do crime
de tráfico ilícito de entorpecentes em sua empírica perpetração. Confirase:
“§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo,
as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços,
vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que
o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às
atividades criminosas nem integre organização criminosa.”
21. Já alusivamente ao tipo penal ou delito em si do tráfico de
entorpecentes, ele já figurava no art. 12 da Lei 6.368/1976. O ineditismo
regratório, no que interessa a esta causa, deu-se tão-somente quanto à
pena mínima de reclusão, que subiu de 3 (três) para 5 (cinco) anos. Afora
pequenas alterações redacionais, tudo o mais se manteve
substancialmente intacto, como se pode ver da seguinte comparação:
Lei anterior (6.368/1976)
“Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar,
produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer,
fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar,
trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de
qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e
pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) diasmulta.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:
I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire,
vende, expõe à venda ou oferece, fornece ainda que
gratuitamente, tem em depósito, transporta, traz consigo ou
guarda matéria-prima destinada a preparação de substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas
à preparação de entorpecente ou de substância que determine
dependência física ou psíquica.
§ 2º Nas mesmas penas incorre, ainda, quem:
I - induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou
substância que determine dependência física ou psíquica;
II - utiliza local de que tem a propriedade, posse,
administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem
dele se utilize, ainda que gratuitamente, para uso indevido ou
tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine
dependência física ou psíquica;
III - contribui de qualquer forma para incentivar ou
difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”
Lei nova (11.343/2006)
“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir,
fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,
ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e
pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos)
dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire,
vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito,
transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico
destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou
em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de
plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação
de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem
a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou
consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
[...] § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo,
as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços,
vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que
o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às
atividades criminosas nem integre organização criminosa.”
22. Fácil notar, então, que, no plano do agravamento da pena de
reclusão, a regra mais nova não tem como retroincidir. Sendo (como de
fato é) constitutiva de política criminal mais drástica, a nova regra cede
espaço ao comando da norma penal de maior teor de benignidade, que é
justamente aquela mais recuada no tempo: o art. 12 da Lei 6.368/1976, a
incidir por ultra-atividade.
23. Não é o que sucede com o novidadeiro instituto da minorante,
que, por força mesma do seu ineditismo, não se contrapõe a nenhuma
anterior regra penal. Lógico! Daí poder incidir tão imediata quanto
solitariamente, nos exatos termos do inciso XL do art. 5º da Constituição
Federal. O que afasta, de plano, qualquer eiva ou mácula de combinação
indevida de normas penais para compor uma terceira e imaginária regra
penal sobre um mesmo instituto. Afinal, como combinar regra nova com
uma inexistente norma velha? Impossível! O que de pronto afasta
qualquer ofensa ao princípio da separação dos Poderes, pois não houve,
por nenhuma, forma usurpação de competência legislativa pelo Poder
Judiciário.
24. Enfim, e pelo menos em linhas gerais, outro não é outro o
entendimento do ministro Cezar Peluso, que assim votou no julgamento
do HC 95.435/RS (Segunda Turma, DJ 07/11/2008):
“[...] Centra-se a questão em apurar, nos contornos do caso, o
alcance do princípio da retroatividade da lei penal mais
benéfica. É que, ao mesmo tempo em que introduziu causa de
diminuição da pena para o delito de tráfico de entorpecentes, a
nova lei de tóxicos lhe aumentou a pena mínima e proibiu a
aplicação de diversos institutos.
Resta saber, pois, se é lícita a aplicação isolada da causa de
diminuição de pena aos delitos cometidos sob a égide da lei
antiga, tendo por base as penas então cominadas.
[...] Aplicar a causa de diminuição não significa baralhar e
confundir normas. Tal causa pode aplicada às inteiras, sem
criação jurisdicional de instituto que componha requisitos de
uma e de outra lei.
[...] Nem se objete que a causa de diminuição seja dirigida
somente ao caput da norma. Refere-se, na verdade, às condutas
nele descritas, as quais já eram como tais tipificadas, em grande
parte, na lei revogada.
Deve-se, ademais, atentar na finalidade e na ratio do
princípio, para correta resposta à questão.
Tiro da manifestação do Deputado Paulo Pimenta, relator
para o PLS nº 115/2002 (que deu origem à Lei nº 11.343/2006),
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da
Câmara dos Deputados, ao exarar parecer, em 10 de fevereiro
de 2004:
“Não nos olvidamos da diferença existente entre
pequenos e grandes traficantes. Por isso, mantivemos uma
causa especial de diminuição da pena para o agente que
seja primário e de bons antecedentes e cuja conduta se
caracterize por ausência de habitualidade e caráter não
profissional”.
Daí se vê que não há como repudiar a aplicabilidade da
causa de diminuição também a situações anteriores, pois foi
essa nova valoração da conduta menos perigosa daquele que se
convencionou chamar de “pequeno traficante”, em oposição ao
“grande traficante”, que lhe motivou a previsão legal. O
propósito claro da lei foi punir de maneira menos severa
pessoas nas condições nela disciplinadas, sem nenhuma
correlação, por si, com as novas penas aplicáveis ou aplicadas.
[...] Não considero, portanto, que a aplicação da nova lei à
pena fixada com base na lei antiga signifique criação de norma.
O que ocorre é só a aplicação do princípio da retroatividade da
lei mais benéfica.
[...] 4. Com essas considerações, data venia da Ministra
Relatora, concedo a ordem de habeas corpus.
[...]”
25. Já me encaminhando para o desfecho deste voto, ajuízo que
eventual alegação de ofensa ao princípio da isonomia também não resiste
a uma análise mais detida. É que, já dissemos, a retroatividade benigna
opera por mérito da Constituição mesma (inciso XL do art. 5º), que se
coloca, então, como o único fundamento de validade da retroação penal
da norma de teor mais favorável. E se a vontade objetiva da Constituição
é essa – desde a sua redação originária, acresça-se –, não cabe sequer
cogitar de ofensa a esse ou aquele princípio igualmente constitucional.
Afinal, a Constituição originária é a consubstanciação do poder que tudo
pode, no campo da positividade jurídica, pois desconhece tabus materiais
e contra seus dispositivos não cabe nenhum juízo de validade.
26. Por tudo quanto posto, peço vênia ao ministro Ricardo
Lewandowski e aos Ministros que o acompanharam, para negar, como de
fato nego, provimento ao recurso extraordinário. Acompanho, com estes
fundamentos, a conclusão do voto proferido pelo ministro Cezar Peluso.
27. É como voto.

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