Descaminho. Princípio da insignificância. Art. 18, § 1º da Lei 10522/2002. Ilegalidade na aplicação do parâmetro fixado em R$ 2.500,00. Precedentes do STJ. Voto de desempate em embargos infringentes.
Rel. Des. Élcio Pinheiro De Castro
Cuida-se de habeas corpus, com pretensão liminar, impetrado pela Defensoria Pública da União, em favor de Maria de Lourdes Medeiros, objetivando o trancamento da ação penal nº 2004.72.00.016962-6/SC. Segundo se depreende, a paciente foi denunciada pela prática, em tese, do delito tipificado no artigo 334 do Código Penal, por ter introduzido em território nacional mercadorias de procedência estrangeira, sem o pagamento dos tributos incidentes (IPI e II) no valor de R$ 2.492,11 (dois mil, quatrocentos e noventa e dois reais e onze centavos). O MM. Juiz a quo, com base no princípio da insignificância, rejeitou a denúncia, nos termos do artigo 43, inc. I, do CPP (fls. 21-3). Esta Corte, na sessão de 18.05.2005, considerando a existência de outros registros criminais em desfavor da paciente, deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público para receber a peça acusatória (fls. 56-63). O feito encontra-se atualmente na fase do artigo 500 do Diploma Processual. Nesse contexto, foi ajuizado o presente writ. Sustenta a Impetrante, em síntese, que “ao afirmar a existência de 'processos criminais' num total de 06 (fl. 60) a acusação acabou por induzir em erro, tanto o Relator quanto os demais componentes da Turma, fazendo crer que efetivamente havia contra a acusada, além do feito nº 2004.72.00.016962-6, mais 06 processos criminais, quando na verdade, tratava-se somente de 02 inquéritos policiais e 04 outros incidentes relacionados a esses mesmos inquéritos“. Refere também que a mera tramitação de outro processo penal “não é apta a ensejar conclusões quanto à personalidade da ré, se voltada ou não para a prática de atividades criminosas, porquanto, conforme o princípio da Presunção de Inocência, ninguém pode ser considerado culpado (ou tratado como tal) até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.“ Menciona, ainda, precedente do STJ no sentido de que “circunstâncias de caráter eminente pessoal, tais como reincidência, maus antecedentes bem como o fato de haver processos em curso visando a apuração da mesma prática delituosa, não interferem no reconhecimento de hipóteses de desinteresse penal específico.“ Diante disso, requer a concessão liminar da ordem e sua posterior confirmação pela Turma para que a referida ação penal seja trancada. Ab initio, quanto ao valor dos tributos sonegados, em face de diversos julgados do STJ (Quinta Turma, HC nº 61.133/RS, Rel. Min. Laurita Vaz; Sexta Turma, HC nº 32.576/RS, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, publicados no DJU de 20.11.2006 e 06.02.2006, respectivamente) tenho manifestado entendimento de não ser mais aplicável o parâmetro de R$ 2.500,00 (conforme reiterados precedentes desta Corte) por força do artigo 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, referente à extinção dos débitos inscritos em dívida ativa. Inobstante isso, a posição majoritária da Oitava Turma deste Regional é no sentido da manutenção do patamar de dois mil e quinhentos reais. A propósito, vejam-se as ementas dos seguintes julgados: “PENAL E PROCESSO PENAL. ARTIGO 70 DA LEI Nº 4.117/92. MENOR POTENCIAL OFENSIVO. ARTIGO 183 DA LEI Nº 9.472/97. DATA DA OCORRÊNCIA DO FATO. TELECOMUNICAÇÕES. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. EMENDATIO LIBELLI. ESTELIONATO CONTRA O PARTICULAR E CONTRA A UNIÃO. FALSIDADE DE DOCUMENTO PÚBLICO. SÚMULA Nº 17 DO STJ. INAPLICÁVEL. CONSUNÇÃO. ABSORÇÃO DO CRIME MENOS GRAVE (ESTELIONATO) PELO MAIS GRAVE (USO DE DOCUMENTO PÚBLICO FALSO). (...) De acordo com a orientação adotada pela 4ª Seção desta Corte, aplica-se o princípio da insignificância, no delito de descaminho, quando o valor do tributo elidido não exceder R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). O agente que, mediante apresentação de guias DARF falsas, obtém a liberação de mercadoria na alfândega, pratica o delito tipificado no art. 293, V e § 1º, do CP. Inaplicável, na hipótese, a Súmula nº 17 do STJ, uma vez que o princípio da consunção exige, para sua incidência, que a pena do crime-meio seja inferior à do crime-fim, ficando, assim, o estelionato absorvido pelo crime de uso de documento público falso (infração mais grave). Precedente desta Corte.“ (ACR nº 2003.04.01.046574-2, Rel. Des. Paulo Afonso Brum Vaz, public. no D.E. em 18.04.2007). “PENAL. DESCAMINHO. ESTADO DE NECESSIDADE E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. NÃO CABIMENTO. AUTORIA DO CO-RÉU. PROVA. ASSINATURA NO TERMO DE LACRAÇÃO DE MERCADORIAS. DOLO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO APLICAÇÃO. (...). Para a configuração do delito previsto no art. 334, caput, do Código Penal, basta a vontade livre e consciente de internar mercadorias de origem estrangeira sem o pagamento do tributo devido, não importando se a condição é de proprietário ou não (...). Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de descaminho quando o valor do tributo não recolhido mostra-se irrelevante, justificando, inclusive, o desinteresse da Administração Pública na sua cobrança. Parâmetro de R$ 2.500,00 fixado nos precedentes desta Corte.“ (ACR nº 2001.71.02.000814-1, Rel. Des. Luiz Fernando Wowk Penteado, public. no D.E. em 11.04.2007). A par disso, na hipótese sub judice, a Oitava Turma, ao apreciar o RSE número 2004.72.00.016962-6/SC (fls. 56-63) afastou o reconhecimento do aludido instituto em face da reiteração delituosa por parte da paciente, porquanto apresentava outros registros criminais por delitos da mesma natureza. Todavia, esta Corte, no julgamento dos Embargos Infringentes números 2002.70.04.003330-1, 2005.70.02.007862.6, 2005.71.05.0063706 e 2004.72.10.002072-0, ocorrido em 15.03.2007, em decorrência de precedente do STF, alterou o entendimento sobre a matéria, passando a considerar que a existência de outros procedimentos criminais contra o agente não deve constituir óbice para a incidência do princípio da insignificância. O voto de desempate do Presidente da 4ª Seção (Des. Amaury Chaves de Athayde) foi lavrado nas seguintes letras: “No julgamento da apelação não houve discrepância quanto ao valor dos tributos iludidos como limite para a aplicação do princípio da insignificância, na ordem de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), como pacificado por esta Seção. Deu-se divergência apenas no tocante à atuação de aspecto subjetivo do delito, assim o registro de antecedentes pela parte ré por atos anteriores à presente ação, incurso em delito de descaminho, como impeditivo à destipificação criminal in concreto. A douta posição majoritária firmou a condenação, afastando a aplicação do princípio da insignificância conquanto a repercussão financeira da ação censurada não tenha superado aquele limite, haja vista a parte ré registrar antecedentes; o r. voto minoritário pôs-se pela atipicidade da conduta tendo em conta a inexpressividade da lesão jurídica por cifra inferior ao aludido limite, sem encontrar óbice nas circunstâncias subjetivas. Sendo tal a equação, cativo ao balisamento da divergência (CPP, 609, § único, in fine), penso não ser factível trazer à consideração, nesta quadra de julgamento de embargos infringentes, questão relativa ao valor limite em que se inscreve a conduta atípica. Com efeito. No caso concreto, o valor delimitador da bagatela reside em R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Isso está definido forte no julgamento da apelação, unânime no tocante. Logo, esse valor, não cabe ser modificado nesta sede recursal - máxime in pejus para a parte ré recorrente -, pois a ela não se encontra submetido. E não o pode nem a pretexto de assunção de inovada posição favorável ao réu a respeito da aplicabilidade do princípio da irrelevância vinculadamente a aspecto outro, apenas esse sujeito ao crivo do recurso presente e somente no concernente a ele restando decidir. Fosse de outra forma, data venia, estar-se-ia a incorrer em reversão da ordem do processo, com o que o direito pátrio não se compadece. Assim fixado, então, sem importar em definitividade da posição da Seção a respeito do valor do tributo iludido para a estipulação da bagatela, o que permanece em aberto - reservando-se o Colegiado ao seu reexame futuramente, quando venha a ser instado a fazê-lo pontual e especificamente, em momento e a modo adequado, em especial como decorrência da novel posição adotada no que tange ao afastamento das circunstâncias subjetivas do delito na aplicação do princípio -, ao caso, abstraída consideração sobre ele, deve prevalecer a destipificante da insignificância, nela não interferindo o fato de o réu registrar antecedentes. Essa é a iterativa orientação das colendas Cortes Superiores, bastante exemplificativa, ao que interessa, a ementa: “Descaminho considerado como 'crime de bagatela': aplicação do princípio da insignificância“. Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Mello, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2º T., Marco Aurélio, RTJ 178/310). 4. Concessão de habeas corpus de ofício, para cassar a condenação imposta à recorrente, por falta de justa causa“ (STF, RE QO 514530/RS, 1ª Turma, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU-I de 02/03/07, p. 039). Ante o exposto, manifestando-me ao desempate, divirjo do eminente Relator, data venia. Dou provimento aos embargos infringentes. “Diante desse quadro, inobstante seja diverso nosso ponto de vista quanto ao valor hoje utilizado ao aferimento da insignificância, tendo em conta a posição da maioria que compõe a Oitava Turma, e considerando que os aspectos subjetivos não mais interferem na tipicidade da conduta, mostra-se possível, in casu, a aplicação do denominado delito de bagatela, em face do valor dos tributos sonegados (R$ 2.492,11). Ante o exposto, presentes os requisitos legais (fumus boni iuris e periculim in mora) defiro a liminar para suspender a ação penal número 2004.72.00.016962-6/SC até o julgamento do presente mandamus pelo Colegiado. Dispensadas as informações, porquanto os elementos constantes dos autos são suficientes para o exame da quaestio. Abra-se vista à douta Procuradoria Regional da República. Intimem-se. Publique-se. Comunique-se, com urgência, à Vara de origem. Porto Alegre, 02 de maio de 2007.
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