Por Flavio Meirelles Medeiros -
É a seguinte a redação do artigo 156 do CPP:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
Normalmente, as perícias, inclusive o exame do corpo de delito, são realizadas na fase do inquérito policial. Diz o artigo 158 que, “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Havendo risco de os indícios desaparecerem pelo decorrer do tempo, necessário que se faça a perícia imediatamente. No homicídio, por exemplo, o auto de necroscopia, por razões óbvias, deve ser feito já no início do inquérito ou mesmo antes.
A produção antecipada de provas objetivando instruir investigação criminal, ao contrário da expressão do artigo 156 do CPP, não pode ser determinada por iniciativa do juiz. O sistema acusatório, instituído pelo artigo 129, inciso I, da CF, veda essa possibilidade. A função investigatória compete à autoridade policial, sendo que o Ministério Público também dispõe de tal poder, além do de acusar. A função do juiz é julgar. Caso se ponha a investigar, sua imparcialidade fica comprometida, antes mesmo de o processo iniciar.
Já no curso do processo, podem ser determinadas diligências de ofício. Mas não qualquer uma. Quem deve rastrear a verdade para apresentá-la ao juiz é o MP, e, para isso, o Estado e a lei lhe conferem amplo instrumental.
É verdadeiramente curiosa a posição do acusado na fase que antecede a propositura da ação penal. A autoridade policial possui, como sabido, os mais amplos poderes de investigação. O Estado, incoerentemente do ponto de vista de princípios administrativos, encarregou um segundo órgão com exatamente as mesmas funções investigativas, o Ministério Público. O promotor pode instaurar investigações criminais, colher depoimentos, requisitar conduções coercitivas, requisitar informações, perícias, requisitar documentos em quaisquer repartições, promover diligências investigatórias junto às autoridades e repartições, requisitar documentos perante entidades privadas, requisitar a instauração de inquérito policial, e por aí afora (Lei 8.625/93).
De um lado, estão a polícia e o Ministério Público, armados até os dentes, ambos detentores de poderes; do outro, ele, o investigado, a propósito de quem se costuma afirmar, com todas os lustres, convicção e ufania dogmática, que não é mais, como outrora, mero objeto de investigação, mas, sim, um sujeito de direitos. Pois bem, no que diz respeito ao exercício de tais direitos, veja-se os padrões de frases que comumente podem ser encontradas na doutrina e nas decisões judiciais:
“O indiciado não é parte no curso do inquérito. Não há contraditório no inquérito. Não há direito do indiciado de contraditar a prova juntada aos autos do inquérito”.
“O inquérito é procedimento administrativo de natureza inquisitiva, sendo que o direito de defesa encontrará cabimento em toda sua amplitude ao ser inaugurada a relação processual”.
“O indiciado pode requerer diligência à autoridade policial, mas fica ao prudente juízo dela deferir ou não, pois que não há exercício do direito de defesa na fase do inquérito”.
Que impasse! Não é objeto de investigação. É sujeito de direitos, mas que não pode exercer direitos.
Ora, sujeito de direitos capaz que não pode exercer direitos não existe. Então, não é sujeito de direitos. É o quê? O que será que há entre um objeto de investigação e um sujeito de direitos não exercitáveis? Um objeto não identificado... É um óvni!
A desproporção de poderes é enorme. Aliás, de um lado, há poderes extraordinários. De outro, um arremedo de direito, um projeto, uma promessa. Poder, manda. Direito, pede. O investigado tem sobre si o Ministério Público e a autoridade policial, com todas suas suposições, teorias, conjecturas, induções, deduções, hipóteses, pressuposições. E com farto instrumental investigativo.
A investigação e o raciocínio inquisitivos produzem genuínas hipóteses delirantes. O investigador, se não for maduro e equilibrado emocionalmente, se não descobre, constata; se não induz, deduz; se não capta, alcança; se não acha, localiza; se não soluciona, resolve. O investigado fica de mãos atadas a depender da sorte. Sem ela, seu destino estará nas mãos de seu algoz, salvo se, na sequência, se deparar com a ampla defesa efetiva. Para isso, precisará que um juiz a extraia do texto da CF e lhe dê vida no processo.
O máximo que o juiz pode, no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, é determinar a realização de diligência para dirimir dúvida específica sobre “ponto relevante” (artigo 156, inciso II do CPP).
É preciso deixar bem claro: a faculdade do juiz de determinar diligências se restringe quando a competência originária para requerê-las é do MP; e se expande quando é da defesa. A razão dessa interpretação decorre do texto constitucional. Não incumbe ao juiz substituir o acusador, pois, como dispõe o artigo 129 da CF, inciso I, “são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. Ora, sendo da alçada exclusiva do MP promover a ação penal, não pode o juiz se imiscuir, suplementando, auxiliando, amparando e complementando a atividade ministerial. Juiz não é substituto ou suplente de acusador. Não possui qualquer responsabilidade pela acusação.
No que diz respeito à defesa, a Constituição Federal, diferentemente do que se dá com o MP, não faz a previsão de que ela será exercida “privativamente por advogado, ou pela Defensoria Pública”. Pelo contrário, a CF, no artigo 5º, inciso LV, ao prescrever que, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, onera, cria encargo para o magistrado de zelar pelo cumprimento da ampla defesa, pois é ele o fiscal da regularidade constitucional do processo. Se o processo não pautar por essa regra, é nulo. Compete ao juiz zelar pelo devido processo, evitando nulidades, e, quando presentes, saná-las, corrigi-las. É tão séria e grave essa responsabilidade do magistrado que vai ao ponto de ele possuir o poder-dever de afastar o defensor que estiver atuando de maneira deficiente no processo, providenciando sua substituição.
O acusado ingressa no processo detentor de uma posição de inferioridade imensa. Até então, como examinado, seus direitos eram teses, hipóteses. Promessas da ampla defesa ao se iniciar o processo. Sobre ele pairavam soberanamente os poderes investigatórios da autoridade policial e do Ministério Público. Ao ser jogado à força no processo criminal, mesmo nele, não dispõe de poder, apenas direito, do direito à “ampla defesa”. Assim é dada a partida, ou inicia o jogo: poder versus direito. A diferença entre poder e direito é simples. Quem dispõe de poder manda. Que tem direito pede. Se o acusado não contar com um juiz que interprete a lei processual penal como uma norma de garantia, o direito à ampla defesa é natimorto. Poder não precisa de outrem para respirar e sobreviver. Direito, sim. O acusado precisa, ao bater na porta da entrada do foro, ser recebido por um juiz que faça valer a realidade da ampla defesa. Só assim a defesa será colocada em pé de igualdade com a acusação. Não há outra forma. O poder de acusar manda, o direito de defender pede. A igualdade das partes no processo é uma fábula, um dogma ficcional. Para que a igualdade seja atingida, só se os desiguais forem tratados desigualmente. Se um indiciado inocente, na sequência denunciado, depois de passar por dois poderosos inquisidores, abrindo a porta do Judiciário, se deparar com um terceiro inquisidor, a ampla defesa serão palavras sem significado escritas em um livrinho inútil. A ampla defesa sem um magistrado que a efetive não existe.
As normas do processo são normas de garantia. No primeiro tempo, a vantagem é da administração. No segundo, a jurisdição coloca as razões da administração à prova. São os motivos pelos quais, ao se interpretar as normas processuais penais, aplica-se o princípio do “favor rei” e, quando se interpreta os fatos, emprega-se o princípio in dubio pro reo. Duas concepções filhas da presunção de inocência constitucional.
Não há impedimento algum a que juiz dê significação expandida ao inciso II do artigo 156 do CPP e determine diligências diversas tendentes a favorecer ao acusado, as quais deveriam ter sido requeridas pela defesa, e não o foram. Pode suplementar, complementar, subsidiar à defesa, evitando, inclusive, dessa maneira, a nulidade do processo por deficiência de defesa (artigo 564, inciso III, “c”).
Se o juiz, violando o artigo 129 da CF, inciso I, da CF, substitui o acusador e se transforma em investigador, determinando medidas inquisitivas, fica configurada a nulidade do processo por violação do inciso II do artigo 156 do CPP (que só autoriza diligências em favor da acusação para dirimir dúvida sobre ponto relevante) e por caracterização de parcialidade. Juiz não é policial nem promotor. O acusado chega no processo em posição de total inferioridade. Sua culpa precisa ser colocada à prova, e para isso é preciso que seja oportunizado que demonstre sua inocência. Não se pode partir do pressuposto que é culpado, ao contrário, deve ser presumido inocente. Precisa de um juiz garantidor. Não de um inquisidor. Sem garantia, seus atos parecerão processo. Mas não serão processo. Serão encenação, embuste. Uma mentira.