Prisão Cautelar Versus Princípio Constitucional Da Inocência.

ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO
(Des. Federal Do TRF Da 4a Região)

O tema central que anima as presentes considerações é o encarceramento do acusado ante tempus, porquanto a polêmica ainda não se pacificou, tendo algumas decisões gerado quadro de perplexidade, não só aos mestres do direito penal mas também aos juízes, defensores e membros do ministério público.

Como sabido e ressabido, no Estado Democrático de Direito a liberdade é a regra. No processo penal, milita em favor do réu a presunção de inocência. E mais, enquanto houver possibilidade de absolvição, viabilizada mediante recursos para reforma da sentença, não poderá o acusado ser tido como infrator à luz da peça oferecida pelo Ministério Público. Vale dizer, nenhum cidadão será considerado culpado até o trânsito da sentença penal condenatória (inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal).

Logo, além de assegurados o contraditório e a ampla defesa (nos termos da Lei Maior) em princípio, ninguém poderá ser despojado de sua liberdade de locomoção antes de vir ao mundo jurídico decreto condenatório irrecorrível.

Inobstante isso, segundo a melhor doutrina e firme entendimento jurisprudencial, não são absolutos os princípios inscritos na Carta Política. Assim, relativizando o apontado preceito constitucional, casos há em que a custódia cautelar mostra-se imprescindível, obrigatória, forçada, ainda que o acusado seja primário, tenha emprego, bons antecedentes, residência fixa ou ostente posição social privilegiada. Diante da indispensável segregação, tais potencialidades para a prática do bem tornam-se irrelevantes. Em síntese: na linha dos direitos e garantias fundamentais, a prisão cautelar só deve ser imposta em casos extremos, por se tratar de medida de exceção.

Aliás, na dicção de Basileu Garcia (Comentários ao Código de Processo Penal, Forense, pg. 144) a segregação provisória deve ser vista como “necessidade fatal: fatal aos indivíduos e fatal à sociedade, fatal também à Justiça, porquanto se prende, inocente ou culpado, o homem que ainda não foi julgado.”

É o que está escrito no artigo 312 do Código de Processo Penal quando autoriza a prisão para resguardar a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal bem como para assegurar a aplicação da lei penal. Em resumo: se apesar da acusação por determinada infração, o indiciado ou réu continua a praticar novos crimes; se passa a destruir provas; se ameaça testemunhas, coage a vítima ou seus familiares; faz o possível e o impossível para perturbar a tramitação regular do processo, dificultando com isso o levantamento da verdade; bem como demonstra sinais concretos de que, injustificadamente, pretende se evadir do distrito da culpa, à evidência, alguma coisa há de ser feita. Daí, revela-se justificada sua segregação com apoio no indigitado normativo, não havendo se cogitar de constrangimento ilegal e menos ainda de ofensa à Magna Carta por se cuidar de institutos distintos, ou seja, o processo penal deve subsistir em razão do ato praticado no passado. A necessidade da preventiva somente surge pelo comportamento no presente. Por outras palavras, a presunção de inocência, consoante tranqüilo entendimento, não elide a adoção da custódia antecipada. Porém, repita-se: não com base na infração cometida, mas exclusivamente quanto ao atual comportamento do réu.

Conforme pensamento manifestado pelo eminente Ministro Celso de Mello “A prisão preventiva não pode - e não deve – ser utilizada pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois no sistema jurídico brasileiro fundado em bases democráticas prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia”.

Importa consignar que o decreto da preventiva deve ser convincentemente fundamentado (aliás, como todo e qualquer ato judicial) justificando de forma clara e objetiva sua imprescindibilidade, não sendo suficiente singelas conjecturas de que o acusado poderá ocultar-se ou impedir a ação da justiça.

Resumindo: frente à necessidade da constrição, o que se pretende não é apenas resguardar o meio social mas, sobretudo, a própria segurança da atividade jurisdicional na busca da efetiva aplicação da lei penal.

Em verdade, s.m.j., a prisão cautelar somente poderia ser decretada nas referidas hipóteses. Contudo, existem outras normas. Por exemplo, ao regular a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas (Lei 9.034/95) bem como ao tratar dos crimes de “lavagem” de dinheiro (Lei 9.613/98) recrudescendo o rigorismo penal, o legislador ordinário foi além ao deixar registrado que, independentemente da primariedade e antecedentes, “o réu não poderá apelar em liberdade” vale dizer, em razão de ato pretérito (objeto da ação penal) o recolhimento à prisão passou a ser condição de admissibilidade da peça recursal, daí a invocada perplexidade tanto na doutrina como nos tribunais. Cumpre lembrar que esses diplomas legais vedam ainda o status libertatis antes da sentença, porquanto impedem a concessão do benefício da liberdade provisória, com ou sem fiança.

Tal inteligência vinha sendo abraçada pela Suprema Corte consoante se depreende de várias decisões, dentre as quais destacamos a proferida no HC 80.717/SP (Relatora p/ o Acórdão Ministra Ellen Gracie).

No mesmo sentido, veja-se julgamento da 8ª Turma do Egrégio Tribunal Federal da 4ª Região assim ementado:

“HABEAS CORPUS. ‘LAVAGEM DE DINHEIRO’. REMESSA FRAUDULENTA DE NUMERÁRIO AO EXTERIOR. CONTAS CC5. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO. PRESSUPOSTOS. ARTIGO 312 DO CPP. INDÍCIOS DE AUTORIA. ORDEM PÚBLICA. OFENSA CARACTERIZADA. LIBERDADE PROVISÓRIA. CONCESSÃO INVIÁVEL. ARTIGOS 7º DA LEI Nº 9.034/95, 30 DA LEI Nº 7.492/86 E 3º DA LEI Nº 9.613/98. ORDEM DENEGADA. 1. As circunstâncias de primariedade, bons antecedentes, emprego e residência fixa, por si sós, não são suficientes para elidir o decreto prisional, se devidamente fundamentado nas hipóteses elencadas no artigo 312 do CPP. 2. A garantia da ordem pública consubstancia-se não somente em evitar novos crimes. Leva em consideração, também, o grande impacto social causado. Assim, a gravidade do ilícito cometido, a par de outros fatores, é elemento hábil a fundamentar custódia ante tempus. 3. Nos termos do artigo 312, in fine, da Lei Adjetiva Penal, basta a existência de um mínimo de elementos indicativos do autor do delito, sendo desnecessária a mesma certeza exigida para a prolação do decreto condenatório. 3. O art. 30 da Lei nº 7.492/86, por sua vez, autoriza a decretação de prisão preventiva face à magnitude da lesão causada ao Sistema Financeiro Nacional. 4. Relatando a exordial intensa e efetiva participação do Paciente na quadrilha, incabível a concessão do benefício da liberdade provisória (art. 7º da Lei nº 9.034/95). 5. A Lei nº 9.613/98 (que dispõe sobre “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) preceitua, em seu artigo 3o, primeira parte, que ‘os crimes disciplinados nesta lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória’, de modo que havendo sido o agente acusado da prática de tal espécie delituosa (art. 1o, incisos VI e VII c/c § 4o) resta inviável a pretensão veiculada por meio deste remédio heróico. 6. Ademais, impõe-se, na espécie, a manutenção do encarceramento provisório eis que há possibilidade de eventual fuga do denunciado, porquanto detém significativo patrimônio no exterior. 7. Em face do decreto prisional, o ilustre juízo a quo, valendo-se da faculdade estatuída no art. 80 da Lei Adjetiva Penal e buscando conferir maior celeridade, cindiu o feito no que tange ao ora acusado (já estando na fase de oitiva das testemunhas arroladas na denúncia) o que denota preocupação quanto ao status libertatis do agente. 7. Ordem denegada.”

(Habeas Corpus 2003.04.01.033707-7/PR, julgado em 10/09/2003, publicado no DJU de 24/09/2003, pg. 614)

Entretanto, recentemente o STF, por sua nova composição, retomou o julgamento da questão suscitada pelo Min. Cezar Peluso na Reclamação nº 2391 em Medida Cautelar do Paraná, onde se discute (frente ao princípio da presunção de inocência) a constitucionalidade dos artigos 9º da apontada Lei 9.034/95: “o réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta Lei”; e 3º da Lei 9.613/98: “os crimes disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”. O Min. Gilmar Mendes, acompanhando os votos dos Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, proferiu voto-vista favorável à concessão do habeas corpus de ofício e declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 9º da Lei 9.034/95, emprestando ao art. 3º da Lei 9.613/98 interpretação à luz da Constituição, no sentido de que o juiz, na hipótese de sentença condenatória, fundamente sobre a existência ou não dos requisitos para a prisão cautelar, ou seja, diga se está ou não presente qualquer dos pressupostos do aludido art. 312 do CPP.

Prosseguindo em seu voto, o Min. Gilmar Mendes, atentando para o fato de que, na espécie, estar-se-ia revisando jurisprudência firmada pelo STF, amplamente divulgada e com inegáveis repercussões no plano material e processual, admitindo a possibilidade da limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, em sede de controle difuso, emprestou à sua decisão efeitos ex nunc.

Em conclusão (ipsis litteris): “o Tribunal, por maioria, levando em conta a grande probabilidade de que a tese defendida na reclamação seja acolhida pela Corte, concedeu tutela antecipada ao reclamante, determinando se expeça em seu favor alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso e estendeu tal benefício aos demais réus, nos termos do art. 580 do CPP. Vencidos, no ponto, os Ministros Ellen Gracie, Nelson Jobim e Carlos Velloso”. (Informativo STF Nº 334).

Como se depreende, embora em sede de tutela antecipada, está o Pleno da mais alta Corte do país sinalizando a inconstitucionalidade dos apontados dispositivos.

Examinado e considerado tal julgamento, é de se deduzir: se a norma que determina que o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão ofende a Lei Maior, com muito mais razão será ilegítima a regra que autoriza o encarceramento initio litis ou durante a instrução processual ao largo das hipóteses previstas no art. 312 do CPP. Novamente a título de exemplo, veja-se o disposto no art. 7º da referida Lei 9.034/95: “Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa”. Vale observar que o preceito reza “agentes que tenham tido” o que pressupõe não mais existir a indigitada organização criminosa. À evidência, outro deverá ser o raciocínio se o grupo organizado estiver na ativa, ou seja, em flagrante violação à garantia da ordem pública.

Da mesma forma, diga-se quanto ao art. 30 da Lei 7492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional) que permite ... “a prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada”.

Acresce anotar que, em 18.12.2003, no julgamento do RHC 83.810/RJ promovido pelo Ministério Público Federal onde se discute, face ao princípio da presunção de não-culpabilidade, a possibilidade de conhecimento do recurso de apelação interposto em favor de condenado foragido (CPP, art. 594: “O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto”), o Min. Joaquim Barbosa, relator, proferiu voto no sentido de dar provimento ao recurso, a fim de que o tribunal local emita novo juízo de admissibilidade da apelação, por entender que o princípio constitucional da presunção de inocência impõe, como regra, que o acusado recorra em liberdade, podendo-se determinar o seu recolhimento, se preenchidos os requisitos para a prisão cautelar. Salientou ainda, que o não-conhecimento da apelação pelo fato de ter o réu sido revel durante a instrução ofende o princípio que assegura a ampla defesa, bem como a regra do duplo grau de jurisdição prevista em pactos internacionais, como o de São José da Costa Rica, assinados pelo Brasil posteriormente à edição do Código de Processo Penal. Após os votos dos Ministros Carlos Britto, Cezar Peluso e Gilmar Mendes, acompanhando o Min. Joaquim Barbosa, o julgamento foi adiado em face do pedido de vista da Ministra Ellen Gracie (Informativo STF Nº 334).

Entendemos que tais julgados dispensam qualquer acréscimo por seus próprios fundamentos. Não há como afastar a realidade. Frente ao princípio constitucional da presunção de inocência (ressalvadas as hipóteses inscritas no art. 312 do CPP) não se mostra razoável primeiramente prender para depois discutir se o réu é ou não culpado e, menos ainda, restringir o recebimento do apelo à prisão do acusado até porque a fuga pode ser legítima diante de condenação teratológica o que, por certo, revela imperioso o conhecimento e análise das razões invocadas pela defesa do condenado.

Em se tratando de garantia à liberdade, sempre entendemos que ao Judiciário cabe o exame da peça recursal sem qualquer limitação, competindo à polícia a busca e o encarceramento do réu quando necessário.

Tendo os representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, assegurado a todos o acesso ao Judiciário, nenhum instrumento pode ser utilizado para obstar sua atuação, principalmente na área penal. Não há razão lógica ou jurídica para condicionamentos. Cada ente Estatal tem o dever de exercer o que lhe foi atribuído.

Como aprendemos desde os bancos da Faculdade, a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa. Ao Estado-Juiz cumpre proceder à entrega da prestação jurisdicional da forma mais completa, levando as partes ao convencimento sobre o acerto daquilo que restou assentado. É o que se verifica no recente posicionamento do Supremo.

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