Íntegra Do Voto Do Ministro Luiz Fux Em Hc Que Discutiu Conflito Aparente De Normas Penais No Tempo

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), disponibilizou a íntegra de seu voto na análise do Habeas Corpus (HC) 101131, realizado na última terça-feira (25), pela Primeira Turma da Corte. A matéria discutida na ação refere-se ao conflito aparente de normas penais no tempo, tendo em vista que, no caso, ocorreu duplo julgamento pelo mesmo fato [crime de roubo circunstanciado]. Por votação majoritária, a Turma negou o habeas corpus, mas o concedeu, de ofício, ao entender que deve prevalecer, exclusivamente, a decisão proferida no primeiro processo. Ficou vencido o ministro Luiz Fux que votou no sentido de fazer prevalecer o segundo decreto condenatório.

- Leia a íntegra do voto do ministro Luiz Fux.

05/04/2011 PRIMEIRA TURMA
HABEAS CORPUS 101.131 DISTRITO FEDERAL
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS.
ROUBO CIRCUNSTANCIADO (ART. 157, §
2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL).
RECURSO ESPECIAL. DUPLO
JULGAMENTO PELO MESMO FATO.
SEGUNDA DECISÃO MAIS FAVORÁVEL
AO RÉU. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO
PRO SOCIETATE COISA
SOBERANAMENTE JULGADA MAIS
BENÉFICA. IN DUBIO PRO REO. FALTA
DE INSTRUMENTO LEGAL OU
CONSTITUCIONAL PARA RESCINDIR
JULGADO FAVORÁVEL AO
DEMANDADO.
1. A Violação da Coisa Julgada é matéria
cognoscível de ofício, por isso que, mercê de
não apreciada na instância inferior, a
supressão de instância inocorre, porquanto
a Corte Maior pode deferir a ordem de
ofício.
2. Deveras, a existência de duplo
julgamento pelo mesmo fato, comprovada
por prova pré-constituída, torna admissível
o seu conhecimento de ofício na via estreita
do habeas corpus.
3. A Revisão, no Direito Processual Penal, é
instrumento exclusivamente em favor do
réu, sendo inadmissível a revisão pro
societate.
4. Quando o Estado exerce a persecutio
criminis, a decisão sobre os fatos pelos quais
o réu fora condenado só pode ser revista
para abrandar a situação do sujeito passivo.
6. In casu, o paciente fora processado e
condenado duas vezes pelo mesmo fato.
Com efeito, foi recebida, em 7/6/2005,
denúncia no processo nº 2005.01.1.003315-4
imputando ao paciente a prática do crime
de roubo circunstanciado (art. 157, § 2º,
inciso I, do Código Penal), ocorrido no dia
28/11/2004, às 9h, em ferro velho entre a
Divineia e a Metropolitana, na cidade
satélite do Núcleo Bandeirante/DF.
7. Consoante a denúncia (fls. 8/9), o paciente
teria subtraído da vítima, mediante grave
ameaça exercida com emprego de arma de
fogo, uma bolsa preta contendo R$ 4,00
(quatro reais) e alguns objetos de uso
pessoal. Posteriormente, em 7/7/2006, foi
ajuizada contra o paciente outra ação penal
(nº 2005.01.1.023628-0), por fato idêntico ao
descrito na Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4
(fls. e 37/38).
7. A sentença, apesar de divergências
doutrinárias, deve ser enxergada como
norma jurídica, e, nessa categorização, como
é sabido, no conflito entre duas normas de
igual hierarquia e especialidade prevalece a
mais recente sobre a mais antiga.
8. A sentença posterior prevalece no
Processo Penal, desde que mais favorável ao
réu, em obediência à vedação da Revisão
Criminal pro societate.
9. O caso sub judice não reclama a solução de
se considerar anulada a primeira sentença,
visto que não incidiu em qualquer vício de
juridicidade, e sim de revogá-la.
10. Deveras, o pedido mediato merece
concessão, qual seja, a declaração da
prevalência da segunda coisa julgada.
10. Ordem concedida.
V O T O
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR): Preliminarmente, verifica-se
que as ilegalidades apontadas, quais sejam, a violação aos princípios do
ne bis in idem e da coisa julgada, não foram submetidas às instâncias
inferiores, o que, a rigor, impediria o conhecimento da impetração, sob
pena de supressão de instância. Nesse sentido, os seguintes julgados:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL E PROCESSUAL
PENAL. QUESTÕES NÃO CONHECIDAS PELO STJ.
AUTORIDADE COATORA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
INCOMPETÊNCIA DO STF. NEGATIVA AO DIREITO DE
RECORRER EM LIBERDADE FUNDAMENTADA. PRISÃO
ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO. INSTRUÇÃO
CRIMINAL ENCERRADA. EXCESSO DE PRAZO
PREJUDICADO. ORDEM DENEGADA. 1. O Superior Tribunal
de Justiça não se manifestou acerca do regime prisional imposto
ao paciente no que concerne ao crime de tráfico de drogas e da
possibilidade de aplicação da causa de diminuição de pena
prevista no art. 22, § 4º, da Lei 11.343/06. 2. No que diz respeito
aos temas não abordados pela Corte Superior, a autoridade
coatora é o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Com
efeito, não compete a esta Suprema Corte conhecer dessas
matérias, sob pena de supressão de instância. Precedentes. 3. A
proibição ao direito de o paciente recorrer em liberdade foi
devidamente fundamentada. Ademais, o paciente foi preso em
flagrante e permaneceu preso durante toda a instrução
criminal. 4. A alegação de excesso de prazo fica prejudicada
pelo fim da instrução penal e pela prolação de sentença
condenatória. Precedentes. 5. Writ conhecido em parte e
denegado. (HC 100595/SP, Relatora Min. ELLEN GRACIE,
Segunda Turma, julgado em 22/2/2011, DJ de 9/3/2011)
HABEAS CORPUS. PEDIDO DE LIBERDADE.
SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REINCIDÊNCIA. REGIME
FECHADO. POSSIBILIDADE. ORDEM PARCIALMENTE
CONHECIDA E, NESSA PARTE, DENEGADA. O impetrante,
embora também tenha requerido a liberdade do paciente, não
apresentou qualquer fundamento para tanto. Simplesmente fez
o pedido. Além disso, o STJ não se manifestou sobre a questão.
Portanto, não há como o habeas corpus ser conhecido nesse
ponto, sob pena de supressão de instância. Quanto ao pedido
de fixação do regime prisional aberto ou semi-aberto, o TJSP, ao
impor o regime fechado, considerou o fato de o paciente ser, de
acordo com a sentença, “multi-reincidente”. Tal fundamento
está em harmonia com o disposto nas alíneas “b” e “c” do § 2º
do art. 33 do Código Penal, segundo as quais tanto o regime
aberto, quanto o semi-aberto são reservados aos réus não
reincidentes. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa
parte, denegado. (HC 100616 / SP - Relator Min. JOAQUIM
BARBOSA, Segunda Turma, Julgamento em 08/02/2011, DJ de
14/3/2011)
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL.
PEDIDO DE COMUTAÇÃO DE PENA. JUÍZO DE ORIGEM.
APRECIAÇÃO. AUSÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE SEU
EXAME PELO STF SOB PENA DE SUPRESSÃO DE
INSTÂNICAS. ALEGAÇÃO DE DEMORA NO JULGAMENTO
DO MÉRITO DE WRIT PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. EXCESSO DE IMPETRAÇÕES NA CORTE
SUPERIOR PENDENTES DE JULGAMENTO.
FLEXIBILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO QUE SE MOSTRA
COMPREENSÍVEL. APOSENTADORIA DO RELATOR DOS
FEITOS MANEJADOS EM FAVOR DO PACIENTE. ORDEM
CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA DETERMINAR SUA
REDISTRIBUIÇÃO. I – O pedido de comutação da pena não
pode ser conhecido, uma vez que esta questão não foi sequer
analisada pelo juízo de origem. Seu exame por esta Suprema
Corte implicaria indevida supressão de instância e
extravasamento dos limites de competência do STF descritos no
art. 102 da Constituição Federal. II – O excesso de trabalho que
assoberba o STJ permite a flexibilização, em alguma medida, do
princípio constitucional da razoável duração do processo.
Precedentes. III - A concessão da ordem para determinar o
julgamento do writ na Corte a quo poderia redundar na
injustiça de determinar-se que a impetração manejada em favor
do paciente seja colocada em posição privilegiada com relação a
de outros jurisdicionados. IV – Ordem concedida de ofício para
determinar a redistribuição dos habeas corpus manejados no STJ
em favor do paciente, em razão da aposentadoria do então
Relator. (HC 103835/SP Relator: Min. RICARDO
LEWANDOWSKI, Primeira Turma, Julgamento em 14/12/2010,
DJ de 8/2/2011)
EMENTA: Habeas corpus. Homicídio. Prisão ordenada
independentemente de trânsito em julgado. Superveniência do
trânsito em julgado. Writ prejudicado. Fixação de regime
inicialmente fechado. Questão não submetida ao crivo do STJ.
Supressão de instância. Habeas corpus não conhecido. 1.
Prejudicialidade do writ impetrado perante Tribunal Superior
fundada em decisão liminar, precária e efêmera, obtida pelo
paciente perante esta Suprema Corte inocorrente. 2.
Superveniência de trânsito em julgado da decisão condenatória,
a ensejar o reconhecimento da prejudicialidade de ambas as
impetrações. 3. A questão relativa à propriedade do regime
prisional imposto ao paciente pela decisão condenatória não foi
submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, não se
admitindo a apreciação do tema por esta Suprema Corte, de
forma originária, sob pena de configurar verdadeira supressão
de instância. Precedentes. 4. Writ não conhecido. (HC 98616/SP,
Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Órgão Julgador: Primeira Turma,
Julgamento em 14/12/2010)
No entanto, os fatos alegados na presente ordem de habeas corpus
foram suficientemente demonstrados com a prova preconstituída. Assim,
tratando-se de questão de ordem pública aferível de plano, possível o
conhecimento de ofício. Também opinou pelo conhecimento o Ministério
Público Federal, nos seguintes termos (fls. 62):
Inicialmente, verifica-se que a nulidade apontada, vale
dizer, dupla condenação do paciente pelos mesmos fatos, não
foi objeto de questionamento perante qualquer das instâncias
inferiores.
Dessa forma, a matéria esposada no presente remédio
constitucional não enseja a análise desse Excelso Pretório sob
pena de indevida supressão de instância.
Contudo, da análise dos documentos acostados aos
presentes autos, constata-se a procedência da alegação de bis in
idem, que, por causar a nulidade absoluta de uma das ações
penais, é passível de ser conhecida de ofício.
Deveras, observa-se, na documentação trazida pela impetrante, que
o paciente fora condenado, primeiramente, na Ação Penal nº
2005.01.1.003315-4, cuja denúncia fora recebida em 7/6/2005 pela 7ª Vara
Criminal de Brasília. Na pendência desta demanda, foi ajuizada contra o
paciente, em 07/07/2006, outra ação penal (nº 2005.01.1.023628-0) pelos
mesmos fatos, desta feita na 6ª Vara Criminal de Brasília, o que ensejou a
nulidade absoluta ab initio desse segundo processo, em razão do
fenômeno processual da litispendência.
Nesses sentido, a doutrina de José Frederico Marques, verbis:
Um dos efeitos da litispendência é o de impedir o
desenrolar e a existência de um segundo processo para o
julgamento de idêntica acusação. Resulta, pois, da
litispendência, o direito processual de arguir o bis in idem,
mediante exceptio litis pendentis.
Segundo disse CHIOVENDA, assim “como a mesma lide
não pode ser decidida mais de uma vez (exceptio rei judicatae),
assim também não pode pender simultaneamente mais de uma
relação processual sobre o mesmo objeto entre as mesmas
pessoas. Pode, portanto, o réu excepcionar que a mesma lide
pende já perante o mesmo juiz ou perante juiz diverso, a fim de
que a segunda constitua objeto de decisão com a primeira por
parte do juiz invocado antes. (Elementos de Direito Processual
Penal, atualizadores: Eduardo Reale Ferrari e Guilherme
Madeira Dezem, Campinas, SP: Millennium Editora, 2009, v. 2)
Conforme noticiado pelo Ministério Público Federal, em caso
semelhante, esta Corte anulou sentença proferida em processo em que a
persecução penal se deu por fatos idênticos aos julgados em causa
anterior, conforme sintetizado na seguinte ementa:
Direito Penal e Processual. Litispendência. Dupla
condenação pelo mesmo fato delituoso: “bis in idem.” 1. Não
pode subsistir a condenação ocorrida no segundo processo,
instaurado com o recebimento da denúncia a 7 de maio de 1993
(Processo n. 237/93) já que, antes disso, ou seja, a 4 de maio de
1993, havia outra denuncia, igualmente recebida, pelos mesmos
fatos delituosos (no Processo 232/93). 2. A litispendência
impediu que validamente se formasse o segundo processo e, em
conseqüência, que validamente se produzisse ali a condenação.
3. “H.C” deferido para, com relação ao paciente, anular-se a
sentença proferida no Processo 237/93 – 23. V. Criminal S.P.,
bem como o acórdão que a confirmou, na Apelação n. 861.423,
julgada pela 11. Câmara do TACRIM-SP, ficando, quanto a ele,
trancado definitivamente o processo. (HC 72.364/SP – Relator
Min. Sidney Sanches, Primeira Turma, Publicação DJ
23/02/1996)
Ademais, o próprio parquet opinou pela concessão da ordem, em
parecer assim delineado (fls. 62/63):
[...] impende consignar que a comprovação da ocorrência
da figura do bis in idem desponta do simples confronto das
iniciais acusatórias oferecidas pelo Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios, que originaram as ações penais nº
nº 2005.01.1.003315-4 e 2005.01.1.023628-0, movidas,
respectivamente, na 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial
Judiciária de Brasília/DF, e 6ª Vara Criminal da mesma
Circunscrição. Ambas as denúncias narram que no dia 28 de
novembro de 2004, por volta das 9 horas, nas proximidades de
um ferro velho, localizado entre a Divinéia e a Metropolitana,
no Núcleo Bandeirante/DF, o paciente Renan Rodrigues de
Sousa subtraiu para si, mediante grave ameaça, exercida por
meio de arma de fogo, uma bolsa preta, contendo R$ 4,00
(quatro) reais em espécie e diversos objetos pessoais
pertencente a Maria Elenice Alves de Oliveira (fls. 08/09 e
37/38).
Não há dúvida de que pelo mesmo fato, foram
instauradas duas ações penais em desfavor do ora paciente. A
primeira, pelo Juízo da 7ª Vara Criminal da Circunscrição
Especial Judiciária de Brasília/DF, que recebeu a denúncia na
data de 07/06/2005 (fl. 06); a segunda, pelo Juízo da 6ª Vara
Criminal da mesma Circunscrição, que recebeu a inicial
acusatória em 07/07/2006 (fl. 35).
Mas, não é só. Ao final, o paciente sofreu dupla
condenação: o primeiro decreto punitivo foi proferido pelo
Juízo da 7ª Vara Criminal de Brasília, aos 06/10/2006 (fls. 12/18),
sendo confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que tornou
a pena definitiva em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de
reclusão, em decisão transitada em julgado aos 29/08/08 (fls.
24/27); já o segundo, foi prolatado pela 6ª Vara Criminal, em
25/04/2007 (fls. 39/44), e confirmado pelo Superior Tribunal de
Justiça, que tornou a pena definitiva em 4 (quatro) anos, 5
(cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em decisão transitada
em julgado aos 19/05/09 (fls. 29/34)
In casu, portanto, após o trânsito em julgado da decisão condenatória
na Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4, sobreveio novo pronunciamento
judicial na Ação Penal nº 2005.01.1.023628-0 a respeito de fatos idênticos
aos versados na primeira demanda.
A primeira condenação não pode ser alvo de Revisão Criminal, pois
não configurada qualquer das hipóteses previstas no art. 621 do CPP, que
ora se transcreve:
Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto
expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II - quando a sentença condenatória se fundar em
depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas
de inocência do condenado ou de circunstância que determine
ou autorize diminuição especial da pena.
Por outro lado, a segunda coisa julgada, mais favorável ao réu
(rectius, condenado), também não é passível de reapreciação, porquanto
não é admitida no Direito Brasileiro a Revisão Criminal pro societate.
Analisando a hipótese com a qual ora nos deparamos, de conflito
entre julgados, Jorge Alberto Romeiro anotou com maestria (Elementos
de direito penal e processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 40-41):
Manzini, considerando esse caso de inconciliabilidade de
julgados, determinante da revisão no direito positivo italiano, o
qual figura, também, no de muitos Estados, notou que nem
sempre tem o instituto em estudo o fim de reparar um erro
judiciário, pois a dita inconciliabilidade deve ser sempre
resolvida pela prevalência do julgado mais favorável ao
condenado.
A revisão, escreveu o insigne professor da Universidade
de Roma, “nel caso dell'inconciliabilità dei giudicati, se talora
fornisce il mezzo per eliminare l'errore, talaltra può far
prevalere l'erroneo sul giusto, perchè nel detto caso la legge
mira sopra tutto a far cessare un intollerabile contrasto
giurisdizionale”.
No Direito pátrio a Revisão Criminal em desfavor do réu jamais foi
admitida. Mesmo quando a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 à Carta
de 1967 permitiu à legislação ordinária prever hipóteses nas quais o
julgado favorável ao acusado poderia ser revisto, a normativa nunca foi
editada. O art. 623 do CPP, sobre a legitimidade ativa para a propositura
da Revisão, prevê: “A revisão poderá ser pedida pelo próprio réu ou por
procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, pelo cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão”. O Ministério Público e o ofendido não
dispõem de idêntica legitimatio.
Certo é que a decisão proferida no segundo processo é norma
jurídica, que deve ser respeitada. Vale invocar a lição de José Carlos
Barbosa Moreira, segundo o qual, na sentença “formula o juiz a norma
jurídica concreta que deve disciplinar a situação levada ao seu conhecimento”
(Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, In Revista de Processo,
nº 34, pág. 279). Vale dizer, a sentença trânsita em julgado é a norma
jurídica para o caso concreto.
Ocorre que, como visto, essa segunda norma não é passível de
revisão, pois, na espécie, isso significaria fazer prevalecer uma decisão
anterior mais gravosa para o réu. Nas palavras de Fernando da Costa
Tourinho Filho, “a autoridade da coisa julgada, necessária e indispensável para
assegurar a estabilidade das relações jurídicas, impede um reexame contra o réu”
(Código de Processo Penal comentado. Vol. 2. 12ª ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 427).
Assim, temos duas decisões, de igual hierarquia e especialidade,
impassíveis de impugnação. Impõe-se, face à natureza normativa das
decisões judiciais, a aplicação do princípio norteador do conflito aparente
de normas penais no tempo, vale dizer, prevalece a norma posterior sobre
a anterior.
Aliás, no campo do Processo Civil, Cândido Rangel Dinamarco, ao
sustentar a prevalência da segunda coisa julgada, ressalta a possibilidade
de um novo ato estatal revogar o anterior. Assim, a sentença posterior,
por não ter sido rescindida no prazo legal, teria o condão de revogar a
sentença anterior. Eis como expõe seu ponto de vista, baseado nas
formulações de Liebman:
Disse ele, realmente, que uma sentença proferida depois
da outra tem a eficácia de cancelar os efeitos desta, como todo
ato estatal revoga os anteriores. Assim como a lei revoga a lei e
o decreto revoga o decreto, assim também a sentença passada
em julgado revoga uma outra, anterior, também passada em
julgado. Estamos pois fora do campo específico do direito
processual, em uma visão bastante ampla dos atos estatais de
qualquer dos três Poderes e sempre segundo uma perspectiva
racional e harmoniosa do exercício do poder. Na nova lei há
uma nova vontade do legislador, que sobrepuja a vontade dele
próprio, contida na lei velha. No novo decreto, nova vontade da
Administração. Na nova sentença, nova vontade do Estadojuiz.
(Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed., São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 1.135).
No mesmo sentido a lição de Pontes de Miranda, que entende
prevalecer a segunda coisa julgada sobre a primeira, porque a norma
processual somente prevê a possibilidade de desconstituir a segunda
coisa julgada dentro de um prazo específico e, se isso não ocorrer, a
anterior é revogada pela posterior. Confira-se o seguinte trecho da obra
do autor:
Dissemos que falta o segundo elemento “sentença trânsita
em julgado, que se quer rescindir”, se precluiu o prazo para a
rescisão de tal sentença. Uma vez que se admitiu, de lege lata,
com o prazo preclusivo, a propositura somente no biênio a
respeito da segunda sentença, o direito e a pretensão à rescisão
desaparecem, e a segunda sentença, tornada irrescindível,
prepondera. Em conseqüência, desaparece a eficácia de coisa
julgada da primeira sentença. Esse é um ponto que não tem
sido examinado, a fundo, pelos juristas e juízes: há duas
sentenças, ambas passadas em julgado, e uma proferida após a
outra, com infração da coisa julgada. Se há o direito e a
pretensão à rescisão da segunda sentença, só exercível a ação no
biênio e não foi exercida, direito, pretensão à rescisão e ação
rescisória extinguiram-se. A segunda sentença lá está,
suplantando a anterior. [...] (Tratado da ação rescisória das
sentenças e de outras decisões. 1. ed., Campinas: Bookseller,
1988, pp. 259-260)
Ademais, o fato de a segunda coisa julgada prevalecer sobre a
primeira é razão única da previsão legal de ação rescisória por ofensa à
coisa julgada (art. 485, inciso IV, do CPC), o que pressupõe decisão
trânsita anterior. Marinoni e Arenhart, corroborando este entendimento,
lecionam:
A grande questão ocorre no conflito dessas coisas
julgadas, após o esgotamento do prazo existente para o
oferecimento da ação rescisória (de dois anos – cf. Art. 495 do
CPC). Findo esse prazo, tem-se em tese duas coisas julgadas
(possivelmente antagônicas) convivendo no mundo jurídico, o
que certamente não é possível. Parece que, nesses casos, deve
prevalecer a segunda coisa julgada em detrimento da primeira.
Além de a primeira coisa julgada não ter sido invocada no
processo que levou à edição da segunda, ela nem mesmo foi
lembrada em tempo oportuno, permitindo o uso da ação
rescisória e, assim, a desconstituição da coisa julgada formada
posteriormente. É absurdo pensar que a coisa julgada, que
poderia ser desconstituída até determinado momento,
simplesmente desaparece quando a ação rescisória não é
utilizada. Se fosse assim, não haveria razão para o art. 485, IV, e,
portanto, para a propositura da ação rescisória, bastando
esperar o escoamento do prazo estabelecido para seu uso.
(Processo de conhecimento. 7. ed. rev. e atual. - São Paulo: RT,
2008, p. 665 – negritei)
Na doutrina alienígena, a conclusão não diverge. De início, citamos
os ensinamentos de Chiovenda (Principii di diritto processuale civile.
Napoli: Jovene, 1923. p. 900):
Quanto alla contrarietá della sentenza ad un precedente
giudicato, per diritto romano era questo un caso di nullitá della
sentenza, per cui il primo giudicato conservava il suo vigore.
Nel nostro sistema la contrarietà dei giudicati può farsi valere
come motivo di revocazione (quando uma sentenza non abbia
pronunciato su questa eccezione, art. 494, n. 5) o come motivo
di cassazione (quando pronunció sulla eccezione relativa, art.
517, n. 8): ma decorsi i termini senza che l'impugnativa sia
proposta, questa nullità é sanata, onde il primo giudicato perde
valore perchè il secondo giudicato implica negazione di ogni
precedente giudicato contrario.
Igualmente entende Carnelutti (Instituciones del proceso
civil. V. 1. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America,
1989. p. 146):
[N]o puede excluirse la hipótesis del conflicto entre cosas
juzgadas. No hay necesidad de agregar que el tal conflicto debe
resolverse bajo pena de hacer incurable la litis, lo cual no se
puede obtener de otro modo que admitiendo la extinción de la
eficacia de la primera decisión por efecto de la segunda.
Essas lições podem ser transpostas do campo do Direito Processual
Civil para o Processo Penal, mas uma peculiaridade deve ser ressaltada. É
que a conclusão pressupõe que ambas as decisões sejam imutáveis e
irreversíveis – ou seja, ambas coisas soberanamente julgadas. Ocorre que
no processo penal é aberta em caráter perene a via da Revisão Criminal
para o réu. Uma condenação injusta pode ser rediscutida a qualquer
tempo (art. 622 do CPP - “A revisão poderá ser requerida em qualquer tempo,
antes da extinção da pena ou após”), e essa pode ser considerada uma
garantia constitucional, implicitamente extraída do art. 5º, LXXV, (“o
Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso
além do tempo fixado na sentença”) e do art. 102, I, j, da Carta Magna
(“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: j) a revisão
criminal e a ação rescisória de seus julgados”).
Sendo certo que a segunda decisão, in casu, deve prevalecer, tal não
significa que a primeira é nula, como sustenta a impetração. Em verdade,
operou-se a revogação do decisum anterior, pelo advento de norma
concreta, não mais impugnável, em sentido distinto. Inobstante, o pedido
mediato merece concessão, qual seja, a declaração da prevalência da
segunda coisa julgada.
Ex positis, CONCEDO a ordem de ofício para declarar revogada a
condenação proferida no bojo da Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4, que
tramitou perante a 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária
de Brasília/DF, prevalecendo, portanto, a sentença prolatada na Ação
Penal nº 2005.01.1.023628-0, da 6ª Vara Criminal da Circunscrição Especial
Judiciária de Brasília/DF, devendo ser oficiada a Vara de Execuções
Criminais do Distrito Federal para os registros cabíveis.
É como voto.

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