Habeas Corpus Nº 65.458/rj

Fuga. Apelação. Deserção. Constrangimento. Recolhimento de ofício. Prévia ordem não conhecida. Constrangimento ilegal. Conhecimento nesta instância. Impossibilidade.

Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura


RELATÓRIO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):
Cuida-se de habeas corpus , sem pedido de liminar, impetrado em favor de HENRIQUE DA COSTA ALVIM, apontando como autoridade coatora a Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. O paciente foi condenado à pena de 9 (nove) anos de reclusão, no regime fechado, pela prática da conduta delituosa prevista no artigo 157, § 2º, incisos I, II e IV do Código Penal. Irresignado, recorreu o paciente, restando a apelação deserta, em razão de sua fuga. Impetrada prévia ordem buscando a redução da pena, sobreveio decisão do Desembargador Roberto de Souza Côrtes, nos seguintes termos: “A impetrante pretende conceder ao instituto do Habeas Corpus, via estreita e excepcionalíssima para coibir constrangimento ilegal, o caráter de Revisão Criminal, tentando rediscutir matéria e revalorar prova, razão da inadmissibilidade do WRIT. Deixo, pois, de conhecê-lo.“ Alega que a majoração da pena-base deve ser fundamentada, o que não ocorreu no caso em questão. Requer sejam cassadas as decisões proferidas em primeira e segunda instâncias, determinando-se que seja proferida nova sentença, ou que seja, de ofício, reduzida a pena, fixando-a no mínimo legal. As informações foram prestadas às fls. 97-115. O Ministério Público Federal apresentou parecer de fls. 97-121, opinando pela denegação da ordem. É o relatório.

 
VOTO - MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):
A matéria trazida a exame na impetração cinge-se exclusivamente à existência, ou não, de fundamentação na sentença condenatória proferida em desfavor do paciente. Relativamente ao pleito de diminuição da pena, esta Corte dele não pode conhecer sob pena de indevida supressão de instância, haja vista que o Sodalício fluminense sobre ele não se pronunciou. Neste diapasão, conferir o entendimento desta Corte: “(...) HABEAS CORPUS NÃO EXAMINADO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA POR SER CABÍVEL NA ESPÉCIE AGRAVO EM EXECUÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. O pedido de comutação da pena, ora deduzido, não foi apreciado pelo Tribunal a quo, que negou conhecimento à ordem originária por entender que era inviável a análise da matéria, em sede de habeas corpus, por haver previsão de recurso específico para impugnar ato do Juiz das Execuções Penais. 2. Em sendo assim, como a matéria não foi debatida na instância originária, não há como ser conhecida a impetração, diante da manifesta incompetência desta Corte Superior Tribunal de Justiça para apreciar originariamente a matéria, sob pena de supressão de instância. 3. Contudo, apesar de ser o agravo o recurso próprio cabível contra decisão que resolve incidente em execução, não há óbice ao manejo do habeas corpus quando a análise da legalidade do ato coator prescindir do exame aprofundado de provas, como no caso, uma vez que o Decreto n.º 5.620/2005 trata apenas de requisitos objetivos, não estabelecendo nenhuma exigência de cunho subjetivo para conceder os benefícios de que trata. 4. Habeas corpus não conhecido. Concedida a ordem, de ofício, para determinar que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, aprecie o mérito da impetração. Julgo, outrossim, prejudicado o pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a liminar. (HC 77.496/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28.06.2007, DJ 13.08.2007 p. 400) “HABEAS CORPUS. PENAL. (...) MATÉRIA NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ESTUPROS E ATENTADOS VIOLENTOS AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. CONCURSO MATERIAL. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESSE PONTO, DENEGADA. 1. Não tendo sido a matéria objeto da impetração apreciada pelo Tribunal a quo, fica esta Corte impedida de fazê-lo, sob pena de defesa supressão de instância. Precedentes. (...) 3. Ordem parcialmente conhecida e, nesse ponto, denegada. (HC 49.923/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 14.06.2007, DJ 06.08.2007 p. 549) Entrementes, não pode passar despercebido, apesar de não constar do inconformismo vertido nesta ordem, a inadmissão do recurso de apelação decorrente da fuga do paciente. Diferentemente do que ocorre com o pleito de redução de pena em apreço, a deserção motivada pela fuga do paciente corporifica constrangimento ilegal efusivo, e, segundo a minha ótica, deve ser enfrentada, de ofício, por esta colenda Sexta Turma. Consta de fl. 56 a decisão do Desembargador Eduardo Mayr, proferida nos seguintes termos: “O apelante HENRIQUE DA COSTA ALVIM, após recorrer da sentença que o condenou (05/03/2001), fugiu (27/03/2001). O art. 595 do CPP é cogente. Isto posto, DECLARO DESERTA a apelação interposta.“ Ora, às vésperas de completarmos vinte anos de nova ordem constitucional, não é de se admitir que a fuga implique a deserção da apelação. Um tal posicionamento fere, fundamente, a democrática cláusula do devido processo legal, nas suas vertentes da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição. Neste passo, é interessante consultar o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTONIO SCARANCE FERNANDES e ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO: (...) o recolhimento do réu à prisão, considerado pelo art. 594 do CPP como requisito de admissibilidade do recurso, não pode ser assim entendido, em face da garantia constitucional da ampla defesa, por enquadrar-se o recurso na tutela do direito de ação e de defesa e por ser a apelação recurso ordinário, que garante o duplo grau de jurisdição, inerente ao Estado de Direito. (...) Interposta a apelação, é ela processada.“ (As nulidades no processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2001, p. 240). Neste mesmo diapasão de prestígio ao arcabouço constitucional de garantias, tem se posionado esta colenda Sexta Turma: “HABEAS CORPUS . DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. INDEFERIMENTO DO APELO EM LIBERDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CARACTERIZAÇÃO. 1. A excepcionalidade da prisão cautelar, dentro do sistema de direito positivo pátrio, é necessária conseqüência da presunção de não culpabilidade, insculpida como garantia individual na Constituição da República, somente se a admitindo no caso de sua necessidade, quando certas a autoria e a existência do crime. 2. Tal necessidade, por certo, sem ofensa aos princípios regentes do Estado Democrático e Social de Direito, pode ser presumida em lei ou na própria Constituição, admitindo ou não prova em contrário, segundo se cuide de presunção relativa, como no caso da inafiançabilidade legal de certos delitos, ou absoluta, como nos casos do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.072/90 - Lei dos Crimes Hediondos. 3. De outro lado, é sabido que na letra do artigo 393, inciso I, do Código de Processo Penal, um dos efeitos da sentença penal condenatória recorrível é ser o réu preso ou conservado na prisão. 4. Essa regra, no entanto, à luz da disciplina constitucional da liberdade, vem sendo mitigada pela moderna jurisprudência pátria, que, reiteradamente, à luz, por certo, do reconhecimento implícito da presunção relativa da necessidade da constrição cautelar, tem afirmado que, se o réu respondeu solto a todo o processo da ação penal, assim deve permanecer mesmo após o édito condenatório, ressalvadas as hipóteses de presença dos pressupostos e motivos da custódia cautelar (artigo 312 do Código de Processo Penal), suficientemente demonstrados pelo magistrado sentenciante. 5. As normas processuais que estabelecem a prisão do réu como condição de admissibilidade do recurso de apelação são incompatíveis com o direito à ampla defesa, porque, às expressas, o é com todos os recursos a ela inerentes, não havendo falar, em caso tal, em prisão pena ou prisão cautelar. 6. É caso, pois, assim como o é também o da regra de deserção determinada pela fuga do réu, de conflito manifesto e intolerável entre a Lei e a Constituição, que se há de resolver pela não recepção ou inconstitucionalidade da norma legal, se anterior ou posterior à Lei Fundamental. 7. A prisão do réu, na espécie, somente poderia ter lugar, para que se pudesse afirmá-la conforme à Constituição, se fosse de natureza cautelar e, como tal, decretada fundamentadamente nos seus pressupostos e motivos legais, elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal. 8. Ordem concedida.“ (HC 38.158/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 28.03.2006, DJ 02.05.2006 p. 392) “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS . APELAÇÃO. FUGA DO RÉU. DESERÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 595 DO CPP. DESCABIMENTO. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. ART. 5º, INCISOS LV E LVII. ORDEM CONCEDIDA. A nova ordem jurídico-constitucional inaugurada com a CF/88 não recepcionou a norma esculpida no art. 595 do C.P.P. As disposições do art. 595 do CPP não podem impedir que se conheça da apelação do réu foragido, porque seria desconsiderar os princípios contidos no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Tendo como balizas os princípios da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição e o inegável anseio de status libertatis inerente a todo e qualquer ser humano, entendo que, embora havendo fuga do sentenciado ou ausência de recolhimento deste ao cárcere após a interposição de recurso, não há que se falar em deserção. Ordem CONCEDIDA para que o Tribunal a quo conheça do recurso interposto.“ (HC 35.997/SP, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 11.10.2005, DJ 21.11.2005 p. 304) O Pretório Excelso também já repudiou a providência nefasta de necessidade de encarceramento para que se processe o recurso: “RECURSO - CUSTÓDIA. A custódia do paciente, para lograr a seqüência de apelação interposta, surge como extravagante pressuposto de recorribilidade, não respaldando a imposição o clamor público provocado pelo crime (...).“ (HC 86.527/SP - Rel. Min. Marco Aurélio – DJ 17-02-2006, p. 59) Assim, pelo que ressuma dos autos, apura-se a existência de patente constrangimento ilegal, a ser reparado por esta via mandamental. Ante o exposto, não conheço do pedido deduzido, e, de ofício, concedo a ordem para anular a decisão que aplicou a disposição do art. 595 do Código de Processo Penal, a fim de que se julgue a apelação do paciente (Apelação Criminal n. 1.757/01, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro). É como voto.

 
EMENTA -
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS . (1) FUGA. APELAÇÃO. DESERÇÃO. CONSTRANGIMENTO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. (2) PRÉVIA ORDEM NÃO CONHECIDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CONHECIMENTO NESTA INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. No Estado Democrático de Direito, identificado pelo respeito ao devido processo legal, não tem lugar a aplicação a disposição do art. 595 do CPP, que obstaculiza a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição ao réu foragido. 2. Assegurado o processamento da apelação, garante-se a apreciação da matéria objeto do prévio writ. 3. Não tendo sido conhecida a prévia ordem, não é dado a este Tribunal da matéria, sob pena de indevida supressão de instância. 4. Writ não conhecido e ordem, de ofício, concedida para anular a decisão que aplicou a disposição do art. 595 do Código de Processo Penal, a fim de que se julgue a apelação do paciente (Apelação Criminal n. 1.757/01, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro).

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade, não conheceu da ordem, mas, de ofício concedeu o habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.“ Os Srs. Ministros Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1ª Região), Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves. Brasília, 04 de setembro de 2007 (Data do Julgamento)

 

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