Provimento a recurso exclusivo do Ministério Público contra sentença absolutória. Acórdão que deixou de apreciar tese suscitada pela defesa nas contra-razões. Matéria compreendida no âmbito do efeito devolutivo. Nulidade caracterizada.
Rel. Min. Cezar Peluso
RELATÓRIO - O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR): 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de MANOEL CLAUDIANO CARVALHO PEREIRA, contra decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC nº 30.712. O paciente foi denunciado, perante a 1a Vara Federal de Uruguaiana - Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, pela prática do crime descrito no art. 171, § 2o, inc. I, do Código Penal, porque teria vendido, como se fossem seus, 25.290 quilos de arroz em casca, de propriedade da CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento, os quais estavam sob sua guarda desde junho de 1995, tendo a ausência da mercadoria sido notada pela fiscalização da empresa somente em 1997. O paciente terminou absolvido em primeira instância, mas o Ministério Público Federal recorreu, logrando a condenação do paciente. Alega o impetrante, em síntese, que a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região no julgamento da apelação é nula, porque, deixando de apreciar tese explicitamente sustentada pela defesa nas contra-razões, condenou o paciente pela prática do crime descrito no art. 171, § 2º, inc. I, e § 3º, do Código Penal, à pena de um ano e oito meses de reclusão, substituída por restritiva de direitos, e multa. Sob os mesmos argumentos, impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, mas a ordem lhe foi denegada (fls. 46-54), nos seguintes termos: “HABEAS CORPUS. NULIDADE. FALTA DE JUSTA CAUSA. MATÉRIA DEPENDENTE DA PROVA. TEMAS DA DEFESA NÃO APRECIADOS. OMISSÃO DO ACÓRDÃO INOCORRENTE. RESPOSTA COM O DEBATE MERITÓRIO. O habeas corpus não se presta a debate cuja amplitude exige o exame do material cognitivo. Não prospera a alegação de falta de discussão de tema suscitado pela defesa, quando o teor do pronunciamento meritório do Tribunal a quo já o continha de forma implícita. Ordem denegada“ (fls. 54). Concedi liminar (fls. 450-452), para suspender a execução penal. A Procuradoria-Geral da República opinou pela concessão da ordem (fls. 486-490), nos seguintes termos: “10. Com efeito, assiste razão ao impetrante. 11. O acórdão do Superior Tribunal de Justiça apenas adotou a tese de que o habeas corpus não se presta a debate cuja amplitude exige o exame do material cognitivo (fl. 54). 12. Do voto condutor (fls. 48/52), constata-se, por exemplo, que não foi mencionado o fato, constante desde a sentença de 1a Instância, da retirada do arroz, decorrente de mandado judicial, cumprido ainda em 1996, portanto, antes da fiscalização feita pela CONAB, em 1997, e que serviu de embasamento para a denúncia. Ademais, no mesmo voto consta afirmação no sentido de que: ‘Por essa razão, mesmo não tendo o Tribunal a quo se prestado ao trabalho de enfrentá-lo especificamente, fê-lo quando do julgamento do próprio mérito da acusação, cuja amplitude detinha implicitamente os argumentos defensivos’. 13. Também no acórdão do julgamento da apelação, pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região, às fls. 386/391, não fora tratada especificamente essa matéria, da retirada do produto - arroz, por ordem judicial, ainda em 1996, conforme documentos de fls. 367/369. 14. Não se trata, pois, de pretensão de análise fático-probatório no Excelso Pretório, mas de reconhecimento do direito do paciente a ter essa matéria analisada na apelação, especialmente, porque a condenação não pode subsistir diante de omissão sobre uma das teses da defesa, sob pena de violação aos princípios da inafastabilidade do Poder Judiciário e da fundamentação das decisões judiciais (artigo 5º, inciso XXXV, e art. 93, inciso IX, da Constituição Federal). 15. Ante o exposto, o Ministério Público Federal opina pela concessão da ordem, para que seja anulado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, para manter a coerência e a utilidade processual da decisão, mesmo não constando pedido expresso na inicial da impetração, opina no sentido de que também seja anulado, de ofício, o acórdão do Tribunal Regional Federal da 4a Região (fls. 386/391), determinando ao mesmo que proceda a novo julgamento da apelação criminal, incluindo, a tese defensiva omitida“ (fls. 488-490). É o relatório.
VOTO - O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR): 1. Consistente o pedido. O âmbito da devolução recursal delimitado pelo apelante - o Ministério Público - envolvia a questão da tipicidade da conduta em todos os seus aspectos. É de incontrastável doutrina: “Para que seja fixado o limite da devolução, deve o apelante, na petição ou termo, indicar a extensão de sua irresignação, sendo que, nada existindo, será considerada ampla a apelação interposta, transferindo-se ao tribunal o conhecimento de toda a matéria decidida“.1 Tocava, pois, ao Tribunal apreciar, na integralidade, a matéria devolvida, com atenção ao contraditório, considerando, pois, assim as razões do apelo, como sua resposta, as contra-razões da defesa. Mas o cotejo entre as contra-razões (fls. 351-358) e o acórdão que, reformando a sentença, condenou o paciente, deixa claro que o item IV (fls. 355-358), no qual a defesa sustentava ausência de materialidade do delito ante a alegação de que, em 12 de outubro de 1996, o estoque de arroz sob sua guarda teria sido removido dos silos, não foi apreciado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de modo que se não pode acolher o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual, “[...] mesmo não tendo o Tribunal a quo se prestado ao trabalho de enfrentá-lo especificamente, fê-lo quando do julgamento do próprio mérito da acusação, cuja amplitude detinha implicitamente os argumentos defensivos“ (fls. 50, grifei). A chamada motivação implícita, pela qual a “superação das lacunas torna-se possível em virtude da relação lógica existente entre aquilo que ficou expresso no discurso judicial e aquilo que também deveria ter sido objeto de justificação mas não foi“,2 somente pode admitir-se em casos singulares, nos quais os “motivos que justificam a solução de uma questão servem, implicitamente, para atender à mesma finalidade em relação a outro ponto em que não foram explicitadas as razões do convencimento judicial“,3 o que não ocorre aqui: “Tome-se como exemplo o acolhimento fundamentado da pretensão de uma das partes: é possível dizer que nesse caso a justificação apresentada contém, implicitamente, as razões do indeferimento de pretensão contrária formulada pela outra parte; mas isso só ocorrerá quando a decisão se limitar à escolha entre duas alternativas - uma excluindo a outra por absoluta incompatibilidade e propiciando assim o aproveitamento a contrario da mesma justificação. Em outras situações, em que existam alternativas diversas, não necessariamente contrapostas no plano lógico, esse aproveitamento será inviável, pois o silêncio sobre essas outras alternativas abrirá espaço a dúvidas e incertezas sobre os motivos do apontado indeferimento“.4 Esta Corte tem reafirmado, com insistência, a larga amplitude da garantia constitucional da motivação das decisões judiciais, especialmente daquelas que gravam o direito à liberdade individual, no âmbito de processo que, por definição constitucional, deve ser o resultado da conjunção das garantias do contraditório e da ampla defesa: “A sentença deve refletir o julgamento, observando o órgão prolator a estrutura que lhe é própria, ou seja, a composição da peça mediante relatório, fundamentação e dispositivo. A ordem jurídica não agasalha julgamentos implícitos. Daí a impossibilidade de ter-se como repelida, em face de condenação e concessão de sursis, a tese da defesa sobre a substituição da pena privativa de liberdade pela de multa, uma vez desclassificado o crime de tráfico para o de consumo de substância entorpecente“ (HC nº 78.401, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 07.05.1999). Noutra oportunidade, sintetizou: “Sentença condenatória: nulidade: ausência de consideração de provas favoráveis em tese à defesa do acusado, ainda quando para recusá-la motivadamente“ (RHC nº 82.849, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 13.06.2003). E não se cuida, como bem observou aí o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, de ponderar “o valor relativamente à prova acusatória, para o que não se prestaria o processo sumário e documental do habeas corpus. Tem, contudo, o paciente o direito a que se considerem as provas feitas em seu favor, ainda, se for o caso, para recusá-las“. 2. Concedo, pois, a ordem, para anular o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região (fls. 386-391), determinando que este proceda a novo julgamento da apelação, com apreciação da tese já referida, sobre a qual se omitiu.
EMENTA - AÇÃO PENAL. Sentença condenatória. Provimento a recurso exclusivo do Ministério Público contra sentença absolutória. Acórdão que deixou de apreciar tese suscitada pela defesa nas contra-razões. Matéria compreendida no âmbito do efeito devolutivo. Nulidade caracterizada. Não ocorrência da chamada motivação implícita. Ofensa ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, bem como ao da fundamentação necessária. Acórdão cassado. HC concedido para esse fim. Aplicação dos arts. 5º, LV, e 93, IX, da CF. É nulo o acórdão que, provendo recurso exclusivo do representante do Ministério Público, condena o réu, sem manifestar-se sobre tese suscitada pela defesa nas contra-razões.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro CELSO DE MELLO, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro EROS GRAU.