Foro por prerrogativa de função (Defensor Público do Rio de Janeiro). Ação penal (competência do Tribunal de Justiça).
Rel. Min. Nilson Naves
RELATÓRIO - O SR. MINISTRO NILSON NAVES: Deste habeas corpus, impetrado em benefício de Eduardo Gomes Moraes - Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro -, constam as seguintes informações, a mim prestadas pelo Presidente Sérgio Cavalieri (16.8.05): “Andréia Avelar Clemente, advogando em causa própria, ofereceu perante o Tribunal de Justiça deste Estado Queixa Crime em face de Eduardo Gomes de Morais, Defensor Público - Coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública, imputando-lhe os delitos dos arts. 138 (três vezes), 139 (duas vezes) e 140 (duas vezes) c/c art. 141, III, n/f art. 69, todos do Código Penal. Em resposta, o Querelado defendeu-se sustentando, em síntese, a atipicidade das condutas por ausência de dolo. Remetidos os autos à Procuradoria de Justiça, esta preliminarmente aduziu a incompetência do Tribunal de Justiça em vista da inconstitucionalidade da previsão de foro por prerrogativa de função de alguns agentes públicos relacionados na Constituição Estadual do Rio de Janeiro, dentre os quais o do Defensor Público. Em sessão do dia 28/03/2005 o Órgão Especial, por maioria, acolheu a preliminar de incompetência e determinou a remessa dos autos a uma das varas criminais da Comarca da Capital. Vale ressaltar que o Colegiado, porém, não reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo da Constituição Estadual, entendendo que a norma somente confere foro por prerrogativa de função ao Procurador Geral da Defensoria Pública. Nesse passo, os autos foram distribuídos a 39ª Vara Criminal da Capital, sendo então designada audiência de reconciliação para o dia 08/08/2005, no que ensejou a presente impetração. Contudo, atendendo pedido da Querelante, que peticionou informando encontrar-se em viagem ao exterior até final de agosto, em 20/07/2005 o Juízo remarcou a audiência para 17/10/2005. Aos 08/08/2005 juntou-se aos autos telegrama noticiando o deferimento da liminar no presente writ suspendendo o trâmite da queixa-crime até o julgamento da impetração. Com isso, em despacho do mesmo dia, o Juízo determinou que se aguardasse, retirando o feito de pauta e dando ciência às partes, tornando sem efeito o despacho anterior que designava a audiência. Passo seguinte, os autos vieram a esta Presidência para serem prestadas as informações. Por oportuno, encaminho em anexo, cópia do acórdão prolatado pelo órgão especial desta Corte, inclusive o voto vencido do Relator originário, bem como, para melhor análise, transcrevo o art. 161, IV, letra d, nº 2, da Constituição Estadual: 'Art. 161 - Compete ao Tribunal de Justiça: omissis IV - processar e julgar originariamente: omissis d) nos crimes comuns e de responsabilidade: 1 - os Secretários de Estado, ressalvado o disposto no parágrafo único do artigo 150, desta Constituição; 2 - os juízes estaduais e os membros do Ministério Público, das Procuradorias Gerais do Estado, da Assembléia Legislativa e da Defensoria Pública e os Delegados de Polícia, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; 3 - os Prefeitos, os Vice-Prefeitos e os Vereadores; omissis ' Sendo estas as informações que me cabiam prestar, aproveito o ensejo para renovar a Vossa Excelência meus protestos de elevada estima e distinta consideração.“ Foi em 4.8.05 que deferi liminar com o intuito de suspender, “até o julgamento do mérito da presente ordem, do processo em curso perante a 39ª Vara Criminal da capital“. É de ementa seguinte o acórdão estadual: “Queixa Crime intentada contra Defensor Público - Acolhimento de Preliminar, suscitada pelo Ministério Público, de incompetência do Órgão Especial, com remessa dos autos a uma das Varas Criminais - Desinfluência da discussão da possibilidade, ou não, de Constituições Estaduais ampliarem as hipóteses de Foro Especial, por prerrogativa de funções, previstas na Lei Magna, outorgando competência ao Tribunal de Justiça para processar e julgar delegados de Polícia, procuradores estaduais e defensores públicos, ante a inexistência na Carta Estadual de disposição expressa concedendo foro privilegiado a defensores públicos - Interpretação do disposto no artigo 161, IV, letra 'd', nº 2, da Constituição do Estado - Por serem equiparados a Secretários somente possuem o privilégio os Procuradores Geral do Estado, da Assembléia e o Defensor Público Geral do Estado - O artigo 3º, I, letra 'c', do Regimento Interno prevê tais hipóteses de acordo com o pacífico entendimento do Tribunal de Justiça.“ Ouvido sobre o pedido aqui formulado, o Ministério Público Federal emitiu parecer assim ementado: “Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal é inconstitucional o dispositivo da Constituição Estadual que fixa competência do Tribunal de Justiça, para julgar crimes praticados por Defensor Público. As Constituições Estaduais só poderão atribuir aos seus agentes políticos as mesmas prerrogativas que a Constituição Federal concede às autoridades que lhes sejam correspondentes na esfera federal. Parecer pela denegação da ordem.“ É o relatório.
VOTO - O SR. MINISTRO NILSON NAVES (RELATOR): Uma das alegações dos impetrantes traz a nós o seguinte: “Logo, a autoridade ora apontada como coatora excluiu da redação do dispositivo os membros da Defensoria Pública como destinatários da regra concessiva de foro especial por prerrogativa de função, remanescendo, tão-somente, na dicção do voto vencedor, o Defensor Público Geral do Estado, Chefe Institucional que, por equiparação a Secretário de Estado, goza do aludido 'privilégio'. Ora, é evidente e cristalino o erro de apreensão do art. 161, inciso IV, letra 'd', nº 02, da Constituição Estadual. Primo porque a expressão 'membros' contida no citado dispositivo constitucional, em razão de lições comezinhas de português, está conectada àquelas outras todas que a sucedem, a saber...“ De feito, razão lhes assiste no pormenor, à vista das palavras do item 2, repitamo-lo, pois: “... os juízes estaduais e os membros do Ministério Público, das Procuradorias Gerais do Estado, da Assembléia Legislativa e da Defensoria Pública e os Delegados de Polícia, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.“ A palavra “membros“ diz respeito - dúvida quanto a isso não me parece existir - aos membros do Ministério Público, ou das Procuradorias-Gerais, ou da Assembléia Legislativa, ou da Defensoria Pública. Confira-se, também, a conjunção aditiva e relacionando pensamentos similares - “... e da Defensoria Pública“. Portanto, segundo normas domésticas, compete, deveras, ao Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns e de responsabilidade, também os membros da Defensoria Pública. A questão que, a propósito, teria boa colocação é se seria lícito ao Estado dispor sobre essa competência, visto que a reza da Constituição da República é no sentido de que compete privativamente “aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral“ (art. 96, III). Repare-se que norma semelhante - “os Juízes do primeiro grau, os membros do Ministério Público, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral, e os Delegados de Polícia, os Procuradores do Estado e da Assembléia Legislativa e os Defensores Públicos, ressalvadas as competências da Justiça Eleitoral e do Tribunal do Júri“ - oriunda do Estado de Goiás foi submetida, mediante ação direta de inconstitucionalidade, à apreciação do Supremo Tribunal, e lá, por maioria de votos, considerou-se inconstitucional a regra concernente aos delegados de polícia. É certo que, lá, ressalvava-se, se e quando necessário, a competência do júri. Atente-se, portanto, para a conclusão do julgamento daquela ação: da regra goiana excluíram-se apenas os delegados de polícia. Os Estados, é verdade, organizam sua Justiça, observados, porém, os princípios estabelecidos na Constituição, entre os quais, também é verdade, a competência, expressa, segundo a qual o que compete aos Tribunais de Justiça é julgar os juízes e membros do Ministério Público, donde a pergunta que se impõe, repitamo-la: é-lhes lícito julgar, originariamente também, outras pessoas, entre as quais, e é o caso destes autos, os membros da Defensoria Pública? Entendo eu que sim, isto é, que a ampliação, por lei doméstica, da competência não desborda, em tese, do espírito constitucional republicano. Se vivemos - de fato, vivemos - num regime federativo, os Estados-Membros desfrutam, então, de autonomia (possibilidade de se autogovernarem política e administrativamente), sendo-lhes próprios os denominados poderes implícitos (podem tudo que não lhes esteja explicitamente proibido), de sorte que, é-lhes lícito, dispondo da autonomia federativa e dos poderes implícitos, ampliarem a competência de que estamos cuidando, desde que, obviamente, haja simetria funcional entre os diversos agentes políticos. É o caso destes autos. Voto pela concessão da ordem, proclamando, em conseqüência, a competência do Tribunal de Justiça para, originariamente, processar e julgar o paciente - Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro.
EMENTA - Foro por prerrogativa de função (Defensor Público do Rio de Janeiro). Ação Penal (competência do Tribunal de Justiça). 1. Compete ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns e de responsabilidade, os membros da Defensoria Pública daquele Estado (art. 161, IV, d, 2, da Constituição Estadual). 2. No regime federativo, os Estados-Membros desfrutam de autonomia política e administrativa, sendo-lhes próprios os denominados poderes implícitos (podem tudo que não lhes esteja explicitamente proibido). 3. No caso, ao proclamar a prerrogativa de foro dos membros da Defensoria Pública, o constituinte estadual assegurou a simetria funcional entre os diversos agentes políticos do Estado. 4. Habeas corpus deferido com o intuito de se preservar a competência do Tribunal de Justiça para, originariamente, processar e julgar o paciente - Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Hamilton Carvalhido e Paulo Medina. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.
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