A ADPF nº 378, o Supremo Tribunal Federal e a separação de poderes

 René Zamlutti Jr. -  

A (bi)polaridade que dominou o país ao longo de 2015 tornando (ainda mais) rasteiro o debate político, acirrado tanto pela estreita margem de vitória da atual Presidente nas eleições de 2014, quanto por sua desastrada gestão a partir de então e pela recusa do candidato preterido em aceitar a derrota (o que, aliás, ainda não aconteceu), atingiu seu ápice na percepção da sociedade acerca das decisões tomadas até o momento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 378. No raciocínio simplista que marca o momento, partidários do governo entendem que o processo de impeachment deflagrado pelo presidente da Câmara dos Deputados constitui um golpe contra a democracia. Opositores, por sua vez, entendem que o estabelecimento de aspectos do rito processual do impeachment pelo STF atenta contra o princípio constitucional da separação dos Poderes (art. 60, § 4º, inciso III da Constituição Federal de 1988).

 

Como é comum nesses momentos de pouca reflexão e muita gritaria, nenhum dos lados tem plena razão, e a forma como os ministros do STF expõem os fundamentos de suas decisões pouco contribui para restaurar uma racionalidade cada vez mais distante.

 

Os que defendem que o impeachment constitui um golpe contra a democracia argumentam que a Presidente não teria cometido, no atual mandato, qualquer conduta tipificável como crime de responsabilidade, requisito sine qua non à instauração do processo. Aduzem, ainda, que essa instauração consiste num ato de represália do presidente da Câmara dos Deputados, uma resposta à falta de apoio do Executivo em relação às investigações de irregularidades e crimes em tese por ele praticados.

 

A primeira resposta dada pelos defensores da viabilidade do impeachment é de uma obviedade gritante: o emprego de um instrumento processual constitucionalmente previsto não pode ser considerado golpe. Reforça o argumento o fato de que o partido político a que pertence a Presidente, em inúmeras ocasiões passadas, invocou – ao menos retoricamente – o mecanismo de impedimento para impugnar o mandato do então Presidente, que pertencia ao partido hoje da oposição.

 

Evidentemente, é absurdo falar-se em “golpe” pelo só fato de o processo de impeachment ser instaurado pelo presidente da Câmara dos Deputados, nos exatos termos previstos na Constituição. Releva observar que o presidente da Câmara, acertadamente, rejeitou os pedidos de instauração do impeachment com base em condutas anteriores ao atual mandato, adotando posição similar à que defendi recentemente, em artigo anterior (que pode ser lido aqui). Se as “pedaladas fiscais” praticadas em 2015 constituem ou não crime de responsabilidade, é questão de mérito a ser analisada pelo Senado Federal. O fato de o Tribunal de Contas da União não ter considerado, até hoje, essa conduta como crime de responsabilidade não implica a impossibilidade de mudança de entendimento, notadamente ante a (indesejada, mas inegável) vaguidade dos crimes de responsabilidade elencados na Lei nº 1.079/1950.

 

Também são inconsistentes os argumentos no sentido de que o presidente da Câmara dos Deputados não teria “moral” para acatar eventuais denúncias contra a Presidente da República, por responder, ele próprio, a outros processos, administrativos e/ou criminais. Se fosse assim, o instrumento da delação premiada, sancionado pela Presidente (Lei nº 12.850/2013) e que tanta utilidade tem demonstrado nos últimos tempos, não faria sentido algum. Em outras palavras, havendo indícios da prática de crime de responsabilidade, pouco importam as razões pelas quais o presidente da Câmara decide instaurar o processo acerca do juízo de admissibilidade do processo de impedimento – e vale lembrar que não é o presidente da Câmara quem faz tal juízo, e sim a própria Câmara, que só autorizará o processo de impedimento por dois terços de seus membros (art. 51, inciso I da Constituição Federal). Pelas mesmas razões, tampouco importa para o impeachment se o próprio presidente da Câmara responde, ele próprio, a qualquer processo.

 

Em suma, a instauração do processo de impeachment contra a Presidente da República, nos termos previstos na Constituição Federal, não constitui “golpe”, como pretendem alguns. Até porque todas as acaloradas discussões que tiveram lugar até o momento dizem respeito apenas ao juízo de admissibilidade do processo, a ser feito pela Câmara dos Deputados, e não ao seu mérito, cuja análise concerne ao Senado Federal, em momento posterior (art. 52, inciso I da Constituição).

 

O que leva ao segundo problema objeto deste artigo – o estabelecimento, pelo STF, do rito processual do impeachment, no bojo da ADPF nº 378.

 

Os mais enfáticos defensores do impeachment – notadamente aqueles que querem a retirada da Presidente do seu cargo não importa por que meio – exultaram com as manobras feitas pelo presidente da Câmara para aprovar, por votação secreta, uma comissão especial que, nos termos do art. 19 da Lei nº 10.079/1950, analisaria as denúncias contra a Presidente antes do juízo de admissibilidade a ser feito pelo Plenário da Casa.

 

O STF, no entanto, por maioria de votos, invalidou a comissão especial inicialmente formada, entendendo pela inconstitucionalidade do processo de sua formação. Mais do que isso, à luz das omissões, tanto na Constituição quanto na Lei nº 10.079/1950, em relação ao rito processual do impeachment, o STF estabeleceu regras para as futuras fases desse processo, reiterando diversas decisões tomadas anteriormente (sem força vinculante nem efeito erga omnes), por ocasião do impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992. Dentre as mais polêmicas, o STF reafirmou (como o fizera em 1992) que o Senado tem a prerrogativa de formular novo juízo de admissibilidade, antes mesmo do juízo de mérito.

 

A questão que se coloca é: o estabelecimento, por parte da cúpula do Judiciário, desses aspectos procedimentais inexistentes na Constituição e na legislação, implica violação ao princípio constitucional da separação dos Poderes?

 

Tal como ocorre em relação às alegações de “golpe”, os argumentos nesse sentido parecem pautados mais pela emoção do que pela razão.

 

Os detalhes procedimentais estabelecidos pelo STF basearam-se em três circunstâncias: i) a inexistência de legislação expressa; ii) a recepção ou não de determinados dispositivos da Lei nº 10.079/1950, vale dizer, sua compatibilidade ou incompatibilidade com a Constituição; e iii) os precedentes fixados no caso Collor.

 

É claro que o Poder Legislativo pode, a qualquer tempo, estabelecer novas regras, por meio do processo legislativo competente – mas não pode fazê-lo por decisões unilaterais do presidente da Câmara, cujas motivações, aqui sim, têm relevo, na medida em que implicam desrespeito ao princípio democrático (violado, nesse caso, por exemplo, por uma eventual votação secreta, para a qual não há justificativa plausível).

 

É usual a afirmação de que o impeachment é um julgamento político. De fato o é. Mas a expressão deve ser corretamente entendida. O julgamento é político na medida em que é levado a cabo não pelo Judiciário, mas por representantes eleitos do povo; é político, ainda, no sentido de que visa antes à preservação da Presidência enquanto instituição do que à punição do Presidente; é político, por fim, no sentido de que aspectos políticos hão de ser analisados conjuntamente com os aspectos jurídicos.

 

A natureza política do impeachment, entretanto, não significa que seu processamento poderá ser feito à margem do que determina a lei. O julgamento político ocorre no seio de um Estado de Direito. Do contrário, retornaríamos à arbitrariedade que marcou momentos históricos anteriores, alguns, infelizmente, não tão distantes (como o período ditatorial brasileiro, no qual a lei e a Constituição não passavam de ornamentos retóricos sem qualquer uso prático). Incumbe ao STF dar a palavra final acerca do sentido das normas constitucionais, cabendo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição (como determina o caput do art. 102 da Constituição). Colmatar eventuais lacunas legislativas no rito processual do impeachment, que é um processo tanto político quanto jurídico, não resulta em qualquer violação ao princípio da separação dos Poderes. Consiste, antes, em uma de suas funções.

 

Em suma: a instauração do processo de impeachment não constitui, de per si, golpe algum; e o suprimento de lacunas legais por parte do STF tampouco implica qualquer violação ao princípio da separação de poderes, consagrado no inciso III do § 4º do art. 60 da Constituição. Reações extremadas, pautadas por retóricas emocionais, são, na maior parte das vezes, antes o fruto da miopia inerente aos arroubos das paixões políticas do que o resultado da reflexão fria e da análise racional da lei e da Constituição.

 

O processo de impeachment implica sérias consequências para o país, seja qual for seu resultado. Seu impacto político, social e econômico na realidade é considerável, a partir de sua instauração. A gravidade de seus desdobramentos não permite que dele se trate de forma superficial ou inconsequente – o que, infelizmente, vem ocorrendo.

 

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