Prerrogativas profissionais dos advogados. Calúnia e difamação. Vítimas funcionários públicos. Trancamento da ação penal. Apuração de plano. Inocorrência. Imunidade relativa. Incompetência. Matéria de fato. Limites da via eleita.
Rel. Min. Ricardo Lewandowski
RELATÓRIO - O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI: Trata-se de habeas corpus impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil ?Secção de Pernambuco, representada por Julio Alcino de Oliveira Neto e Ademar Rigueira Neto, em favor de GILBERTO FLÁVIO DE AZEVEDO LIMA, contra acórdão proferido no HC 38.707/PE, da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que denegou o trancamento da ação penal movida contra o paciente. Eis a ementa do acórdão atacado: “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. CRIME DE CALÚNIA. IMUNIDADE RELATIVA DO ADVOGADO. IMPROPRIEDADE DO WRIT PARA AFERIR O DOLO NA CONDUTA. INEXISTÊNCIA DE CONEXÃO. INCOMPETÊNCIA RELATIVA DO JUÍZO SUJEITA À PRECLUSÃO CASO NÃO ARGÜIDA EM MOMENTO PRÓPRIO POR MEIO DE EXCEÇÃO. ARGÜIÇÃO DE SUSPEIÇÃO DE MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU. DECISÃO IRRECORRÍVEL. ORDEM DENEGADA. 1. A alegada atipicidade da conduta, fundada na imunidade profissional concedida aos advogados quando no exercício da atividade, não tem como prosperar, por se tratar de imunidade relativa que não alcança a ofensa caracterizada como calúnia, mas apenas aquela referente à injúria ou difamação (Lei nº 8.906/94, art. 7º, § 2º, c/c CP, art. 142, I), conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 81.517/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ 14/6/2002, p.158) e do Superior Tribunal de Justiça (HC 25.705/SP, Rel Min. GILSON DIPP, DJ 2/8/2004, p. 438). 2. Por outro lado, eventual ausência de dolo na conduta do paciente não pode ser aferida em sede de habeas corpus, por força da flagrante impropriedade da via eleita para a análise de questão que não prescinde de dilação probatória. 3. No que tange à aventada incompetência do Juízo que recebeu a peça acusatória, por inexistência de conexão com outra ação penal, melhor sorte não socorre o paciente, tendo em vista que seria ela relativa, sujeita à preclusão caso não argüida em momento próprio por meio de exceção de incompetência. 4. Por fim, a argüição de suspeição de membro do Ministério Público é questão que fica restrita à análise pelo Juízo de origem, não cabendo recurso contra a decisão exarada, conforme disposto no art. 104 do Código de Processo Penal. 5. Ordem denegada.“ (fl. 33). Conforme a peça inicial, o paciente foi denunciado pela suposta prática do delito previsto nos arts. 138 (calúnia) e 139 (difamação), combinado com os arts. 141, II (contra funcionário público, em razão de suas funções), 69 e 71, todos do Código Penal. Consta dos autos, ainda, que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região trancou a ação penal quanto a outros crimes a ele imputados, remanescendo, todavia, a ação penal referente ao delito de calúnia. Sustenta a impetrante, em síntese, a ausência de justa causa para a ação penal, ao argumento da atipicidade da conduta, uma vez que o fato imputado ocorreu no exercício profissional da advocacia. Aduz, também, que, no exercício do seu “munus publico“, o advogado é, conforme disposição do art. 133 da Constituição Federal, inviolável por seus atos e manifestações. Assevera, ademais, que as afirmações feitas pelo paciente estariam compreendidas no “’animus defendendi’, típico da imunidade judiciária prevista no art. 142, I, da Lei Penal, c/c o art. 7º, §2º, da Lei nº 8.906/94.“ (fl. 20). Alega, ainda, a incompetência do juízo da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária de Pernambuco, por inexistência de conexão probatória ou instrumental (art. 76, III, do Código de Processo Penal) com a Ação Penal 2002.83.00.006661-5. Postula, finalmente, o trancamento da ação penal a que responde o paciente ou, caso assim não se entenda, a declaração de nulidade da decisão proferida pela 4ª Vara Federal da Seção Judiciária de Pernambuco, que declinou da competência. Informações às fls. 32-55. O Ministério Público Federal, após o apensamento dos autos da ação penal originária ao presente habeas corpus (apensos 04-06), opinou pelo indeferimento da ordem (fls. 75-77). É o relatório.
VOTO - O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR): O presente habeas corpus envolve, em última análise, a questão da amplitude da inviolabilidade do advogado no exercício da profissão. Em que pesem os respeitáveis argumentos expendidos pelos representantes da OAB/PE em defesa das prerrogativas dos advogados, não concedo às mesmas o elastério preconizado na peça vestibular. Com efeito, a Constituição Federal estabelece, no art. 133, que o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, no exercício da profissão, nos termos da lei, sublinhe-se. O art. 142, I, do Código Penal, por sua vez, exclui a punibilidade quando se tratar de injúria ou difamação irrogadas em juízo, pela parte ou seu procurador, e desde que vinculadas à discussão da causa. O caso aqui tratado, no entanto, refere-se ao crime de calúnia qualificada, em tese praticado pelo paciente contra agentes da fiscalização tributária federal, por escrito, ofensa essa materializada em diversas petições apresentadas em juízo. Ora, não é possível, na estreita via do remédio constitucional proposto, o trancamento da ação penal, salvo nas situações em que o constrangimento ilegal pode ser verificado de plano. Não é, no entanto, a hipótese destes autos. De igual forma, não há como examinar-se a existência ou não de dolo na conduta do paciente porquanto o habeas corpus não admite dilação probatória. Nesse sentido: RE 229.465/SP, Rel Min. Néri da Silveira; HC 84.795/GO, Rel. Min. Gilmar Mendes; HC 84.516/RS, Rel. Min. Eros Grau. Não fosse isso suficiente, a tese sustentada pela impetrante, no que respeita à imunidade profissional do advogado, diverge da jurisprudência desta Corte, que é pacífica no sentido de que essa garantia é relativa, e “que não alcança a ofensa caracterizada como calúnia, haja vista as disposições do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e do Código Penal“ (HC 81.517/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa). Em brilhante voto proferido no julgamento do HC 84.446/SP, o Ministro Sepúlveda Pertence bem esclarece a questão: “(...) O art. 133 da Constituição Federal, ao estabelecer que o advogado é “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão“, possibilitou fosse contida a eficácia desta imunidade judiciária aos “termos da lei“. Essa vinculação expressa aos “termos da lei“ faz de todo ocioso, no caso, o reconhecimento pelo acórdão impugnado de que as expressões contra terceiro sejam conexas ao tema em discussão na causa, se elas configuram, em tese, o delito de calúnia. É que o art. 142, I, do C. Penal, ao dispor que “não constituem injúria ou difamação punível (...) a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador“, criara causa de “exclusão do crime“ apenas com relação aos delitos que menciona – injúria e difamação -, mas não quanto à calúnia, que omitira. Ressalte-se que a referida imunidade não foi estendida à calúnia nem com a superveniência da L. 8.906/94, - o Estatuto da Advocacia e da OAB -, cujo art. 7º, §2º, só lhe estendeu o âmbito material – além da injúria e da difamação, nele já compreendidos conforme o C. Penal“ (...)“ Quanto ao segundo pedido, ou seja, o relativo à declaração de incompetência do juízo que recebeu a denúncia, ante a inexistência de conexão com a ação penal 2002.83.00.006661-5, melhor sorte assiste ao paciente. Conforme corretamente salientou o Ministério Público Federal, em seu parecer: “ (...) a discussão sobre a conexão, e conseqüentemente da distribuição, envolve o reexame da questão de fato, ultrapassando os limites do habeas corpus. Demais, cuidando-se de competência relativa, qualquer discordância das partes quanto à distribuição deveria, sob pena de preclusão, ter sido formulada na primeira oportunidade, o que não ocorreu: ‘a nulidade decorrente da incompetência de juízo, por conexão ou continência é relativa’ (HC 74.470/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa)“ (fl. 77). Em face do exposto, indefiro a ordem e determino a baixa dos apensos 04-07 à origem.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Senhor Presidente, acompanho o brilhante voto do Ministro Relator, apenas tendo o cuidado de dizer que, quando o art. 133 da Constituição da República, muito citado, estabelece, na parte final: “Art. 133. ... sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.“ - nem é nos termos. O que significa? Que essa inviolabilidade posta como garantia constitucional do advogado é limitada, e essa limitação é que veio, não é nem “nos termos“ porque, aí, a lei poderia inclusive alargar, por ser norma constitucional de eficácia, neste caso, contida. Mas, como ela diz “nos limites“ e eles foram fixados, conforme delineou o nobre Relator, eu o acompanho.
O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - Senhor Presidente, segundo entendi da leitura do relatório do eminente Ministro Ricardo Lewandowski, Vossa Excelência, em outro voto, no HC nº 84.446, ressaltou que o § 2º do art. 7º do Estatuto da Ordem não embute na imunidade profissional a calúnia. Não foi exatamente isso? E, no caso dos autos, a imputação é exatamente pelo crime de calúnia.
O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - É o que remanesce, porque os outros foram excluídos.
O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - Remanesceu este?
O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Sim.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - E ficou a mesma coisa, pelo voto do Ministro Sepúlveda Pertence nesse outro caso, aplicável o art. 142 do Código Penal. Não é isso? Quer dizer, não teria havido alteração nos termos, pelo menos do entendimento manifestado pelo Ministro Sepúlveda Pertence. O estatuto é muito posterior e tentava materializar.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) - Não. No que o Estatuto da Ordem, a meu ver, rompeu com o art. 142 do Código Penal e com a jurisprudência dele conseqüente, é que se excluía de modo absoluto a injúria ou a difamação dirigida à autoridade judiciária, e o Estatuto da Ordem, no meu entendimento, já não as exclui, em princípio, da imunidade do advogado.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Então o Estatuto da OAB teria vindo limitar ainda mais o art. 142.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) - No meu sentir, ampliou.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Se não prevalece contra a autoridade judiciária.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) - Isso era a jurisprudência anterior, fundada no Código Penal, porque nele se restringia em relação às partes. A extensão que o Estatuto trouxe em relação ao Código Penal foi a de apenas exigir que a ofensa injuriosa ou difamatória se desse no exercício da profissão, ou seja, tivesse conexão com o objeto do processo, mas, aí, independente de quem fosse o sujeito passivo. Quanto à exclusão da calúnia - creio - não houve alteração nem pela Constituição, que remeteu a lei à fixação dos limites da imunidade, nem pela lei conseqüente, que é o Estatuto da Advocacia.
O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO - Também entendo que o art. 133 da Constituição, ao assegurar inviolabilidade profissional aos advogados, fê-lo numa norma de eficácia contida. Se não houvesse lei, não haveria também limites, mas a verdade é que há lei, e ela trouxe limite, o qual se restringiu à injúria, difamação ou desacato, ficando de fora, como bem observado pelo Ministro Sepúlveda Pertence - e foi intencional a exclusão-, a calúnia.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) - E, quanto ao desacato, anoto que, na ADI nº 1.127, foi declarado inconstitucional.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, peço vênia aos colegas para entender que o caso revela a atuação profissional do advogado na defesa em Juízo e, também, no campo administrativo-fiscal de empresas constituintes. Depreende-se do trecho transcrito da denúncia na manifestação, por diligência, é certo, do subprocurador geral da República Dr. Haroldo, que a difamação já não está em jogo. No mais, o paciente teria afirmado que os servidores da Receita agiram de maneira criminosa na função pública e que a autoridade julgadora - creio que no processo administrativo-fiscal - do mesmo modo incidiria em tal prática se viesse a endossar o que lançado pelos servidores. A seguir, há trecho em que asseverado, também em petição - não sei se dirigida à autoridade administrativa ou judiciária -, que as ações dos servidores teriam sido clandestinas e fraudulentas, ao atribuir ilícitos às empresas constituintes. Mais adiante, apontou-se que os valores paradigmas - não sei o que quer dizer “valores paradigmas“ - usados pelo Fisco o foram de maneira clandestina e fraudulenta. Ora, nessas partes, vejo realmente uma defesa com tintas fortes, mas sem extravasar a inviolabilidade profissional versada na própria Constituição - que remete à lei, não há a menor dúvida - e também no Estatuto dos Advogados. Por isso, peço vênia ao relator para deferir a ordem e trancar a ação penal.
EMENTA - HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS DOS ADVOGADOS. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CALÚNIA E DIFAMAÇÃO. VÍTIMAS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS. ART. 133 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 138, 139 E 141, II, TODOS DO CÓDIGO PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. APURAÇÃO DE PLANO. INOCORRÊNCIA. IMUNIDADE RELATIVA. INCOMPETÊNCIA. MATÉRIA DE FATO. LIMITES DA VIA ELEITA. I - A inviolabilidade das prerrogativas dos advogados, quando no exercício da profissão, é constitucionalmente assegurada, nos termos da lei. II - O art. 142 do Código Penal exclui a punibilidade nos casos de injúria ou difamação, quando a ofensa é irrogada em juízo. III - A imunidade do advogado, no exercício do “munus publico“, é relativa. IV - A ausência de justa causa não verificável de plano impede, na estreita via do habeas corpus, o trancamento da ação penal. V - A alegação de incompetência do juízo implica a análise de provas, matéria também vedada à via eleita. VI - Habeas corpus conhecido e ordem indeferida.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria de votos, indeferir o pedido de habeas corpus; vencido o Ministro Marco Aurélio, que o deferia.
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