Descriminalização Do Delito De Posse De Armas No Brasil

Douglas Morgan Fullin Saldanha

DELITOS
DE POSSE DE ARMA PREVISTOS NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO.

 

BREVES
LINHAS SOBRE OS DELITOS DE POSSE DE ARMA.

 

A conduta
insculpida no art. 12 do Estatuto do Desarmamento prevê basicamente a proibição
de se possuir¹ ou
manter sob sua guarda²,
no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de
trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento
ou empresa, arma de fogo, munição ou acessório sem a devida autorização³. Se uma
pessoa mantém uma arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido sem
autorização dentro de sua residência, ou de seu local de trabalho, desde que
seja o responsável legal pelo negócio, pratica o crime previsto no art. 12 da
Lei n. 10.826/03. Lado outro, se esta mesma pessoa mantém essa arma, munição e
acessório de uso permitido em residência alheia ou local de trabalho, desde que
não seja o responsável legal pelo estabelecimento, comete o crime de porte,
previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/03. Caso a arma, munição ou acessório seja
de uso restrito, o delito cometido será o de porte irregular de arma de fogo de
uso restrito, previsto no art. 16 do Estatuto do Desarmamento, que será comentado
adiante.

 

Primus
ictus oculi
, verifica-se a distinção realizada pelo Estatuto entre posse de
arma de fogo de uso permitido e de uso restrito. O Decreto n. 5.123/04, que
regulamenta a Lei n. 10.826/03, estabelece em seu art. 10 que arma de fogo
de uso permitido é aquela cuja utilização é autorizada a pessoas físicas, bem
como a pessoas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do Exército
[...].
Já as armas de uso restrito são aquelas de uso exclusivo das Forças Armadas,
de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas
habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército
(Dec. n.
5.123, art. 11). A norma do Comando do Exército que regulamenta a matéria é o
Decreto n. 3.665, de 20 de novembro de 2000, que prevê, nos arts. 16 e 17,
quais os produtos controlados de uso permitido e os de restrito.

 

Quando o
indivíduo estiver na posse de arma de fogo de uso restrito estará cometendo o
crime previsto no art. 16 da Lei n. 10.826/03. A posse e o porte de armas de
fogo, acessório e munição de uso restrito foram previstos em um mesmo tipo
penal, ao contrário do que ocorreu com os delitos previstos nos arts. 12 e 14
do Estatuto.

 

O bem
jurídico protegido nesses tipos penais é a incolumidade pública e o controle da
propriedade das armas de fogo. Trata-se, portanto, de crimes de perigo abstrato
e de mera conduta, pois dispensam a ocorrência de qualquer resultado
naturalístico.

 

As
condutas de adquirir e receber armas de fogo, acessório e munição não
configuram receptação, como entendem alguns, mas sim figuras penais específicas
(princípio da especialidade), previstas nos arts. 14 (em relação aos artefatos
de uso permitido) e 16 (em relação aos artefatos de uso restrito) da Lei n.
10.826/03. A aquisição ou recebimento realizados no interesse de prática
comercial ou industrial configuram o delito do art. 17 do Estatuto.

 

Os crimes
de posse de arma de uso permitido e de uso restrito são normas penais em
branco, visto que necessitam de complementação. Tais dispositivos prescrevem a
conduta de possuir arma de fogo, munição ou acessório em desarcordo com
determinação legal ou regulamentar (elemento normativo do tipo).

 

Nesses
delitos é imprescindível que a arma esteja apta a efetuar disparos, pois, do
contrário tratar-se-á de crime impossível4. Não é por outro
motivo que, por ocasião das apreensões, as autoridades policiais requisitam
laudo pericial indagando aos experts se o artefato é capaz de produzir
disparos.

 

POSSE DE
ARMAS: DELITO DE PERIGO ABSTRATO.

 

Os
delitos de posse de armas sub examen são classificados como de perigo
abstrato, ou seja, o perigo é presumido, tendo em vista a simples infrigência
da norma. Nesse diapasão o legislador penal antecipa a barreira de proteção
legal, não exigindo a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem jurídico
protegido. Portanto, considera-se que a posse de armas gera um perigo presumido
à incolumidade pública, pelo que a norma proíbe tal conduta evitando que a
vida, a saúde, a integridade física e a segurança sejam maculadas. Assinale-se,
ainda, o crime de posse de arma como um delito de “mera conduta”, visto que
neste não há resultado naturalístico.

 

Os
delitos de perigo abstrato são amplamente reconhecidos pelos tribunais pátrios,
conforme se pode verificar do julgado abaixo:

 

PENAL.
RECURSO ESPECIAL. ART. 14 DA LEI N. 10.826/03. DELITO DE PERIGO ABSTRATO.

Na linha
de precedentes desta Corte o porte de munição é
delito de
perigo abstrato, sendo, portanto, em tese, típica a conduta daquele que é
preso portando munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com
determinação legal ou regulamentar. (Precedentes). Recurso provido.
(BRASIL,
RESP n. 883824 – RS)

 

Entretanto,
parcela da doutrina e da jurisprudência questiona a constitucionalidade dos
delitos de perigo abstrato, alegando que estes ofendem os princípios
constitucionais da ofensividade ou lesividade, taxatividade e presunção de
inocência. Em relação ao princípio da ofensividade, adverte-se que o Direito
Penal só pode atuar quando determinado bem jurídico sofrer alguma lesão ou
perigo de lesão. No tocante à taxatividade, argumenta-se que alguns tipos
penais são redigidos de forma extremamente genérica, como o previsto no
parágrafo único do art. 4º da Lei n. 7.492/865, impossibilitando o
exercício da ampla defesa por parte do acusado. Relativamente à presunção de
inocência, questiona-se a presunção do perigo criado ao bem jurídico, que
geraria uma espécie de inversão do ônus da prova na ação penal.

 

Fernando
Capez, a seu turno, leciona que o princípio da ofensividade não pode ser levado
às últimas conseqüências, sob pena de ocorrer o dano, quando se podia reprimir
a conduta criminosa em seu estágio embrionário, verbis:

 

Não há
dúvida de que um fato para ser típico necessita produzir um resultado jurídico,
qual seja, uma lesão ao bem jurídico tutelado. Sem isso não há ofensividade, e
sem esta não existe crime. Nada impede, no entanto, que tal lesividade esteja
ínsita em determinados comportamentos. Com efeito, aquele que se dispõe a
circular pelas vias públicas de uma cidade ilegalmente armado ou dispara uma
arma de fogo a esmo está reduzindo o nível de segurança da coletividade mesmo
que não exista uma única pessoa por perto. A lei pretende tutelar a vida, a
integridade corporal e a segurança das pessoas contra agressões em seu estágio
embrionário
[...].

 

Não se
desconhece o princípio da ofensividade ou lesividade, segundo o qual todo crime
exige resultado jurídico, ou seja, lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico.
Ocorre que comportamentos ilícitos, como o de possuir uma arma de fogo
municiada dentro de casa ou sair pelas ruas com arma de fogo sem ter
autorização para portá-la, ou ainda disparar arma de fogo em plena via pública,
por si sós já induzem à existência de risco à coletividade. Não se pode alegar
que tais condutas não diminuíram o nível de segurança dos cidadãos apenas
porque não se logrou encontrar ninguém por perto quando de sua realização
(CAPEZ,
2006, p. 45-46).

 

Alguns
julgados, ainda que de forma minoritária, vêm rechaçando a aplicabilidade dos
delitos de perigo abstrato:

 

A infração
penal não é só conduta. Impõe-se, ainda, o resultado no sentido normativo do
termo, ou seja, dano ou perigo ao bem juridicamente tutelado. A doutrina vem,
reiterada, insistentemente renegando os crimes de perigo abstrato. Com efeito,
não faz sentido punir pela simples conduta, se ela não trouxer, pelo menos,
probabilidade (não possibilidade) de risco ao objeto jurídico.
[...] A
relevância criminal nasce quando a conduta gerar perigo de dano. Até então, a
conduta será atípica
(BRASIL, Resp n. 34322-0/RS).

 

Segundo a
tese n. 125 do Ministério Público de São Paulo, Setor de Recursos
Extraordinários e Especiais Criminais, o legislador penal brasileiro não
está proibido de prescrever crimes e contravenções penais de perigo abstrato
(p.
32).

 

CONSTITUCIONALIDADE
DO DELITO DE POSSE DE ARMAS.

 

O crime
de posse de arma consignado no art. 12 do Estatuto do Desarmamento foi
questionado no Supremo Tribunal Federal por meio das Ações Diretas de
Inconstitucionalidade ns. 3.586 e 3.112. Em síntese, combateu-se o referido
dispositivo sob alegação de ofensa, no âmbito da inconstitucionalidade
material, aos princípios da intervenção mínima, proporcionalidade, devido
processo legal e dignidade da pessoa humana. Vale destacar que o delito
previsto no art. 16, caput, do Estatuto não foi questionado.

 

No que
tange à intervenção mínima, aduz-se que o Direito Penal somente deve ocupar-se
da proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade, não merecendo reprimenda
penal a mera posse de armas de uso permitido.

 

Questionou-se,
também, naquela assentada, se o princípio da proporcionalidade não estaria
maculado, visto que a reprovabilidade social da conduta de posse de arma não
pode ser equiparada com aquelas que efetivamente lesam bens jurídicos como a
vida, a saúde, o patrimônio e a integridade física das pessoas. Não se poderia,
nessa visão, criminalizar o direito do cidadão à legítima defesa. Defendendo a
inconstitucionalidade do delito de posse de armas, Gilberto Thums asseverou:

 

Ao
proteger a segurança pública ou a incolumidade pública ou a segurança coletiva,
o legislador elege condutas que podem colocar em perigo o bem jurídico,
conforme já fora visto anteriormente. É necessário, portanto, um controle
rígido sobre as armas de fogo e explosivos.

 

É lícito
ao legislador criminalizar as condutas que geram o mencionado perigo – o risco
ao bem jurídico – que não se encontra presente no art. 12. Quem mantém sob a
guarda na sua casa arma de fogo de uso permitido tem o único objetivo: proteger
seu patrimônio, sua família e a si próprio. É inaceitável que a guarda deste
objeto de defesa possa representar uma ameaça à segurança pública. É
inconcebível que o cidadão que quer se proteger diante da ineficiência do
Estado em garantir sua segurança, esteja ameaçando a coletividade.

 

A criminalização
do art. 12 não passa de paranóia legislativa
(THUMS, 2005, p. 77).

.

Os
contrários à criminalização do delito de posse de armas de uso permitido
alegam, ainda, que a falta de razoabilidade da sobredita criminalização viola o
princípio do devido processo legal material, consoante jurisprudência do
Pretório Excelso consagrada na ADI n. 1158-8/AM, na qual se afirmou que a
essência do
substantive due process of law reside na necessidade de
proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de
legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário
coeficiente de razoabilidade
(BRASIL, ADI 1158-8/AM).

 

Enfim, o
julgamento do Supremo Tribunal Federal acabou por rejeitar a argüição de
inconstitucionalidade do art. 12 da Lei n. 10.826/03. Cumpre trazer à baila
manifestação incisiva do Relator, Min. Ricardo Lewandowski, quando do
julgamento da ADI n. 3.112: Considero este art. 12 constitucional, porque me
parece que o Estado pode regulamentar a posse de arma de fogo, seja ela de uso
permitido ou não permitido, submetendo o postulante às exigências que a própria
lei estabelece. (BRASIL, ADI 3112).
Ainda nesse sentido o Ministro Marco
Aurélio ponderou: A partir do momento em que existe a disciplina exigindo
que armas em geral sejam registradas, pouco interessa haver o porte, em si, ou
a guarda dessa mesma arma, que, a qualquer momento, poderá ser portada. Não
vejo como encontrar na Constituição Federal dispositivo que, cotejado com o
artigo 12, conduza à conclusão sobre a pecha de inconstitucional
. (BRASIL,
ADI 3112).

 

Portanto,
além da presunção de constitucionalidade das leis, nossa Corte Constitucional
posicionou-se pela validade do dispositivo inscrito no art. 12 da Lei n.
10.826/03.

 

DESCRIMINALIZAÇÃO
DO DELITO DE POSSE DE ARMAS.

 

CAMPANHAS
DE REGULARIZAÇÃO E DO DESARMAMENTO.

 

Dentre as
metas almejadas pelo Estatuto do Desarmamento está a retirada de circulação do
maior número de armas de fogo possível, visando à redução dos índices de
violência e ao fortalecimento do sentimento de segurança social. Nesse sentido
já apontava o item 9 da Exposição de Motivos n. 293, de 24 de maio de 1999:

 

9. Para
impedir que a violência continue grassando, não é suficiente apenas proibir a
venda de arma de fogo. Necessário que haja um posicionamento legal sobre as
armas que
estão em poder de particulares, na forma do art. 2º, no sentido de
determinar aos proprietários das armas que as recolham às unidades das Forças
Armadas, da Polícia Federal ou da Polícia Civil, garantindo-lhes a indenização
decorrente desse recolhimento
6.

 

Nesse
ínterim, a Lei n. 10.826/03 previu nos arts. 30, 31 e 32 algumas formas de
retirar armas de fogo de circulação, assim como regularizar aquelas que
permaneceriam em poder da sociedade civil.

 

Em seu
art. 30 o Estatuto dispôs sobre a possibilidade de os possuidores e
proprietários de armas de fogo não-registradas solicitarem o registro perante o
órgão competente: Art. 30 Os possuidores e proprietários de armas de fogo
não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180
(cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro
apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse,
pelos meios de prova em direito admitidos.

 

Esse
dispositivo consagrou uma espécie de anistia irrestrita que motivou a
aquisição, pela população, de armas não-registradas, principalmente de origem
estrangeira, para regularizá-las posteriormente. Ciente da repercussão social
que a regulamentação legal ocasionou, o legislador, por ocasião da recente
Medida Provisória n. 417/2008, alterou a redação do citado artigo para prever
que somente as armas de fogo de fabricação nacional, de uso permitido e não
registradas, assim como as de procedência estrangeira, de uso permitido e
fabricadas anteriormente ao ano de 1997 (ano de promulgação da Lei n.
9.437/97), estarão sujeitas à regularização, verbis:

 

Art. 30 -
Os possuidores e proprietários de armas de fogo de fabricação nacional, de uso
permitido e não registradas, deverão solicitar o seu registro até o dia 31 de
dezembro de 2008, apresentando nota fiscal de compra ou comprovação da origem
lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos, ou declaração
firmada na qual constem as características da arma e a sua condição de
proprietário. (Redação dada pela Medida Provisória n. 417, de 2008). Parágrafo
único. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de procedência
estrangeira, de uso permitido, fabricadas anteriormente ao ano de 1997, poderão
solicitar o seu registro no prazo e condições estabelecidos no
caput.
(Incluído pela Medida Provisória n. 417, de 2008)7.

 

O art. 318 prevê a
possibilidade de arma registrada ser entregue, a qualquer tempo, à Polícia
Federal, mediante indenização.

 

Já o art.
32 da redação original do Estatuto previa a hipótese de entrega de arma de fogo
não-registrada, no prazo de 180 dias, à Polícia Federal, desde que presumida a
boa-fé do possuidor ou proprietário: Art. 32. Os possuidores e proprietários
de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta)
dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante
recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do
regulamento desta Lei. Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no
art. 31, as armas recebidas constarão de cadastro específico e, após a
elaboração de laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e
oito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedada sua
utilização ou reaproveitamento para qualquer fim.
(BRASIL, Lei n.
10.826/03).

 

A
referida boa-fé é presumida desde que não conste no SINARM nenhum dado que
aponte a origem ilícita da arma (apreendida, furtada, roubada etc.) 9.

 

Devido ao
sucesso da campanha de regularização e do desarmamento, o prazo de 180 dias
fixado no Estatuto, cujo início deu-se em 23/12/2003, teve seu termo ad quem
estendido, por meio das Leis ns. 10.884/04, 11.118/05 e 11.191/05, até a
data de 23/10/2005.

 

Em
pesquisas da área de segurança pública resta evidente o contínuo incremento das
mortes por armas de fogo, que só sofreu decréscimo após os esforços
empreendidos na campanha do desarmamento que se deu entre os anos de 2004 e
2005: Em estudo divulgado em 2005 (WAISELFISZ, 2005), concluiu-se
que, entre 1979 e 2003, morreram mais de 550 mil pessoas vítimas de armas de
fogo. Atualizando esse registro até 2006, teríamos que incluir acima de 100 mil
mortes, acontecidas só nesses três anos, totalizando 648 mil vítimas de armas
de fogo nos 27 anos dos quais temos dados disponíveis sobre o tema. A partir
desse ano, as taxas começam a cair ano a ano. Se entre 2003 e 2004 a queda foi
de 5,5%, no ano seguinte foi de 2,8%, e em 2006, de 1,8%. Os dados estão a
indicar que as estratégias de desarmamento (estatuto e campanha), implementadas
em 2003, conseguiram reverter um processo que vinha se agravando drasticamente
ao longo do tempo, mas não foram suficientes para originar quedas sustentáveis
e progressivas ao longo do tempo, como a situação estava a demandar. A
disponibilidade de armas de fogo não é o único componente que explica os
elevados índices de violência letal existentes no país. Estão começando a
incidir outros fatores, segundo apontamos no capítulo referente a homicídios.
Além do desarmamento, na diminuição da violência letal estão políticas de
segurança pública de cunho federal, estadual e/ou municipal. Mas também parece
inegável que ainda exista ampla margem de atuação no campo do desarmamento, no
qual os índices de mortalidade por armas de fogo são ainda extremamente
elevados. Com os quantitativos acima apontados, e apesar das quedas recentes, a
taxa brasileira de mortes por armas de fogo continua elevada: 19,3 óbitos em
100.000 habitantes, ocupando ainda lugar de destaque no contexto internacional
.
(WAISELFISZ, 2008).

 

Os
resultados da campanha de desarmamento nos índices de violência e a pressão da
sociedade, principalmente por meio das ONGs, levou o legislador a novamente
conceder prazo de regularização das armas, assim como restabelecer a campanha
do desarmamento, agora de forma perene. Tal movimento culminou com a edição da
Medida Provisória n. 417/2008, que alterou as condições para a regularização
das armas não-registradas, conforme já destacamos, e estabeleceu uma permanente
campanha do desarmamento:

 

Art. 32 -
Os possuidores e proprietários de armas de fogo poderão entregá-las,
espontaneamente, mediante recibo e, presumindo-se de boa fé, poderão ser
indenizados. (Redação dada pela Medida Provisória n. 417, de 2008). Parágrafo
único. O procedimento de entrega de arma de fogo de que trata o
caput será
definido em regulamento. (Incluído pela Medida Provisória n. 417, de 2008).
(BRASIL,
Lei n. 10826/3, art. 32).

 

Por meio
da Exposição de Motivos n. 09 – MJ, de 30 de janeiro de 2008, o Sr. Ministro da
Justiça assim motivou a necessidade da implementação da campanha do
desarmamento sem definição de prazo para término:

 

4. A
urgência da medida também se manifesta por meio da alteração que se pretende ao
artigo 32 do Estatuto do Desarmamento, que a partir da edição desta medida
provisória
não mais definirá um prazo final para a entrega, mediante
indenização, de armas não registradas. Essa alteração viabilizará a retomada
das campanhas de entrega de armas que, por meio da conscientização e
mobilização da sociedade, retirará milhares de armas de fogo das mãos dos
cidadãos. Segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008, a
campanha de desarmamento promovida em 2004 foi diretamente responsável pela
redução do número de homicídios em 5,5% em relação a 2003. Por estarmos
tratando de salvar a vida de milhares de pessoas, não há como afastarmos a
urgência e relevância desta medida provisória
. (Exposição de Motivos n. 9 –
MJ).

 

A
alteração legislativa imbuída de notável espírito humanitário acabou por
acarretar, ainda que não fosse esse o objetivo, grande impacto nas normas
incriminadoras do Estatuto do Desarmamento, gerando a ineficácia de
dispositivos penais, como o delito de posse de armas, que também contribuem
para a diminuição da violência e proporcionam o controle e a redução do número
de armas em circulação.

 

REPERCUSSÃO
DAS CAMPANHAS DE REGULARIZAÇÃO E DO DESARMAMENTO NO DELITO DE POSSE DE ARMAS.

 

A partir
de 2005 o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que as benesses
consagradas nos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento promoveram uma
descriminalização temporária (abolitio criminis temporalis), ou ainda
uma vacatio legis indireta, durante o prazo definido em lei, no que
concerne aos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito
previstos nos arts. 12 e 16 da Lei n. 10.826/03. Referido entendimento está
consolidado na linha do seguinte julgado:

 

AGRAVO
REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. POSSE DE ARMA DE FOGO.
ABOLITIO
CRIMINIS. OCORRÊNCIA SE A ARMA ESTIVER NA RESIDÊNCIA OU NO TRABALHO DO
ACUSADO. TRANSPORTE DE ARMA NO VEÍCULO. PORTE ILEGAL. CONDUTA TÍPICA.

 

1. Esta
Corte firmou entendimento no sentido de ser atípica a conduta de posse
irregular de arma de fogo, tanto de uso permitido (art. 12) quanto de uso
restrito (art. 16), no período referido nos artigos 30 e 32 da Lei n.
10.826/2003, em razão da descriminalização temporária. 2. Caracteriza-se o
delito de posse irregular de arma de fogo apenas quando ela estiver guardada no
interior da residência (ou dependência desta) ou no trabalho do acusado,
evidenciado o porte ilegal se a apreensão ocorrer em local diverso.
[...]10

 

Observe-se
que o entendimento acima exposado não contempla outras figuras típicas
previstas no Estatuto do Desarmamento, mas tão-somente as condutas de posse
irregular de arma de fogo, verbis:

 

HABEAS
CORPUS. PENAL. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. FORNECIMENTO ILEGAL DE ARMA DE FOGO
(ART. 14 DA LEI 10.826/03).
ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA
NÃO-OCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. 1. Diante da
literalidade dos dispositivos legais relativos ao prazo legal para
regularização do registro da arma (arts. 30, 31 e 32 da Lei n. 10.826/03), esta
Corte tem entendido que houve sim a descriminalização temporária, mas
tão-somente no que diz respeito à posse de arma de fogo, a qual não se confunde
com as demais figuras típicas, tais como o porte, a aquisição e o fornecimento
de arma de fogo.
[...]11

 

A abolitio
criminis temporalis
não alcança o delito de porte de armas, consoante
posicionamento uníssono do Superior Tribunal de Justiça. Alguns doutrinadores
entendem que o transporte da arma de fogo para regularização ou entrega ao
órgão competente faz presumir a boa-fé do possuidor e afastar o dolo, não
incidindo o delito de porte de armas. Contudo, o melhor entendimento aponta no
sentido de se presumir a boa-fé do possuidor somente quando ele estiver
portando a Guia de Trânsito 12
expedida pela Polícia Federal.

 

No caso
de estar portando a citada guia, o fato será atípico:

 

CRIMINAL.
HC. PORTE DE ARMA DE FOGO. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. FLAGRANTE LAVRADO EM SUA
VIGÊN­CIA. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DA POSSE OU DE ENTREGA DA ARMA.
VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. EFEITOS QUE NÃO ALCANÇAM
A CONDUTA DE “POR­TAR ARMA DE FOGO”. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE.
CONDUTA TÍPICA. ORDEM DENEGADA.

 

I. A Lei
n. 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possuidores e
proprietários de armas de fogo sem registro regularizassem a situação ou as
entregassem à Polícia Federal, criou uma situação peculiar, pois, durante esse
período, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada típica.
II. A
vacatio legis indireta – assim descrita na doutrina – criada
pelo legislador tem aplicação, tão-somente, para os delitos de posse de arma de
fogo. III. A conduta de portar arma de fogo não se inclui na
abolitio
criminis temporária. IV. O agente que for surpreendido portando arma de
fogo, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar,
incorre nas sanções do art. 14 ou art. 16 do Estatuto do Desarmamento. V.
Somente estaria acobertado pela “abolitio criminis” temporária o portador de
arma de fogo de uso permitido, munido com a Guia de Trânsito expedida pelo
Departamento da Polícia Federal, em conformidade com a Instrução Normativa n.
001-DG/DPF, de 26 de fevereiro de 2004, que não é a situação dos autos. VI.
Ordem denegada.
(BRASIL, HC 57818 – SP)

 

A
descriminalização do delito de posse de armas, segundo o Superior Tribunal de
Justiça, abrange até mesmo aquela arma que estiver com o número de série
raspado tendo em vista a autonomia entre o procedimento de regularização da
arma e a faculdade de entregá-la à Polícia Federal, verbis:

 

CRIMINAL.
HC. RECEPTAÇÃO. POSSE DE ARMAS DE FOGO E DE MUNIÇÕES. FLAGRANTE LAVRADO NA
VIGÊNCIA DO ES­TATUTO DO DESARMAMENTO. POSSIBILIDADE DE REGULA­RIZAÇÃO DA POSSE
OU DE ENTREGA DAS ARMAS.
VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO
CRIMINIS TEMPORÁRIA. ATIPICI­DADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA.

 

I. A Lei
n. 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possuidores e
proprietários de armas de fogo sem registro regularizassem a situação ou as
entregassem à Polícia Federal, criou uma situação peculiar, pois, durante esse
período, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada típica. II.
É prescindível o fato de se tratar de arma com a numeração raspada e, portanto,
insuscetível de regularização, pois isto não afasta a incidência da vacatio
legis indireta, se o Estatuto do Desarmamento confere ao possuidor da arma não
só a possibilidade de sua regularização, mas também, a de simplesmente
entregá-la à Polícia Federal.
[...] (BRASIL, HC n. 42374 – PR).

 

É
oportuno lembrar que a conduta de posse de arma de fogo com numeração, marca ou
qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (art.
16, IV, Lei n. 10.826/03) não se confunde com a conduta de efetivamente
suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma
de fogo ou artefato (art. 16, I, Lei n. 10.826/03). Consoante o posicionamento
da jurisprudência, somente a conduta de posse de arma com numeração raspada,
suprimida ou adulterada estaria abarcada pela abolitio criminis temporária.

 

Questão
controvertida diz respeito ao conflito de leis penais no tempo, haja vista a
possibilidade de retroatividade da aludida abolitio criminis temporária
aos delitos cometidos sob a égide da Lei n. 9.437/97. O Superior Tribunal de
Justiça também já enfrentou a questão e manifestou-se no sentido da
retroatividade dessa descriminalização:

 

PENAL.
RECURSO ESPECIAL. ART. 1º,
CAPUT, DA LEI N. 9.437/97. ARTS. 30, 31 E
32 DO ESTATUTO DO DESARMAMEN­TO. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. FATO ANTERIOR AO
INÍCIO DO PRAZO PARA A REGULARIZAÇÃO DA ARMA.

 

I – A Lei
n. 10.826/03, em seus arts. 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores
de arma de fogo regularizassem sua situação ou entregassem a arma para a
Polícia Federal. Dessa maneira, até que findasse tal prazo, que se iniciou em
23/12/2003 e que teve seu termo final prorrogado até 23/10/2005 (cf. Lei n.
11.191/2005), ninguém poderia ser processado por possuir arma de fogo. II – A
nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos arts. 30 a 32, que a doutrina
chama de abolitio criminis temporária ou de
vacatio legis indireta
ou até mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais benéfica para o réu
(APn n. 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José Delgado, j.
15/03/2006). III - O período de indiferença penal (lex mitior), desvinculado
para os casos ali ocorridos, dado o texto legal, alcança situações anteriores idênticas.
A permissão ou oportunização da regularização funcionaria como incentivo e não
como uma obrigação ou determinação vinculada. A incriminação (já, agora, com a
novatio
legis in peius) só vale para os fatos posteriores ao período da “suspensão”.
Recurso ordinário provido
13.

 

Os
entendimentos supra colacionados foram sedimentados à luz dos arts. 30 e 32 do
Estatuto do Desarmamento, em sua redação original, que previam prazos de 180
dias para regularização e entrega voluntária das armas de fogo. Vale lembrar
que tal prazo, cujo início deu-se em 23/12/2003, teve seu termo final
estendido, por meio das Leis n.s 10.884/04, 11.118/05 e 11.191/05, até a data
de 23/10/2005.

 

Em
recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal, pela sua Primeira Turma,
decidiu que o caráter temporário das normas consignadas nos arts. 30 a 32 do
Estatuto do Desarmamento não lhe conferiam a aptidão para retroagir e alcançar
condutas realizadas antes de sua vigência:

 

EMENTA.
Habeas Corpus. Posse ilegal de arma de fogo de uso restrito cometida na
vigência da Lei n. 9.437/97. Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento).
Vacatio
legis especial. Atipicidade temporária. Abolitio criminis. 1. A vacatio
legis especial prevista nos arts. 30 a 32 da Lei n. 10.826/03, conquanto
tenha tornado atípica a posse ilegal de arma de fogo havida no curso do prazo
assinalado, não subtraiu a ilicitude penal da conduta que já era prevista no
art. 10, § 2º, da Lei n. 9.437/97 e continuou incriminada, até com maior rigor,
no art. 16 da Lei n. 10.826/03. Ausente, portanto, o pressuposto fundamental
para que se tenha por caracterizada a
abolitio criminis. 2. Além disso,
o prazo estabelecido nos referidos dispositivos expressa, por si próprio, o
caráter transitório da atipicidade por ele criada indiretamente. Trata-se de
norma que, por não ter ânimo definitivo, não tem, igualmente, força retroativa.
Não pode, por isso, configurar abolitio criminis em relação aos ilícitos
cometidos em data anterior
. Inteligência do art. 3º do Código Penal.
3. Habeas corpus denegado. (BRASIL, HC 90995 – SP).

 

A
interpretação do Pretório Excelso, trazendo à baila o argumento da norma penal
temporária14,
afastou a possibilidade de retroação da lei, mas admitiu a atipicidade das
condutas perpetradas (abolitio criminis temporalis) no período
inicialmente previsto nos arts. 30 e 32 do Estatuto.

 

Com o
advento da Medida Provisória n. 417/2008, de 31 de janeiro de 2008, o art. 32,
que restabelece a Campanha do Desarmamento, teve sua redação alterada, não
especificando prazo para término da campanha. Essa alteração foi propositada
tendo em vista o item 4 da Exposição de Motivos retro citada, que acompanhou a
medida provisória.

 

Considerando
a tese da abolitio criminis temporalis adotada pelo Superior Tribunal de
Justiça, e que, atualmente, a lei não prevê qualquer prazo para entrega
espontânea de armas de fogo à Polícia Federal, conclui-se que ocorreu uma novatio
legis in mellius,
que, ao irradiar-se pelo sistema jurídico, acarretará a
descriminalização dos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso
restrito.

 

Na dicção
de Fernando Capez (2006, p. 190), os arts. 30 e 32 da Lei n. 10.826/03
estabeleceram um “paradisíaco período de atipicidade”. Por outro lado, é dizer
que a novidade legislativa introduzida pela Medida Provisória n. 417/08 criou
uma infernal e irrestrita descriminalização no tocante à posse de armas.

 

Pode-se
afirmar que o legislador “atirou no que viu e acertou no que não viu” visto que
desejava colocar restrições à comercialização, à posse e ao porte de
armas de fogo
(JESUS, 2004) e acabou por descriminalizar o delito de posse
de armas de fogo por via da campanha do desarmamento de prazo indeterminado.

 

A nova
redação do art. 32 prevê que a entrega da arma de fogo deve ser feita
“espontaneamente”, induzindo alguns operadores do Direito a entender que o
cidadão surpreendido na posse da arma, por exemplo durante uma diligência de
busca e apreensão, estaria incidindo no delito de posse de armas. Ocorre que
isto, por si só, ainda que tenha sido a intenção do legislador, não tem o
condão de afastar o entendimento já desenvolvido, visto que o dispositivo que
prevê a entrega de armas mediante indenização não prevê prazo para fazê-lo.

 

Importa
notar que não houve promulgação de nova lei deixando de considerar o delito de
posse de armas como crime, mas sim uma derrogação implícita pela norma que
institui a campanha permanente de desarmamento.

 

Ainda que
se propugne nova alteração legislativa para retificar, em nossa opinião, essa
ocada política criminal, a medida provisória alcançará as condutas perpetradas
antes de sua vigência, haja vista o disposto no art. 5º, XL, da Constituição
Federal e nos arts. 2º. e 107, III, do Código Penal brasileiro.

 

Note-se
que temos neste caso uma medida provisória tratando de matéria penal, sendo certo
que isso é vedado pela Constituição da República. No entanto, alguns defendem
que medida provisória pode disciplinar matéria penal, desde que beneficie o
réu:

 

Como
ensinam Celso Delmanto et al., à regra segundo a qual a medida provisória não
pode ser aplicada no campo penal, “deve-se abrir exceção quando for favorável
ao acusado”. Assim também, prosseguem: o decreto-lei “embora inconstitucional,
pode e deve ser aplicado em matéria penal (STJ, RHC n. 3.337, j. em 20/9/1994,
DJU de 31/10/1994).
[...] No mesmo sentido, Fernando Capez ensina que, não obstante
o impedimento constitucional, não se justificam as restrições materiais da
Carta Magna, as quais só foram estabelecidas para impedir que medida provisória
defina crimes e imponha penas
15.

 

Outros doutrinadores,
como Damásio Evangelista de Jesus, entendem que medida provisória não pode
tratar de matéria penal, ainda que beneficie o acusado:

 

Como diz
González Macchi, de acordo com o princípio de reserva legal ou da legalidade,
“corresponde exclusivamente à lei penal tipificar os fatos puníveis e as
conseqüências jurídicas que eles geram. Nesse sentido, somente uma lei emanada
do Poder Legislativo pode proibir as condutas consideradas puníveis e
impor-lhes uma sanção, em virtude do princípio constitucional que regula o
sistema de separação e equilíbrio de poderes”.
[...] Não
podemos nos esquecer de que a finalidade da restrição a que a medida provisória
reine sobre Direito Penal diz respeito a não se permitir que a vontade única de
uma pessoa, qual seja, o Presidente da República, determine regras sobre
direitos fundamentais
[...]. A admissão da analogia “in bonam partem
também não serve de argumento contrário. Ocorre que nela há uma lei penal
regendo matéria similar, ao contrário do que acontece com a medida provisória,
a qual não é lei.
(JESUS, 2004)

 

Confirmando
a descriminalização anunciada, pode-se vislumbrar não só a abolitio criminis
do delito de posse de armas, mas também a de posse de munições e acessórios
tendo em vista a analogia in bonam partem (BRASIL, Dec-Lei n. 4657).

 

CONCLUSÕES.

 

Todo o
arcabouço jurídico estudado revela o recrudescimento da legislação penal pátria
no que tange aos delitos envolvendo armas de fogo. Indubitavelmente essa
evolução legislativa deu-se em face da crescente violência e dos altos índices
de mortes por arma de fogo.

 

Houve,
contudo, os que se posicionaram desfavoravelmente às severas punições cominadas
àqueles que fossem flagrados na posse e porte de armas de fogo. Alegou-se que o
Estado não podia restringir o direito do cidadão de possuir armas sem
prestar-lhe um eficiente serviço de segurança pública.

 

Ultrapassados
os questionamentos quanto à constitucionalidade das normas inscritas na Lei n.
10.826/03, verificou-se uma sucessão de reformas pontuais que acabaram por
desfigurar em parte o intuito repressor desse diploma legal.

 

Um dos
pontos altos da Lei de Desarme atual refere-se à campanha de entrega voluntária
de armas que possibilitou a retirada de circulação de mais de 464.000 armas de
fogo entre 2004 e 2005.

 

No
intuito de perpetuar essa experiência positiva, que foi elogiada em todo o
mundo, o legislador brasileiro resolveu instituir, por meio da Medida
Provisória n. 417/2008, a campanha do desarmamento de forma permanente, ou
seja, sem prazo final.

 

Ocorre que,
na esteira do entendimento jurisprudencial firmado pelos tribunais superiores,
as normas que concediam o direito à regularização de armas não registradas ou
sua entrega à Polícia Federal, à luz da redação original, acarretaram a abolitio
criminis
temporária dos delitos de posse de armas.

 

Portanto,
considerando a tese da abolitio criminis temporalis adotada pelo
Superior Tribunal de Justiça e que, atualmente, a lei não prevê qualquer prazo
para entrega espontânea de armas de fogo à Polícia Federal, conclui-se que
ocorreu uma novatio legis in mellius, acarretando a descriminalização
dos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.

 

 

NOTAS.

 

1 Significa ser proprietário ou possuidor da arma, acessório ou
munição; ter em seu poder.

2 Representa a detenção da arma, acessório ou munição em nome de
terceiro.

3 Vide Capítulo II da Lei n. 10.826/03.

4 BRASIL, Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 17.
Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por
absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

5 BRASIL, Lei n. 7.492, de 16 de junho de 1986, Art. 4º, Parágrafo
único. Se a gestão é temerária.

6 Exposição de Motivos n. 293, de 24 de maio de 1999 apud Figueiredo
(2006).

7 BRASIL, Lei n. 10.826/03, art. 30, com a redação dada pela
Medida Provisória n. 417/08.

8 BRASIL, Lei n. 10.826/03, Art. 31: Os possuidores e
proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer
tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos
do regulamento desta Lei
.

9 BRASIL, Decreto n. 5.123/04. Art. 69: Presumir-se-á a boa-fé
dos possuidores e proprietários de armas de fogo que se enquadrem na hipótese
do art. 32 da Lei n. 10.826, de 2003, se não constar do SINARM qualquer
registro que aponte a origem ilícita da arma.

10 BRASIL, STJ, HC 83680/MS, Relator Ministro Paulo Gallotti, DJ
19.12.2007, p. 1237. No mesmo sentido, entre outros, RHC 19466/RS, Ministro
Paulo Gallotti, DJ 26.02.2007, p. 641.

11 BRASIL, STJ, HC 75517/MS, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJ
14.05.2007, p. 360. No mesmo sentido: HC 90027/MG, Relatora Ministra Laurita
Vaz, DJ 19.11.2007, p. 267; AgRg no REsp 763840/RN, Relator Ministro Hamilton
Carvalhido, DJ 25.06.2007, p. 313.

12 BRASIL, Decreto n. 5.123, de 1º de julho de 2004. Art. 28. O
proprietário de arma de fogo de uso permitido registrada, em caso de mudança de
domicílio, ou outra situação que implique no transporte da arma, deverá
solicitar à Polícia Federal a expedição de Porte de Trânsito, nos termos
estabelecidos em norma própria.

13 BRASIL, STJ, RHC 21271/DF, Relator Ministro Felix Fischer, DJ
10.09.2007, p. 245. No mesmo sentido: BRASIL, STJ, REsp 895093/RS, Relatora
Ministra Laurita Vaz, DJ 06.08.2007, p. 679

14 BRASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Art. 3.
A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração
ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado
durante sua vigência.

15 Exposição de Motivos n. 293, de 24 de maio de 1999 apud Figueiredo
(2006).

 

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