Bem Jurídico E A Tutela Penal De Ultima Ratio

Luciano De Freitas Santoro

 

Entende-se, acertadamente, que a
finalidade do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos - e, bem assim,
da própria sociedade -, tipificando condutas que possam lesioná-los ou, ao
menos, ameaçá-los. Leciona Luiz Regis Prado que na atualidade, o postulado
de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico não
encontra praticamente oposição, sendo quase um verdadeiro axioma -
princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.

 

Entretanto, apesar do aparente consenso
doutrinário sobre o referido postulado, há que se observar que dele emergem
duas questões de suma importância: o que deve ser entendido por bem
jurídico e quais são aqueles bens merecedores da tutela penal,
especialmente porque o Direito Penal é o meio mais eficaz de que se vale o
Estado no combate à violência, porém, da mesma forma, também é o que mais
limita o exercício de Direitos Fundamentais do Homem, como, por exemplo, a
liberdade.

 

Interessante notar que até a presente
data inexiste um conceito pacífico de bem jurídico. Roxin entende que bens
jurídicos são pressupostos imprescindíveis para a existência em comum, que
se caracterizam numa série de situações valiosas, como, por exemplo, vida,
integridade física, a liberdade de atuação ou a propriedade, as quais todo
mundo conhece . Jorge de Figueiredo Dias define bem jurídico como a
expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou
integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente
relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.

 

Nelson Hungria entendia que
"bem" é tudo que satisfaz a uma necessidade da existência humana
(existência do homem individualmente considerado e existência do homem em
estado de sociedade), e "interesse" é a avaliação ou
representação subjetiva do bem como tal (Rocco, L'oggetto del reato).
"Bem" ou "interesse jurídico penalmente protegido" é o
que dispõe da reforçada tutela penal (vida, integridade corporal,
patrimônio, honra, liberdade, moralidade pública, fé pública, organização
familiar, segurança do Estado, paz internacional etc.).

 

Aduzindo especificamente sobre bem
jurídico penal e Constituição, o já mencionado Luiz Regis Prado, entende
que a noção de bem jurídico emerge dentro de certos parâmetros gerais de
natureza constitucional, capazes de impor certa e necessária direção
restritiva ao legislador ordinário, quando da criação do injusto penal .
Para Jorge de Figueiredo Dias, deve existir uma relação de mútua referência
entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem
legal-jurídico-penal.

 

Negando que bens jurídicos sejam
interesses juridicamente protegidos, tratando-se de produto de idéia
privatística do século passado, Juarez Tavares, seguindo a definição de
Habermas, defende que bem jurídico deve ser entendido como valor
(finalidade) e não como dever (norma), deixando-o na condição de
delimitador da norma, cumprindo a função de proteção da pessoa humana, que
seria o objeto final de proteção da ordem jurídica.

 

Alice Bianchini defende que o bem
jurídico protegido pelo direito penal deve ter, ao menos indiretamente,
respaldo constitucional, sob pena de não possuir dignidade. Dessa forma, é
inconcebível que o direito penal outorgue proteção a bens jurídicos que não
são amparados constitucionalmente, ou que colidam com os valores albergados
pela Carta, já que é nela que são inscritos os valores da sociedade que a
produz.

 

Ainda no entender de Alice Bianchini, a
tutela penal deve preservar-se em ultima ratio, apenas quando outros meios
não se mostrarem idôneos para proteção dos bens jurídicos. Assim, para que
se possa tipificar uma determinada conduta, há necessidade da conjugação de
três fatores: merecimento (desmembrado em dignidade do bem jurídico e ofensividade
da conduta), necessidade, além da adequação e eficácia da tutela penal.

 

Jorge de Figueiredo Dias, refletindo
sobre bem jurídico, traz à baila quatro perspectivas:

 

a) positivista-legalista (crime será tudo
aquilo que o legislador considerar como tal); b) positivista-sociológica de
Garofalo (crime deveria corresponder às violações de sentimentos
altruísticos); c) moral (ético)-social (não é função do direito penal fixar
condutas morais); d) perspectiva racional (tutela subsidiária de bens
jurídicos dotados de dignidade penal). Há necessidade de se escolher entre
tutela ético-social e subsidiária de bem jurídico, defendendo o doutrinador
português a segunda, pois carece ao direito penal legitimação para
estabelecer uma ordem de tutela moral.

 

Para o doutrinador português, não é
porque existe um bem jurídico constitucional que se dá logo legitimação
para o direito penal intervir com o discurso da criminalização,
necessitando a conjugação de três requisitos: dignidade, ofensividade e
necessidade da pena. A função do direito penal é a tutela subsidiária de
bens jurídicos, não bastando que exista um bem jurídico a tutelar, é
igualmente indispensável que os outros meios não penais se revelem
inadequados e insubsistentes, somente aí que o Estado pode avançar para a
criminalização. Aduz, ainda, que não existem imposições constitucionais
implícitas, apenas algumas explícitas (e neste caso se o legislador
ordinário não criminalizar, estaremos diante de uma inconstitucionalidade
por omissão).

 

Roxin defende que se for utilizada a
tutela penal quando outros ramos do direito se fizerem suficientes, faltará
legitimidade, que seria advinda da necessidade social, até porque a
utilização exacerbada provocaria o efeito inverso, isto é, as situações a
que se dispõe a combater, porque é evidente que nada favorece tanto a
criminalidade como a penalização de qualquer bagatela.

 

Do exposto, conclui-se que a definição de
bem jurídico está longe de encontrar harmonia na doutrina. Não obstante a
dificuldade de conceituação do bem jurídico, isto não impede que o
posicionamento doutrinário moderno seja no sentido de ser a tutela penal a
ultima ratio; somente se outros ramos do direito não puderem
satisfatoriamente proteger o bem jurídico é que o direito penal poderá
criminalizar determinada conduta, cujo limite encontrar-se-á nas garantias
fundamentais.

 

O estudo dos pressupostos da tutela penal
se mostra válido e atual, especialmente porque está se tornando cada vez
mais comum a criminalização de determinadas condutas ou a majoração de
tipos já existentes, para atender a interesses eleitoreiros ou de comoção
momentânea da sociedade pela exposição na mídia de fatos isolados. Em
contrapartida, o trabalho de política criminal, de levar o conhecimento
obtido nos estudos da criminologia ao legislador, não consegue intervir com
a mesma rapidez daqueles interesses de satisfação momentânea, o que acaba
fazendo com que o sistema penal perca a sua unidade e coerência, chegando
ao cúmulo, por exemplo, de uma conduta culposa (lesão corporal culposa
praticada na direção de veículo automotor, prevista no artigo 303 da Lei nº
9503, de 23 de setembro de 1997) ser apenada com maior rigor (o dobro) do
que a mesma conduta em sua modalidade dolosa (lesão corporal, artigo 129,
caput, do Código Penal).

 

Na verdade, concluindo-se que o direito
penal deve ser deixado como ultima ratio, percebemos que muitos crimes
previstos em nossa legislação de há muito poderiam ter sido deixados para
tutela de outros ramos do direito, que em determinadas situações são mais eficazes
que o penal. Verifica-se que a maioria dos crimes de menor potencial
ofensivo, já poderiam ter sido descriminalizados - e não apenas
despenalizados -, até porque o sujeito ao se ver diante do Juizado Especial
Criminal, por vezes, aceita a proposta de transação independentemente de
ter ou não praticado o delito, apenas para não carregar a mácula de ter
sido processado criminalmente.

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