Conflito negativo de competência. Justiça Militar e Justiça Comum Estadual. Crime doloso contra a vida, supostamente praticado por militar contra civil. Parágrafo único do art. 9º do CPM. Competência da Justiça Comum Estadual. Jurisprudência consolidada.
Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura
RELATÓRIO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora): Trata-se de conflito negativo de competência suscitado pelo Juízo de Direito da Segunda Auditoria Judiciária Militar em face do Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponte Nova, ambos do Estado de Minas Gerais. Discute-se sobre a competência para processar e julgar feito destinado à apuração da ocorrência, em tese, do delito tipificado no art. 205, caput, do Código Penal Militar, correspondente ao art. 121, caput, do Código Penal. Em apertada síntese, verifica-se que a conduta investigada diz com disparos de arma de fogo efetuados por policiais militares que, em guarda de estabelecimento prisional, buscaram conter a evasão de detentos, durante uma rebelião, culminando por atingir um dos presidiários, causando-lhe a morte. Diante desse desate, e por entender incidente o parágrafo único do art. 9º do Código Penal Militar, in verbis : “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum“, o MM. Juiz-Auditor Militar, acatando parecer ministerial, declarou a incompetência da Justiça Castrense e determinou a remessa dos autos à Justiça Comum da Comarca de Ponte Nova/MG. O MM. Juiz de Direito da respectiva Vara Criminal, a seu turno, acolheu pronunciamento do Ministério Público estadual, que proclamou não ter atribuição para atuar no feito, em razão da ausência de animus necandi por parte dos investigados, e determinou a devolução dos autos à Justiça Militar. O Ministério Público Federal ofertou seu parecer às fls. 137/140, assim ementado: “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PRATICADO POR MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. - O Tribunal do Júri, em uma situação excepcional trazida pela própria Constituição, passou a julgar crimes dolosos contra a vida de civis: 'Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças ' (art. 125, § 4º, CF). - O crime de homicídio praticado por militar (federal ou estadual) não deixou de ser crime militar impróprio, que também está previsto no CP comum, mas passou por força de lei a ser julgado pela Justiça Comum. - Parecer pelo conhecimento do conflito e declarar a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponte Nova-MG“ É o relatório.
VOTO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora): Inicialmente, conheço do conflito, eis que o presente caso se amolda perfeitamente à norma do art. 105, inciso I, alínea “d“, da Constituição Federal, que atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência para dirimir conflito entre juízes vinculados a Tribunais diversos. Verifica-se, in casu, que ambos os Juízos, Comum e Militar, acatando pareceres dos correspondentes Ministérios Públicos, proclamaram-se incompetentes para o julgamento do feito, sendo suscitado o conflito negativo de competência. O ponto central da controvérsia reside na capitulação do delito. O Ministério Público Militar vislumbrou a ocorrência de crime doloso contra a vida de civil, praticado por militar, o que determina a competência da Justiça Comum, a teor do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar. Já o Ministério Público Estadual, por não divisar animus necandi na conduta dos investigados, manifestou-se pela competência da Justiça Militar para apreciar o caso. Não se trata, pois, e tão-somente, de reafirmar a jurisprudência pacífica desta Corte, que proclama competir à Justiça Comum o julgamento de militar que pratique crime doloso contra a vida de civil. Trata-se, antes, da análise da conduta investigada com vistas à preliminar capitulação do delito, se doloso ou culposo, para, desse modo, definir-se a competência para o processo e julgamento do feito. Em outras palavras, vislumbrado, prima facie, o dolo na conduta dos agentes, a competência se estabeleceria para a Justiça Comum; donde se conclui, a contrario sensu, ou seja, na ausência deste elemento, pela fixação da competência da Justiça Militar. Em apertada síntese, verifica-se que a conduta investigada diz com disparos de arma de fogo efetuados por policiais militares que, em guarda de estabelecimento prisional, buscaram conter a evasão de detentos, durante uma rebelião, culminando por atingir um dos presidiários, causando-lhe a morte. Assim, mostra-se, em tese, razoável, diante das circunstâncias, investigar acerca de possível atuação dolosa por parte dos militares, o que, nos termos do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar, fixa a competência da Justiça Comum Estadual para processar e julgar o feito em toda a sua extensão, inclusive, com relação à eventual ocorrência de eximentes, como opinou o Ministério Público Militar. Ressalte-se que a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça já pacificou entendimento no sentido de ser atribuível à Justiça Comum Estadual a competência para processar e julgar crime doloso contra a vida, quando supostamente praticado por militar contra vítima civil, nos termos do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar, introduzido pela Lei 9.299/96. Confiram-se os julgados: “PENAL. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA COMETIDO POR MILITAR CONTRA CIVIL. ART. 9º, DO CPM. LEI 9.299/96. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime doloso contra a vida, supostamente praticado por militar contra civil, a teor do que dispõe a Lei 9.299/96. Conflito conhecido para determinar a competência da Juízo de Direito da Comarca de Amambaí/MS, ora Suscitado.“ (CC 47.647/MS, Rel. Min. PAULO MEDINA, TERCEIRA SEÇÃO, DJ 17.10.2005.) “CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. LESÕES CORPORAIS E CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA COMETIDOS POR POLICIAIS MILITARES CONTRA CIVIS. CONEXÃO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. CONFLITO CONHECIDO. (...) II - Esta corte já decidiu, no julgamento do Conflito de Competência 17.665/SP, que “os crimes previstos no art. 9º, do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da justiça comum (Lei 9.299/1996). E, por força o princípio da aplicação imediata da lei processual (art. 2., do CPP), afasta-se a competência da justiça militar para processar e julgar a ação penal em curso.“ . (...) IV - Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da 4ª Vara do Júri do Foro Regional de Penha de Franca - SP.“ (CC 41.057/SP, Rel. Min. GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, DJ 24.05.2004.) “PROCESSO PENAL - CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA - JUSTIÇA MILITAR E JUSTIÇA COMUM ESTADUAL - HOMICÍDIO - CRIME COMETIDO POR PM CONTRA CIVIL - ART. 9º, DO CÓDIGO PENAL MILITAR, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 9.299/96 - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. 1 - O crime de homicídio, cometido contra civil, ainda que praticado por policial militar, não atrai a competência da Justiça Castrense, nos termos do disposto no parágrafo único, do art. 9º, do Código Penal Militar, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.299/96. 2 - Precedentes (AgRg em Ag 480.700/DF e HC 24.061/RJ). 3 - Conflito conhecido e provido para declarar competente o D. Juízo de Direito da Vara Criminal de Esmeralda/MG, ora suscitado.“ (CC 27017/MG, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, TERCEIRA SEÇÃO, DJ 01.07.2004.) “CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. LEI Nº 9.299/96. APLICABILIDADE IMEDIATA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. I. Em função da aplicabilidade imediata da Lei nº 9.299/96 às ações penais em curso, ex vi do art. 2º do CPP, afasta-se a competência da justiça militar para a apuração de crime doloso contra a vida praticado, em tese, por militar contra civil, ainda que ocorrido em data anterior à vigência da novel legislação. II. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Rebouças/PR, o Suscitante.“ (CC 29.026/PR, Rel. Min. GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, DJ 25.09.2000.) Por fim, à guisa de esclarecimento, e, para expungir quaisquer eventuais questionamentos, destaque-se, ainda, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, em decisão unânime de sua composição plenária, declarou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar, introduzido pela Lei 9.299/96, em decisão assim ementada: “Recurso extraordinário. Alegação de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar introduzido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996. Improcedência. - No artigo 9º do Código Penal Militar que define quais são os crimes que, em tempo de paz, se consideram como militares, foi inserido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, um parágrafo único que determina que “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum“. - Ora, tendo sido inserido esse parágrafo único em artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz, e sendo preceito de exegese (assim, CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito“, 9ª ed., nº 367, ps. 308/309, Forense, Rio de Janeiro, 1979, invocando o apoio de WILLOUGHBY) o de que “sempre que for possível sem fazer demasiada violência às palavras, interprete-se a linguagem da lei com reservas tais que se torne constitucional a medida que ela institui, ou disciplina“, não há demasia alguma em se interpretar, não obstante sua forma imperfeita, que ele, ao declarar, em caráter de exceção, que todos os crimes de que trata o artigo 9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida praticados contra civil, são da competência da justiça comum, os teve, implicitamente, como excluídos do rol dos crimes considerados como militares por esse dispositivo penal, compatibilizando-se assim com o disposto no “caput“ do artigo 124 da Constituição Federal. - Corrobora essa interpretação a circunstância de que, nessa mesma Lei 9.299/96, em seu artigo 2º, se modifica o “caput“ do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar e se acrescenta a ele um § 2º, excetuando-se do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes “a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum“. Não é admissível que se tenha pretendido, na mesma lei, estabelecer a mesma competência em dispositivo de um Código - o Penal Militar - que não é o próprio para isso e noutro de outro Código - o de Processo Penal Militar - que para isso é o adequado. Recurso extraordinário não conhecido.“ (RE 260.404/MG, Rel. Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, DJ 21.11.2003.) Ante o exposto, conheço do conflito e declaro competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponte Nova/MG, ora suscitado, para processar e julgar o presente feito. É como voto.
EMENTA - CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA MILITAR E JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA, SUPOSTAMENTE PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 9º DO CPM. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA. 1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que compete à Justiça Comum Estadual o processamento e julgamento de crime doloso contra a vida, supostamente praticado por militar contra civil. Precedentes. 2. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponte Nova/MG.
ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça: A Seção, por unanimidade, conheceu do conflito e declarou competente o Suscitado, Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponte Nova - MG, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Votaram com a Relatora os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1ª Região), Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), Nilson Naves, Felix Fischer, Paulo Gallotti e Arnaldo Esteves Lima. Ausente, ocasionalmente, a Sra. Ministra Laurita Vaz. Brasília, 22 de agosto de 2007 (Data do Julgamento).