Trancamento da ação penal. Atipicidade e ilegitimidade de parte. Medida excepcional. Inépcia da peça acusatória. Sociedade empresária. Estelionato. Concurso de pessoas. Dolo específico. Inversão do ônus da prova. Ordem concedida.
Rel. Min. Ricardo Lewandowski
RELATÓRIO -. O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: Trata-se de habeas corpus impetrado por José Augusto Branco e Hélcio Ferreira de Oliveira França, em favor de FÁBIO FIORENZANO DE ALBUQUERQUE e ORLANDO FIORENZANO DE ALBUQUERQUE, contra acórdão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que denegou a ordem no HC 45.999/PE. Essa é a ementa da decisão atacada: “HABEAS CORPUS. ARTIGOS 171, CAPUT C/C 29. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. PROFUNDO EXAME PROBATÓRIO. 1. Em sede de habeas corpus, somente se admite o trancamento da ação penal por falta de justa causa, quando desponta, induvidosamente, a inocência do indiciado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade, circunstâncias não demonstradas na hipótese em exame. 2. O habeas corpus não é via adequada para o profundo exame probatório, quando a insurgência reside no reconhecimento do paciente como autor do crime. 3. Ordem denegada.“ (fl. 52.) Os pacientes foram denunciados por suposta prática do delito previsto no art. 171, caput (estelionato), combinado com o art. 29 (concurso de pessoas), ambos do Código Penal. Transcrevo a narrativa dos fatos na denúncia: “A empresa GUINDASTES E AUTOS LTDA, de propriedade da vítima JORGE LUIZ CARVALHO DE ARAÚJO, (...), mantinha estreita relação comercial com a empresa denominada INDÚSTRIA MECÂNICA PERNAMBUCANA LTDA, na época de propriedade dos denunciados EDELSON XAVIER DE ALBUQUERQUE e MARIA TEREZA F. DE ALBUQUERQUE. (...) Ocorre que a INDÚSTRIA MECÂNICA deixou de honrar os seus compromissos, resultando a vítima em prejuízo financeiro, na medida em que os denunciados EDELSON XAVIER DE ALBUQUERQUE e MARIA TEREZA F. DE ALBUQUERQUE simplesmente cederam e transferiram a totalidade de suas ações da empresa para outras pessoas, saindo da sociedade, e juntamente com os filhos e também denunciados ORLANDO FIORENZANO DE ALBUQUERQUE e FÁBIO FIORENZANO DE ALBUQUERQUE formaram a empresa ‘SCALZER INDUSTRIAL LTDA’, transferindo todo o patrimônio da INDÚSTRIA MECÂNICA, dentre eles mobiliares, equipamentos, maquinárias pesadas e equipamentos de escritório, esvaziando totalmente a dita empresa deixando a vítima ‘a ver navios’ sem condições de receber os seus créditos. (...).“ (Fls. 13/14) Sustentam os impetrantes, em síntese, a ausência de justa causa para a ação penal ao argumento de ilegitimidade passiva e atipicidade dos fatos atribuídos aos pacientes. Aduzem, mais, que os pacientes “jamais tiveram qualquer relação com a citada empresa, supostamente devedora, Indústria Mecânica Pernambucana Ltda, (...). Sendo apenas sócios da empresa Scalzer“ (fl. 04). Postulam, ao final, o trancamento da ação penal 231.2004.003465-5, a que respondem os pacientes perante a 5ª Vara Criminal da Comarca de Recife/PE. Prestadas as informações (fls. 73-74), o Ministério Público Federal, em parecer de lavra do Subprocurador-Geral da República, Mário José Gisi, opinou pela denegação da ordem (fls. 78- 81). É o relatório.
VOTO - O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (Relator): Senhor Presidente: O trancamento da Ação Penal é medida excepcional e que somente deve ser deferida, na estreita via do habeas corpus, em regra, quando patente a falta de justa causa para a ação, quando atípica a conduta ou prescrita a pretensão punitiva ou, ainda, na hipótese de ficar demonstrada a inocência ou a desvinculação do paciente com os fatos narrados na denúncia. Pois tal é o caso. A ordem deve ser concedida. Consta dos autos que foi instaurado inquérito policial para a apuração de eventual ilícito penal de diversas pessoas físicas, dentre as quais os pacientes, por requisição da Assessoria Criminal da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Pernambuco. Esta, por sua vez, foi provocada por representação da sociedade empresária Guindautos – Guindastes e Autos Ltda, credora da empresa Indústria Mecânica Pernambucana Ltda (fls. 16-31). A denúncia formulada imputa aos pacientes e aos seus genitores o crime de estelionato, em concurso de pessoas (arts. 171 e 29, ambos do Código Penal), porque a Indústria Mecânica Pernambucana Ltda, devedora da Guindautos – Guindastes e Autos Ltda., “(...) deixou de honrar os seus compromissos, resultando a vítima em prejuízo financeiro, na medida em que os denunciados EDELSON XAVIER DE ALBUQUERQUE e MARIA TEREZA F. DE ALBUQUERQUE simplesmente cederam e transferiram a totalidade de suas ações da empresa para outras pessoas, saindo da sociedade, e juntamente com os filhos e também denunciados ORLANDO FIORENTINO DE ALBUQUERQUE e FÁBIO FIORENZANO DE ALBUQUERQUE formaram a empresa ‘SCALZER INDUSTRIAL LTDA’, transferindo todo o patrimônio da INDÚSTRIA MECÂNICA, dentre eles, mobiliares, equipamentos, maquinárias pesadas e equipamentos de escritório, esvaziando totalmente a dita empresa deixando a vítima ‘a ver navios’, sem condições de receber os seus créditos. Trata-se, portanto, de demonstração evidente de uma farsa arquitetada pelos denunciados para locupletaremse ilicitamente em detrimento do prejuízo financeiro da vítima. (...).“ (Fls. 13/14) A denúncia, como se vê, abriga mera presunção no tocante à prática de estelionato pelos pacientes. Não cabe ao Poder Judiciário, no entanto, pressupor a atuação de investigados ou acusados, dando guarida a conjecturas acusatórias desprovidas de provas cabais. No caso, o Ministério Público ofereceu a denúncia pressupondo que os pacientes agiram com dolo específico para obter vantagem ilícita, consistente no inadimplemento das duplicatas emitidas, já quando da abertura da sociedade que, depois, haveria de receber o mobiliário e equipamentos da empresa vendida pelos genitores também denunciados. Ocorre que a abertura de sociedade empresária, por si só, não configura crime, constituindo direito de todo e qualquer cidadão, desde que cumpra os requisitos exigidos pelas normas civis, comerciais e administrativas de regência. De outra parte, percebe-se, na espécie, que se inverte o ônus da prova em desfavor dos pacientes, uma vez que, nos moldes como formulada a denúncia, impõe-se aos acusados a obrigação de provar a ausência do dolo específico. Não fosse isso suficiente, não há notícia, seja na representação, seja na denúncia, de que a empresa credora tenha recorrido às vias judiciais para a cobrança de seus créditos, ainda que os sócios primitivos tenham sido substituídos por outros, visto que a responsabilidade pelas dívidas remanesce com a pessoa jurídica. E, mesmo que tal iniciativa fosse infrutífera, a credora poderia, em tese, socorrer-se do dispositivo no art. 50 do Código Civil.1 Diante disso, a rigor, não se está diante de conduta atípica dos pacientes, cuja análise não caberia nesta via estreita do habeas corpus, mas de inépcia da peça acusatória. Conheço, portanto, do habeas corpus e concedo a ordem.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, haveria a presunção do dolo, consideradas as circunstâncias de ter ocorrido a transferência da empresa a terceiros quando ela, ante relação jurídica - comercial -, era devedora da vítima. Penso que se ficou no campo civil, não adentrando o penal, presente, friso, o que narrado na denúncia. Acompanho o relator no voto prolatado, para deferir a ordem.
EMENTA - PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE E ILEGITIMIDADE DE PARTE. MEDIDA EXCEPCIONAL. INÉPCIA DA PEÇA ACUSATÓRIA. SOCIEDADE EMPRESÁRIA. ESTELIONATO. CONCURSO DE PESSOAS. DOLO ESPECÍFICO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ORDEM CONCEDIDA. I – Reputa-se inepta a denúncia quando os fatos imputados aos pacientes não configuram, prima facie, crime. II – Não cabe ao Poder Judiciário pressupor ou tecer conjecturas sobre a prática de eventual crime, mas sobre a ausência de provas cabais. III – A abertura de sociedade empresária, por si só, representa o exercício lícito de um direito, assegurado a todos os cidadãos. IV – Ordem concedida.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por decisão unânime, deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 12 de dezembro de 2006.
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