Conflito De Competência Nº 37.187/rs

Conflito negativo de competência. Fraude para obtenção de empréstimo bancário. Art. 19 da Lei 7492/86. Inaplicabilidade. Competência da Justiça Estadual.

Rel. Min. Paulo Medina


RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator):
Trata-se de conflito negativo de competência suscitado pelo Juízo de Direito da 2ª Vara de Cachoeirinha - RS, em face do Juízo Federal da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul. Consta dos autos que foi instaurado pela Polícia Federal inquérito policial para apurar suposto crime de obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira, previsto no artigo 19 da Lei 7.492/86, a Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, com autoria de ADEMAR SCHLICHTING. Oferecida denúncia pelo Ministério Público Federal, o Juízo Federal declinou de sua competência, alegando que não trata a hipótese de obtenção de financiamento, conduta prevista no delito em que foi enquadrado o autor e que exige uma finalidade específica para a aplicação dos recursos obtidos, mas sim que os fatos narrados enquadram-se como a obtenção de empréstimo, tipo de mútuo para o qual não é exigida finalidade específica. Sustentou, ainda, que a vítima é Sociedade de Economia Mista, tipo de entidade que não atrai o interesse da Justiça Federal. Transcrevo abaixo parte da decisão onde o Juízo Federal declinou de sua competência: “A denúncia descreve e qualifica os fatos praticados pelo indiciado como Crime contra o Sistema Financeiro Nacional, enquadrando-os no artigo 19, da Lei n° 7.492/86. Entretanto, é outra a classificação a ser dada aos fatos narrados, sendo relevante neste momento considerá-la tão-somente porque diz com a própria competência para processo e julgamento do feito, pois, de outra forma, aplicar-se-ia tranqüilamente a disciplina do artigo 383, do Código de Processo Penal. Com efeito, o tipo descrito no artigo 19, da Lei n° 7.492/86, consubstancia-se em “obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira“. Na inicial, o Ministério Público Federal indica que “visando a beneficiar-se de financiamento sem por ele restar responsabilizado, o denunciado procedeu à abertura da conta-corrente n° 12.401-X, nela implantando um limite de crédito (cheque especial - cheque-ouro) no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), sob a titularidade de Adélio Jacinto, que é pessoa inexistente. Desta forma, criou a oportunidade de, através da transferência de numerário correspondente ao crédito desde a conta fantasma até a sua própria conta, gozar de recursos (financiamento – crédito rotativo) que não lhe haviam sido conferidos“. Embora haja entendimento de que o crédito rotativo ou abertura de crédito subjacente ao cheque especial equivale à figura do financiamento, esta não parece ser a melhor exegese. Se, por um lado, há posições como a do eminente Procurador da República Rodolfo Tigre Maia (Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional . Malheiros, 1996, p. 124), a considerar que “cuida-se da percepção de numerário, eis que financiamento nada mais é do que contrato de mútuo, oneroso ou gratuito , em que o mutuante é induzido em erro através da conduta fraudulenta do mutuário“ (sem grifo no original), há doutrinadores, como Orlando Gomes e Maria Helena Diniz, que distinguem as figuras do empréstimo e do financiamento. Para o primeiro, financiamento é o tipo de contrato em que “adianta o banco ao cliente recurso necessário a certo empreendimento “, enquanto o empréstimo obtido mediante abertura de crédito em conta-corrente “é o contrato por via do qual se obriga um banco a colocar à disposição do cliente determinada soma para ser utilizada, mediante saque único ou repetido“ e o mútuo “é contrato pelo qual uma das partes empresta a outra coisa fungível, tendo a outra a obrigação de restituir igual quantidade de bens do mesmo gênero e quantidade“ (Contratos . Forense, 1996, pp. 327/328 e 334, sem grifos no original). Não havendo definições legais das espécies de que se trata, a integração da norma dá-se com as noções trazidas pelos civilistas, as quais são também as adotadas pelos comercialistas. Esclarecedora é a orientação adotada pelo Banco Central do Brasil, que distingue os empréstimos - enquanto “operações realizadas SEM destinação específica de recursos e não sujeitas à comprovação das aplicações“, entre as quais coloca os empréstimos em conta-corrente e os contratos de mútuo - dos financiamentos - enquanto “operações realizadas COM destinação específica de recursos e sujeitas à comprovação da aplicação, geralmente relacionadas com investimentos em capital fixo e suprimento de capital de movimento“, de que são exemplos “os financiamentos para aquisição de máquinas e equipamentos, edificações e bens de consumo duráveis“. Embora as operações de crédito tenham-se tornado complexas, de forma que as noções tradicionais trazidas pelos contratos típicos não têm dado conta de todas elas, ainda assim se mantêm preservadas as distinções que se podem fazer entre os empréstimos genericamente considerados e os financiamentos, figuras que não se confundem e cujas peculiaridades resumem-se, na prática, àquelas apontadas pelo setor técnico do BACEN. (omissis) Neste ponto, interessa observar-se que, a fim de que subsista a competência da Justiça Federal para julgamento do estelionato, é mister que a instituição em detrimento da qual foi praticado o crime seja um dos entes arrolados no inciso IV, do artigo 109, da Constituição Federal. Ora, se a instituição financeira lesada foi o Banco do Brasil S/A, sociedade de economia mista que não se encontra ali arrolada, não há razões para manter-se o feito nesta Justiça Federal.“ (fls. 71/76) O Ministério Público Federal recorreu de tal decisão, por meio de Recurso em Sentido Estrito para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O recurso foi provido, e a competência da Justiça Federal estabelecida, por meio de acórdão assim ementado: “CRIME - FRAUDE CONTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA - FINANCIAMENTO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. Pratica fraude quem, induzindo instituição financeira em erro, consegue abrir uma conta especial em nome de pessoa fictícia para dali extrair valores em benefício próprio, incorrendo, assim, nas sanções do art. 19 da Lei nº 7492/86 competência da Justiça Federal (art. 109, VI, CF e art. 26, Lei nº 7492/86). Já é tempo de acabar com o vezo de sempre procurar interpretações que limitam e, na prática, afastam a competência da Justiça Federal, que é constitucional.“ (fl. 106) Após o julgamento supra, recebeu o Juízo Federal a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, com regular processamento e julgamento da espécie. Oferecidas alegações finais pelo Ministério Público Federal, este suscitou preliminarmente a competência da Justiça Estadual para julgar e processar a ação, ou pela improcedência da denúncia, e conseqüente absolvição do réu. Vejo como oportuno transcrever o seguinte trecho das alegações finais: “Contrariamente à tese expendida pela Procuradoria Regional da República da 4.ª Região, em parecer favorável ao provimento do recurso interposto pelo Ministério Público Federal, na sentença atacada não se deu, como agora não se está a dar, prevalência ao sentido literal da expressão em detrimento de seu sentido teleológico. Tanto que basta concatenar a norma insculpida no art. 19 da Lei n.º 7492/86 com aquela que emana do art. 20 do mesmo diploma legal para que mais se sedimente a convicção de que os financiamentos obtidos junto a instituições financeiras, ao revés do que ocorre com os contratos de empréstimos bancário, são objeto de tutela jurídica própria. Como bem advertiu a juíza que proferiu juízo de admissibilidade negativo acerca da acusação formulada em face do réu, aos financiamentos o Sistema Financeiro Nacional destina verbas que têm em si uma dificuldade maior de captação e que, pela sua escassez, costumam ser prioritariamente aplicadas em programas governamentais dirigidos com vistas a fomentar o desenvolvimento de determinada atividade econômica produtiva ou a equacionar a questão habitacional. De ambas as normas, dessume-se o escopo de proteger o interesse público prevalente na destinação de recursos financeiros originários do erário governamental para a implantação da política econômica pública. Dessa sorte, não se tratando o fato descrito na exordial acusatória de operação bancária da espécie financiamento, verifica-se ausente a circunstância elementar do tipo sem a qual não se pode cogitar de crime contra o sistema financeiro. Insta observar que, nada obstante a conduta imputada ao réu não haja se subsumido à moldura jurídica do tipo penal até então aventado, nem de longe se pode afirmar que o réu tenha se comportado em conformidade com o que prescreve o ordenamento jurídico em vigor, vez que remanescem, in casu, elementos suficientes a caracterizar a figura do estelionato, crime de natureza residual no qual a conduta humana delituosa deve ser enquadrada quando expungida a incidência normativa da disciplina especial. Como a vítima da ação criminosa é entidade que não se encontra entre aquelas arroladas no art. 109, Inciso IV, da Constituição Federal Brasileira, verifica-se, à evidência, não ser competente a Justiça Federal para processar e julgar o fato - e não sua qualificação jurídica - narrado na denúncia (obtenção de vantagem indevida resultante da abertura e movimentação de “conta-fantasma“, contemplada com crédito rotativo), razão por que o Ministério Público Federal pugna pela remessa dos autos ao Juízo Estadual de Cachoeirinha/RS, em cujos limites jurisdicionais consumou-se a infração penal de que se está a tratar. Em prevalecendo entendimento diverso, o Ministério Público Federal se vê compelido a propugnar pela absolvição do acusado, isso porque a relação jurídica de direito material, tal como descrita na denúncia, não se verificou. Deveras, não há dizer tenha o réu, com a sua ação, praticado infração penal em detrimento do sistema financeiro nacional.“ (fls. 226/227) Acatando as razões do Ministério Público Federal, o Juízo proferiu nova decisão em que declinou a competência para o julgamento da ação para a Justiça Estadual (fls. 231/236), reiterando os termos da prévia decisão de incompetência de fls. 71/76. Enviados os autos ao Juízo Estadual, este declinou de sua competência, e suscitou o presente conflito, acatando as razões proferidas pelo Ministério Público Estadual, de que já existe coisa julgada relativa à competência da Justiça Federal, em razão do julgamento proferido pelo TRF da 4ª Região de fls. 102/104. O Ministério Público Federal, em seu parecer de fls. 263/268, opina pelo conhecimento do conflito para que seja declarada a competência do Juízo Estadual, em razão do réu não ter praticado a conduta tipificada no artigo 19 da Lei 7.492/86 e nem qualquer outro crime em detrimento de bens, serviços ou interesses da União Federal ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. É o relatório.

 
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA (Relator):
Compulsando os autos verifico que os fatos descritos na denúncia não encontram correspondência na moldura legal do artigo 19 da Lei 7.492/86, que transcrevo abaixo: “Art. 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento.“ Não encaixa-se como “financiamento “ o uso do valor concedido a título de crédito rotativo de conta corrente criada mediante fraude. Em nenhum momento existiu a concessão de numerário com finalidade definida, como exige a definição de financiamento do Banco Central do Brasil. A circunstância da ocorrência de fraude na abertura de conta corrente não tem o condão de transformar a natureza da transação realizada, convertendo-a em legítimo “financiamento“, como se disso se tratasse desde o início. Pode-se dizer que os valores obtidos mediante fraude representam vantagem financeira, mas não financiamento. Mesmo que não exista dúvida de que foi obtida vantagem ilícita, a conduta descrita na denúncia não se enquadra no tipo do art. 19 da Lei 7.492/86, ainda mais quando leva-se em consideração o disposto no art. 20 da mesma lei, que ora colaciono: “Art. 20. Aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por instituição credenciada para repassá-lo: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.“ Uma coisa é admitir, porque inegável, a natureza financeira da operação de abertura de conta corrente. Outra coisa é afirmar que a mesma consiste em financiamento, para os efeitos do que dispõe a norma penal. Logo, se fraude ocorreu foi para viabilizar a obtenção de vantagem a outro título que não o de “financiamento“. Apresenta-se equivocado também o entendimento contido no acórdão proferido pelo Tribunal Federal da 4ª Região, segundo o qual “Se assim é, então não vejo como deixar de reconhecer que a instituição financeira que libera créditos em favor de conta especial até determinado limite a descoberto está, na verdade e para todos os efeitos, concedendo “financiamento“ ao tomador. Pouco importa qual seja o nome técnico ou burocrático da operação no meio financeiro (mútuo, empréstimo, abertura de crédito, cheque especial, financiamento), a destinação do numerário (crédito pessoal, capitalização da empresa, suprimento de capital) ou as condições do negócio (saque total, saques parcelados, saques variados), pois, insisto, conceder financiamento nada mais é do que dar dinheiro a crédito.“ (fl. 103) Pelo exposto, não há que se falar em crime contra o Sistema Financeiro Nacional ou em delito praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União Federal ou de suas autarquias ou empresas públicas, que atrairiam a competência federal. Confira-se: “PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. INOCORRÊNCIA. - A competência da Justiça Federal para o processo e julgamento dos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira circunscreve-se aos casos previstos na Lei nº 7492/86, não podendo ser ampliada para abranger crimes que, embora afetem a economia ou o sistema financeiro, não estão nela previstos. - Conflito Conhecido. Competência da Justiça Estadual.“ (CC 36.200/PR, Rel. Min. VICENTE LEAL, TERCEIRA SEÇÃO, DJ de 28.10.2002) “PROCESSUAL PENAL. COMPETENCIA. CRIME CONTRA A ORDEM ECONOMICA E O SISTEMA FINANCEIRO (ART. 109, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). A COMPETENCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, PREVISTA NO ART. 109, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PRESSUPÕE EXPRESSA DETERMINAÇÃO LEGAL (“NOS CASOS DETERMINADOS EM LEI“). E A LEI 7.492/86, ART. 26, RESTRINGE ESTA COMPETENCIA AOS CRIMES NELA PREVISTOS (“NOS CRIMES PREVISTOS NESTA LEI“). HIPOTESE EM QUE, REJEITADA A DENUNCIA PELO JUIZ FEDERAL EM RELAÇÃO AO CRIME DO ART. 19 DA LEI 7.492/86, COMPETE AO JUIZ ESTADUAL PROSSEGUIR NO PROCESSO EM RELAÇÃO A EVENTUAIS CRIMES DE SUA COMPETENCIA. CONFLITO DE COMPETENCIA CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE A JUSTIÇA ESTADUAL.“ (CC 7.154/SP, Rel. Min. ASSIS TOLEDO, TERCEIRA SEÇÃO, DJ DE 09.10.1995) Portanto, compete à Justiça Estadual processar e julgar a ação penal, em razão da conduta descrita na denúncia não atrair a competência da Justiça Federal, seja em razão do ato realizado ou de sua vítima. Posto isso, CONHEÇO do conflito e DECLARO COMPETENTE o Juízo de Direito da 2ª Vara de Cachoeirinha - RS. É como voto.

 
EMENTA -
PENAL E PROCESSO PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. FRAUDE PARA A OBTENÇÃO DE EMPRÉSTIMO BANCÁRIO. ART. 19, LEI 7.492/86. INAPLICABILIDADE. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL. A obtenção de empréstimo, mediante abertura fraudulenta de conta corrente, não é o mesmo que “obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira“ (art. 19, Lei 7.492/86). Não há que se admitir que a obtenção de empréstimo, operação financeira que não exige destinação específica, seja tida como equivalente a operação de financiamento, para a qual se exige fim certo, para os efeitos do que dispõe a norma penal. Se os fatos não encontram previsão na Lei 7.492/86, não há que se falar em crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Afastada a competência da Justiça Federal se não versa a hipótese sobre interesse federal ratione materiae , ou se não há delito praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União Federal ou de suas autarquias ou empresas públicas. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara de Cachoeirinha - RS.
 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do conflito e declarar competente o Suscitante, Juízo de Direito da 2ª Vara de Cachoeirinha - RS, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Nilson Naves, Felix Fischer, Paulo Gallotti e Laurita Vaz. Ausente, ocasionalmente, o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília (DF), 08 de novembro de 2006 (Data do Julgamento).

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