Prisão preventiva. Tráfico. Liberdade provisória. Inadmissibilidade em crimes hediondos e equiparados. Inconstitucionalidade. Obrigatoriedade de fundamentação. Motivos concretos. Imprescindibilidade. Constrangimento ilegal configurado. Ordem concedida.
Rel. Min. Paulo Medina
RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator): Sinomar Garcia de Castro impetra habeas corpus substitutivo de recurso ordinário com pedido liminar, contra a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em razão de aresto prolatado no HC nº 26768-6/217 (200601677360), assim ementado (fl. 89): “HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME HEDIONDO. PRISÃO PREVENTIVA. ILEGALIDADE NÃO CONFIGURADA. I - Tratando-se de crime hediondo, não há que se falar em ilegalidade do decreto preventivo por força do art. 2º, inciso II, da Lei 8.072/90; sendo que os atributos pessoais do paciente não constituem óbice à decretação da custódia. ORDEM DENEGADA.“ O paciente foi preso por força de decreto de prisão preventiva expedido em 2 de setembro de 2002 e argumenta ilegal o constrangimento, porque embasado apenas na hediondez da conduta (tráfico de entorpecentes), nos termos da Lei 8.072/90. Afirma ser primário, sem antecedentes criminais, com profissão definida e residência no foro do delito e infere inexistir motivo idôneo para autorizar a custódia cautelar. Requer, liminarmente, a concessão da ordem, para revogar o decreto de prisão preventiva. Indeferi a liminar (fls. 101/102). O Ministério Público Federal opinou pela CONCESSÃO da ordem, em parecer assim fundamentado (fl. 105): “HABEAS CORPUS. PENAL. ACUSAÇÃO DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. NEGATIVA. FUNDAMENTAÇÃO. CRIME HEDIONDO. INSUFICIÊNCIA. DESRESPEITO AOS PRESSUPOSTOS DO ART. 312 DO CPP. CONCESSÃO DA ORDEM. - Insuficiente e desajustada com o que determina a lei processual penal (art. 312) a decisão judicial que indefere pedido de liberdade provisória valendo-se do argumento único de se tratar de crime hediondo, - Com essas considerações, opino para que seja concedida ao paciente a liberdade provisória.“ É o relatório. Decido.
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator): Cinge-se a impetração na deficiência dos fundamentos da decisão que indeferiu pedido de liberdade provisória, e do acórdão, que a confirmou. O juízo primevo indeferiu o pedido do paciente para responder ao processo em liberdade conforme excerto de fls. 57/58-STJ: “Examinando os autos, constato que, por representação da autoridade policial, foi por este juízo concedida a ordem de busca e apreensão domiciliar na casa do acusado, oportunidade em que os agentes policiais conseguiram a apreensão de considerável quantidade de substâncias entorpecentes que determinam a dependência física e psíquicas; observo, ainda, como frisou o representante ministerial, que permanecendo solto o denunciado poderá comprometer a ordem pública, além de continuar a comercializar drogas por esta cidade, como se comenta que assim vem agindo de há muito. A lei processual dispõe que, havendo prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, poderá ser decretada a prisão preventiva como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal (art. 312 do CPP). No caso em apreciação, verifico que a materialidade do delito está comprovada pelo auto de busca e apreensão e pelo laudo de exame de constatação, e que a autoria satisfaz as exigências legais, porquanto, para tal, bastam indícios suficientes, e no presente caso vejo-os demonstrados pelo trabalho investigativo da polícia e as declarações colhidas nos autos. Ante o exposto, e visando assegurar o bom fluxo do processo, manter a ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal, com amparo no art. 312 do CPP, decreto a prisão preventiva do denunciado Sinomar Garcia de Castro. Expeça-se o mandado de prisão e encaminhe-se à autoridade policial para cumprimento.“ Destarte, o Magistrado considerou suficiente para decretar a custódia preventiva invocar a letra do art. 312 do CPP sem, no entanto, apontar as razões concretas para a cautela excepcional. A Primeira Câmara Criminal do TJGO, por sua vez, denegou a ordem lá impetrada utilizando-se do mesmo fundamento invocado pela decisão de primeiro grau (fls. 86/88): “Argumentou o paciente, via de seus patronos, não haver motivos relevantes a ensejar a sua prisão preventiva, por tratar o mesmo de réu primário, sem antecedentes criminais, com profissão definida e residência fixa no foro do delito; estando, portanto, desmotivada a referida decisão cautelar. Pois bem. Verifica-se que o paciente é acusado de suposta prática do delito tipificado no art. 12 da Lei 6.368/76, considerado crime hediondo, insuscetível de liberdade provisória, com espeque no art. 2º, inciso II, da Lei 8.072/90; sendo que, em casos tais, os atributos de primariedade, bons antecedentes, residência fixa e emprego certo, por si sós não autorizam que o réu responda ao processo em liberdade. (...) Assim, entendo correta a decisão que decretou a prisão preventiva do paciente, por não vislumbrar qualquer ilegalidade.“ Tenho manifestado perante essa Sexta Turma a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que veda a concessão de liberdade provisória, tendo em vista o disposto no art. 5 º, LVII e LXI, da Carta Política. A Constituição Federal remeteu à lei ordinária a regulação das suas prescrições, vale dizer, caberia ao legislador a tarefa de elencar os delitos hediondos e seu tratamento jurídico, conforme determinado pelo texto do dispositivo em comento. As regulações ordinárias das restrições à liberdade, como direito fundamental que é - fazendo-se a conjugação do caput e incisos XLIII e LXI, art. 5º, CR -, devem encontrar permissivo no próprio dispositivo que o menciona, ou seja, os limites ao direito de liberdade devem vir determinados no próprio artigo 5º da Lei Maior e a sua regulação, na infraconstitucionalidade, deve obedecer as suas prescrições. Assim, as exceções ao direito de liberdade resumem-se aos casos dos mencionados incisos, que, de forma obrigatória, devem ser fundamentadas pelo juiz e, em relação aos crimes hediondos, só não seriam suscetíveis de fiança, graça ou anistia, não estabelecendo a CR a prisão cautelar obrigatória quando a alguém for imputado um daqueles delitos. A Doutrina Processual Penal posicionou-se no sentido de que o texto da referida lei fere “A Constituição Federal com a total vedação de liberdade provisória com ou sem fiança. Argumentou-se, em síntese, que o art. 5º, inc. XLIII, só afirmou a inafiançabilidade dos crimes hediondos, não possibilitando ao legislador ordinário que impedisse, de maneira integral, a liberação provisória da pessoa presa em flagrante, como sucedeu com o art. 2º da Lei 8.072/90“. (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 319). A Lei 8.072/90 foi além e determinou a impossibilidade de conceder a liberdade provisória, indo de encontro aos princípios fundamentais da Liberdade (art. 5º, caput e inc. LXI, CR), do Estado de Inocência (art. 5º, LVII, CR) e da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judicias (art. 5º, LXI e 93, IX, CR), reduzindo o juiz a um mero proclamador e aplicador da vontade do legislador ordinário, que atuou de forma ilegítima e inconstitucional. A lei infraconstitucional só vigora quando em perfeita consonância com o conjunto principiológico da Lei Maior, caso contrário, resta revogada ou é inconstitucional, classificação que se dá dependendo da data da entrada em vigor da lei. A Lei dos Crimes Hediondos, pelo exposto, é em vários aspectos, manifestamente inconstitucional, não obstante reiteradas decisões do STF em sentido contrário. Ora, não se pode prescindir da contemplação da lei à luz dos ditames constitucionais, fugindo ao mister precípuo do julgador de hermeneuta e aplicador do ordenamento jurídico. Diante disso, tendo em vista os argumentos esposados e o disposto no art. 5 º, LVII e LXI, CR, entendo inconstitucional o art. 2º, II, da Lei 8.072/90. Por outro lado, a existência da cautelaridade se faz absolutamente necessária. A liberdade provisória deve ser concedida sempre que inexistentes os fundamentos da prisão preventiva, ainda que se trate de crimes hediondos e assemelhados, como vem se assentando na jurisprudência desta Corte: “PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 12 DA LEI N.º 6.368/76. INDEFERIMENTO DE EXAME TOXICOLÓGICO. LIBERDADE PROVISÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO. I - Não tendo as teses de nulidade do feito em razão do indeferimento do pedido de exame toxicológico e de desclassificação do delito constante do art. 12 para o do art. 16 da Lei n.º 6368/76, sido enfrentadas pelo v. acórdão reprochado, fica esta Corte impedida de analisá-las, sob pena de supressão de instância. (Precedentes.) II - O indeferimento do pedido de liberdade feito regra, concretamente fundamentado. A qualificação do crime como hediondo não dispensa a exigência de fundamentação concreta para a denegação da liberdade provisória. (Precedentes.) III - Nos chamados crimes hediondos, a decisão que nega ao réu benefício de apelar em liberdade deve ser concretamente fundamentada. (Precedentes.) Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (RHC 15350/SP;2003/0211763-6. Fonte DJ DATA:29/03/2004 PG:00255. Relator Min. FELIX FISCHER) Portanto, estou a concluir que, embora o delito apurado no processo-crime seja catalogado como equiparado a hediondo, o magistrado não invocou razões de fato que levaram a denegar a liberdade provisória a partir dos motivos autorizadores da prisão preventiva, dada a natureza cautelar da prisão em flagrante. Posto isso, CONCEDO A ORDEM para que o paciente responda ao processo em liberdade.
EMENTA - HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. TRÁFICO. LIBERDADE PROVISÓRIA. INADMISSIBILIDADE EM CRIMES HEDIONDOS E EQUIPARADOS. INCONSTITUCIONALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. MOTIVOS CONCRETOS. IMPRESCINDIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. - A manutenção da prisão cautelar - decorrente de indeferimento de liberdade provisória - deve, necessariamente, ser calcada em um dos motivos constantes do art. 312 do Código de Processo Penal e, por força do art. 5º, XLI e 93, IX, da Constituição da República, o magistrado deve apontar os elementos concretos, mostrando-se ilegítimo fundamentar a medida extrema tão-só com base em imperativo legal. - Não foi dado ao legislador ordinário legitimidade constitucional para vedar, de forma absoluta, a liberdade provisória quando em apuração crime hediondo e assemelhado. Inconstitucionalidade do art. 2°, II, da Lei 8.072/90. - Ainda que o delito apurado em processo criminal seja catalogado como hediondo ou equiparado, o magistrado está obrigado a fundamentar a decisão que denega a liberdade provisória a partir dos motivos que autorizam a prisão preventiva, dada a natureza cautelar da prisão em flagrante. - Ordem CONCEDIDA para que o paciente responda ao processo em liberdade.
ACORDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Thereza de Assis Moura, Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Medina. Brasília (DF), 21 de setembro de 2006 (Data do Julgamento).
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