Execução fiscal. Bens fungíveis. Depositário judicial. Auxiliar do juízo. Cumprimento de munus publico. Prisão civil. Possibilidade.
Rel. Des. Élcio Pinheiro De Castro
Cuida-se de habeas corpus, com pretensão liminar, impetrado por Marcus Siqueira de Araújo, em favor de Venitor João Bruschi, contra decisão do MM. Juiz Substituto da 2ª Vara Federal de Execuções Fiscais de Porto Alegre/RS, lavrada nas seguintes letras: “Trata-se de execução fiscal ajuizada pela Fazenda contra POLSUL POLIURETANO LTDA. para cobrança de créditos referentes à contribuição social. Na data de 14/08/2002 foram penhorados bens da empresa executada, sendo nomeado depositário o representante legal da executada, Sr. Venitor João Bruschi, consoante auto de penhora e depósito à fl. 10. Em 10/03/2005, os bens foram reavaliados (fl. 53) em R$ 28.000,00 (vinte e oito mil reais). Expedido edital de leilão, não logrou êxito o leiloeiro na diligência empreendida para fotografar os bens, conforme informação da fl. 57. Atendendo à intimação da fl. 64, a empresa executada veio aos autos à fl. 67, solicitando prazo para nomeação de outros bens em substituição aos penhorados anteriormente, tendo em vista que estes são bens fungíveis. Deferido o prazo requerido, a executada ofereceu à constrição títulos da Eletrobrás (fls. 73/74) nomeação esta que não foi aceita pelo Juízo, conforme se verifica do teor da decisão da fl. 97. Intimado do despacho à fl. 97, a executada agravou de instrumento (fls. 110/18) tendo o TRF da 4ª Região negado provimento ao recurso (fls. 131/150). À fl. 127, procedeu-se à reiteração da intimação do depositário dos bens, o qual restou silente (fl. 128). A situação retratada nos autos é inadmissível. Há quase dois anos procura-se localizar os bens constritos - 240 baldes de tinta acrílica branca - sem êxito, porque o depositário, intimado pessoalmente em três ocasiões, queda-se inerte. Sua conduta é atentatória à dignidade da Justiça, pois exerce sua posse em nome do órgão judicial, e a reiteração de suas evasivas afeta sobremaneira a gestão pública dos bens constritos ao feito ora em andamento. A alegação de que os baldes de tinta perderam a validade e a 'fábrica de tintas há muito encerrou suas atividades, não mais produzindo o produto (fl. 73)' não justifica a conduta omissiva do depositário, pois é notório que baldes de tinta acrílica branca podem ser facilmente encontrados no mercado, sendo bens de fácil trânsito econômico. Ante o exposto, e com fundamento no artigo 904, § único, do CPC, determino a expedição de mandado de prisão de VENITOR JOÃO BRUSCHI (CPF 145.252.080-15) por trinta dias, em regime fechado, do qual deverá constar o valor atualizado dos bens penhorados à fl. 10. Preliminarmente ao encaminhamento do mandado à Polícia Federal, intime-se, com urgência e pela derradeira vez, o depositário para que apresente os bens constantes do auto de penhora de fl. 10, uma vez que é seu o ônus da conservação (a alegada perda de validade do produto não foi sequer comunicada ao Juízo, que poderia determinar a venda antecipada dos bens ou outra providência cabível) ou deposite em Juízo o equivalente em dinheiro, no prazo de quarenta e oito horas. Certificado nos autos o descumprimento da ordem, encaminhe-se o mandado à Polícia Federal, para que seja efetivada a prisão.“ Em razão disso, foi ajuizado o presente mandamus. Sustenta o Impetrante, em síntese, que a prisão civil do depositário infiel afronta o 'Pacto de São José da Costa Rica' e a Constituição Federal, principalmente em face da edição da emenda constitucional nº 45/2004. Aduz também que tal medida não é cabível nas hipóteses de bens fungíveis, como no caso em tela. Nesse contexto, requer a concessão liminar da ordem para que seja expedido salvo-conduto, a fim de que o MM. Juiz a quo “se abstenha de atentar contra a liberdade de locomoção do paciente“. Em que pesem as doutas razões de fls. 03-11, não se verifica a presença dos requisitos legais para o deferimento da medida de urgência buscada no presente writ. Com efeito, insta registrar que a restrição à liberdade do depositário infiel é um dos casos raros de prisão civil, expressamente prevista na Carta Magna, somente admitida pelo legislador pátrio quando o depositário, na hipótese de bens penhorados em garantia de execução judicial, descumpre o “dever ético jurídico de restituí-los, sempre que assim for determinado pelo juízo“, conforme salientou o ilustre Ministro Celso de Mello, em decisão da 1ª Turma do STF (HC nº 71038/MG, public. no DJ de 13.05.1994, p. 11339). Assim, conforme reiterados precedentes jurisprudenciais, tal medida não implica qualquer ofensa à Constituição Federal (mesmo após o advento da EC nº 45/2004) enquadrando-se na ressalva prevista no artigo 5º, inc. LXVII, da CF/88, já que não se trata de simples prisão por dívida, mas decorrente do descumprimento de munus público, consubstanciado no dever de guarda e conservação, bem como na ausência de restituição do bem quando solicitado pelo depositante. A respeito do tema, vejam-se as ementas dos seguintes julgados dos Tribunais Superiores: “HABEAS CORPUS. DECRETAÇÃO DA PRISÃO DE DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL. MODALIDADE DE SEGREGAÇÃO DA LIBERDADE QUE NÃO DECORRE DE UMA RELAÇÃO CONTRATUAL, MAS, SIM, DO MUNUS PÚBLICO ASSUMIDO PELO DEPOSITÁRIO. ALEGAÇÕES DE QUE PARTE DOS BENS PENHORADOS JÁ FOI DEVOLVIDA E DE QUE O PACIENTE JÁ ESTAVA DESLIGADO DA PESSOA JURÍDICA EXECUTADA NÃO RESPALDADAS PELOS ELEMENTOS DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DA MATÉRIA DE FATO. O depositário judicial assume o munus público de órgão auxiliar da Justiça, pois a ele é confiada a guarda dos bens que garantirão a efetividade da decisão a ser proferida no processo judicial. É o vínculo funcional entre o Juízo e o depositário que permite, verificada a infidelidade, a decretação da prisão deste último. Não se trata, portanto, de hipótese de prisão contratual. É esta natureza não-contratual do vínculo que faz com que a medida de constrição da liberdade individual se enquadre na ressalva do inciso LXVII do art. 5º da Constituição da República. As alegações de que parte dos bens já foi devolvida, bem assim de que o depositário judicial já se havia desligado de sua empresa, são contrariadas pelos documentos dos autos, sendo inviável o reexame aprofundado do acervo probatório em sede de habeas corpus. Ordem denegada.“ (STF, Primeira Turma, HC nº 84484/SP, Rel. Min. Carlos Britto, public. no DJU de 07.10.2005, p. 27). “CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO INFIEL. POSSIBILIDADE, MESMO APÓS O ADVENTO DA EC 45/2004, QUE INTRODUZIU O § 3º NO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PENHORA EM EXECUÇÃO FISCAL. FALÊNCIA SUPERVENIENTE. SÚMULA 305/STJ. NÃO INCIDENTE NA HIPÓTESE DOS AUTOS. 1. Nos termos do § 3º do art. 5º da CF (introduzido pela EC 45/2004), “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais“. Trata-se de exceção à regra geral segundo a qual os tratados internacionais ratificados pelo Brasil incorporam-se ao direito interno como lei ordinária. 3. Quanto aos tratados sobre direitos humanos preexistentes à EC 45/2004, a transformação da sua força normativa – de ordinária para constitucional - também supõe a observância do requisito formal de ratificação pelas Casas do Congresso, por quorum qualificado de três quintos. Tal requisito não foi atendido, até a presente data, em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos). Continua prevalecendo, por isso, o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que autoriza a prisão civil do depositário infiel. 4. É cabível a prisão civil de depositário infiel de bens penhorados em execução fiscal. 5. A aplicação da Súmula 305/STJ supõe demonstração não apenas do decreto de falência, mas também da efetiva arrecadação dos bens pelo síndico. Precedentes. 6. Recurso a que se nega provimento.“ (STJ, Primeira Turma, RHC nº 19087/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, public. no DJU de 29.05.2006, p. 158). De igual forma, a fungibilidade dos bens não afasta a medida restritiva, porquanto, como visto, esta decorre da violação de deveres assumidos perante o Juízo, sendo irrelevante a natureza da coisa depositada. Nesse sentido: “HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO FISCAL. BENS FUNGÍVEIS. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. AUXILIAR DO JUÍZO. CUMPRIMENTO DE MUNUS PÚBLICO. PRISÃO CIVIL. POSSIBILIDADE. 1. Não se aplica ao depósito judicial o regime civil do contrato de depósito de bens fungíveis. 2. Ao contrário do que ocorre no depósito contratual, regulado nos artigos 280 e 286 do Código Comercial, 627 a 646 do Código Civil em vigor (1266 a 1281 do Código de 1916) e em outras leis especiais, no depósito judicial, o depositário atua como auxiliar do juízo da execução, cumprindo-lhe, no exercício do mister, guardar e conservar os bens apreendidos, estando sempre pronto a apresentá-los, caso instado a tanto. 3. A falta de argumentos plausíveis a justificar o descumprimento do dever de guarda legitima a prisão civil do depositário judicial. 4. Ordem de habeas corpus denegada.“ (STJ, Segunda Turma, HC nº 51777/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, public. no DJU de 04.10.2006, p. 207). “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DEPÓSITO JUDICIAL. BENS FUNGÍVEIS. PRISÃO CIVIL. CABIMENTO. Tratando-se de depósito judicial, é legítima a prisão civil do depositário infiel, sendo irrelevante o fato dos bens depositados serem fungíveis. Precedentes do STJ. Recurso não provido.“ (STJ, Quarta Turma, RHC nº 18453/PI, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, public. no DJU de 12.06.2006, p. 484). “PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE DEPÓSITO. COISAS FUNGÍVEIS. POSSIBILIDADE. CARÊNCIA DE AÇÃO. NULIDADES. SENTENÇA ULTRA PETITA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CPC, ARTS. 901 E SEGUINTES. 1 a 3. 'omissis'. 4. O depositante pode manejar a ação de depósito para pleitear restituição da coisa depositada, mesmo que se trate de bens fungíveis. Aplicação dos artigos 901 e 903 do Código de Processo Civil. 5. 'omissis'. 6. Inobstante tratar-se de depósito de bens fungíveis, o depositário infiel pode ter sua prisão decretada. Jurisprudência atual do STF e do STJ. 7. A convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) do qual o Brasil é signatário, não impede a prisão do depositário infiel porquanto expressamente prevista no inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal - Precedentes do Supremo Tribunal Federal.“ (TRF da 4ª Região, Terceira Turma, AC nº 1999.71.02.005222-4/RS, Rel. Juiz Federal Sérgio Renato Tejada Garcia, public. no DJU de 22.05.2002, p. 275). Ante o exposto, ausentes os requisitos legais, indefiro a liminar. Solicitem-se informações à digna autoridade impetrada, que as prestará no prazo de 05 (cinco) dias. Após, abra-se vista dos autos à douta Procuradoria Regional da República. Intimem-se. Publique-se. (19.03.07)