Flaviane De Magalhães Barros
O
Brasil passa por um importante período de discussão sobre a possibilidade de
utilização do interrogatório por videoconferência. Importantes decisões já
foram tomadas pelos Tribunais Superiores sobre o tema, em especial pelo Supremo
Tribunal Federal, como no HC 88.914-0, e pelo Superior Tribunal de Justiça,
como no HC 102.440, ambos originados de casos ocorridos no Estado de São Paulo.
O legislativo federal aprovou o Projeto de Lei n.º 11.900/2009, que, sancionado
pelo Presidente da República, entrou em vigor na data de sua publicação, dia 08
de janeiro de 2009. A mudança foi efetivada com alterações na redação do
artigo 185 do Código de Processo Penal que antes previa duas possibilidades de
interrogatório: (1º) o realizado no ambiente forense e (2º) o realizado na
penitenciária. Ambos se davam, obrigatoriamente, com a presença de todos os
sujeitos do processo: juiz, serventuário da justiça, membro do Ministério
Público, advogado do acusado, do querelante e do assistente (se houver) e do
próprio acusado.
Com a
alteração legislativa tornou-se possível a realização do interrogatório via
videoconferência, em que o juiz e os demais sujeitos processuais
encontrar-se-ão nas dependências do fórum, enquanto o acusado permanecerá no
estabelecimento prisional. Assim, nestes casos, a nova redação do § 5º do art.
185 prevê, implicitamente, a necessidade da presença de um defensor no estabelecimento
prisional, inclusive com um canal de comunicação reservado entre este e o
defensor do acusado, que se encontrará na sala de audiência. A nova lei
determina ainda a fiscalização do ambiente de videoconferência nos
estabelecimentos prisionais pelo juiz da causa e pelo juiz corregedor, bem como
pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.
A
mudança poderia ter sido menos desastrosa se não fosse conjugada com a reforma
do procedimento comum do processo penal que introduziu a audiência una (BARROS,
2008). Mesmo tendo a Lei 11.719/08 modificado o momento do interrogatório do
acusado, que passou a ser o último ato da instrução - e, por conseqüência, um
verdadeiro e efetivo meio de defesa -, a concentração dos atos de instrução e
julgamento em uma audiência única fará com que nos casos de interrogatório on
line todo o processo seja realizado por videoconferência. Pode-se inclusive
chegar ao absurdo de um processo em que o acusado preso em flagrante, mas sem
condições para constituir defensor, seja defendido por um defensor nomeado, não
tendo com ele nenhum contato pessoal.
O
próprio direito à entrevista reservada, garantido no § 5º do art. 185, será
cumprido pelo mesmo sistema de videoconferência que realizará o interrogatório
e toda a audiência. Em verdade, o processo ocorrerá, todo ele, sem a presença
do acusado, sem o contato pessoal do acusado com os demais sujeitos do
processo.
Logo, a
grande implicação constitucional da introdução da videoconferência como meio
para realização de atos do processo é o fim do contato presencial do juiz com a
parte e com a prova. Isso, além do risco do acusado ser julgado sem nunca ter
tido contato pessoal com os seus defensores. É a completa exclusão da presença
do acusado, que é colocado como um verdadeiro inimigo do Estado e da sociedade.
Portanto,
ante tal lei, apresenta-se alguns importantes encaminhamentos, sendo o primeiro
argüir sua inconstitucionalidade, seja por meio da ação direta de
inconstitucionalidade, pelos seus legitimados, seja pelo controle difuso, ou
por meio Habeas Corpus pelos afetados em processos penais. Estas,
certamente, são as medidas mais acertadas, embora demandem tempo e muita
discussão, já que a questão é posta em termos de uma suposta colisão de
princípios: de um lado a economia da administração pública conjugada com a
realização da política de segurança pública adequada aos presos perigosos e de
outro lado o direito à ampla defesa de todo acusado em processo penal.
Enquanto
isto, o debate sobre a realização de interrogatório por videoconferência será
travado no caso concreto pelos sujeitos do processo. Ou seja, no dia a dia da
prática forense de primeira instância, especialmente. Na análise das hipóteses
previstas na Lei, verificam-se quatro situações distintas que podem ensejar a
realização do interrogatório por videoconferência. A primeira é a participação
do acusado em organização criminosa que pretende organizar sua fuga durante o
traslado ao estabelecimento forense (art. 185, § 2º, I). Ou então, a doença ou
outra circunstância pessoal do preso que inviabilize seu deslocamento (art.
185, § 2º, II).
Há
também a hipótese da coação ou influência junto às testemunhas e vítimas pelo
acusado conjugado com a impossibilidade de realizar a oitiva daquelas pessoas
por meio de videoconferência, como prevê a nova redação do art. 217 do CPP
(art. 185, § 2º, III). Isto, porque, na nova redação do art. 217 do CPP, se as
testemunhas ou vítimas se sentirem constrangidas de prestar depoimento na
presença do acusado, elas é que serão inquiridas em local isolado, sendo o
depoimento realizado por videoconferência.
Contudo,
a mais temerária das hipóteses é a inserida no art. 185, § 2º, IV, do CPP que
trata de medida que visa atender "gravíssima questão de ordem
pública". Pois, desse caso trata-se de uma hipótese aberta, que precisa
ser interpretada a partir do caso concreto. Assim, na tentativa de uma
interpretação conforme a Constituição, como poderia ser entendida a
"gravíssima questão de ordem pública"?
Nossa
lei processual já utiliza em inúmeros momentos o fundamento da garantia da
ordem pública, como, por exemplo, no art. 312 do CPP, para decidir sobre a
prisão preventiva. Logo, os argumentos para o interrogatório por
videoconferência têm que ter características de absoluta anormalidade, como
hipóteses de catástrofes, estado de emergência, estado de sitio, organização de
grupos armados que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Isto é,
diversas daquelas que atualmente ensejam a fundamentação da garantia da ordem
pública. Isso, principalmente porque a hipótese que visa à manutenção da
segurança pública já se encontra claramente delineada no inciso I, do § 2º do
referido artigo, que objetiva evitar a fuga de membros de organizações
criminosas.
Outros
pontos que precisam ser levados em conta, em uma interpretação a partir do
texto constitucional, a respeito do interrogatório por meio de videoconferência
devem ser delineados, pois não se pode com tal medida retirar direitos dos
acusados. Assim, não se pode admitir dois tipos de processo penal, um com
respeito ao contraditório e à ampla defesa e outro sem. Principalmente, quando
a distinção se dá em razão da imputação de participação do acusado em
organização criminosa. Nesse caso, o interrogatório on line somente
deveria ocorrer se ficasse demonstrada a real impossibilidade de realização do
interrogatório no estabelecimento prisional com a participação de todos os
sujeitos do processo, previsto no § 1º do art. 185 do CPP. Ou seja, o
interrogatório por videoconferência é medida excepcionalíssima.
Também,
não poderão ser meras ilações da policia judiciária ou do Ministério Publico os
fundamentos da decisão de realizar o interrogatório não presencial. É preciso
provas, e provas produzidas em contraditório. Ou seja, o pedido de conversão do
interrogatório realizado no estabelecimento forense para o realizado por
videoconferência, ou mesmo, a decisão de ofício do juiz, deverá originar um
incidente processual, em que as partes têm direito de argumentar e provar a
existência ou inexistência da hipótese legal prevista no art. 185, § 2º do
CPP.
Mais do
que isto, deve-se garantir ao acusado preso o contato com seu defensor
constituído ou nomeado, tanto no momento anterior a decisão de conversão em
interrogatório on line, como após a decisão e antes da realização da
audiência de instrução e julgamento para a preparação da defesa e
esclarecimentos de pontos relevantes.
Diante
da ausência de fundamentação ou sendo esta deficiente, ou até mesmo pela
ausência de suporte fático para a decisão, devem as partes, seja a defesa ou a
acusação, impugnarem a decisão do juiz. O mesmo deve-se fazer quando não for
garantido o contraditório e a ampla defesa. Enquanto não sobrevém a reforma da
parte recursal do CPP, certamente, o único meio de impugnação hábil a impedir o
interrogatório on line é o Habeas Corpus, principalmente em razão
da necessidade de intimação das partes sobre a decisão com um prazo de mínimo
de 10 (dez) dias antes da realização da audiência una, prevista nos arts. 400,
411 e 531 todos do CPP.
Mas
quando se tratar de nulidade absoluta, por ferir o princípio da ampla defesa
e/ou do contraditório, tal nulidade poderá ser argüida a qualquer tempo no
processo, por meio de preliminar na apelação ou como fundamento de recurso especial
e extraordinário. Assim, quando ficar demonstrado que o acusado foi julgado sem
ter qualquer contato pessoal com seu defensor, que não foi assegurado o direito
ao contraditório, que não se tratou de medida excepcional, haverá nulidade!
A mesma
nulidade poderá ser argüida quando demonstrado que o local ou equipamento da
videoconferência no estabelecimento prisional não garante ao acusado o direito
de se comunicar com seu advogado reservadamente ou mesmo que não lhe garante
segurança pessoal mínima para apresentar seus argumentos de autodefesa. Cabe
ressaltar que a nulidade não atingirá apenas parte da audiência una, ou seja, o
interrogatório, mas todos os atos instrutórios e decisórios nela realizados,
pois todos estarão interligados e também desrespeitada restará a ampla defesa
que garante a presença e participação do acusado em todos os atos da instrução.
Aos
operadores de direito, portanto, cabe exigir o respeito à Constituição e às
garantias do processo. Nem mesmo o processo legislativo (CATTONI DE OLIVEIRA,
2006) pode suprimir direitos e garantais fundamentais do cidadão, somente por
ter sido o projeto de lei votado pela maioria do Congresso Nacional. Na
aplicação da Lei n.º 11.900/2009, os direitos e garantias dos cidadãos podem e
devem ser exigidos por meio do processo jurisdicional. Ou interpreta-se o art.
185 da lei 11.900/09 conforme a Constituição ou todos os interrogatórios on
line estarão fadados a inúmeros pedidos de reconhecimento de nulidades por
desrespeito ao contraditório e à ampla defesa, ou melhor, ao modelo
constitucional de processo.