Por Diogo Malan -
Malgrado a atual matriz curricular das faculdades de Direito privilegie habilidades analíticas, nas práticas do sistema de administração da justiça criminal viceja cultura narrativa. A argumentação jurídica, embora formal e legalista, possui forte componente narrativo, motivo pelo qual a percepção sobre a resolução mais correta e justa do caso penal é influenciada por histórias. [1]
Nessa toada, avulta a importância da habilidade advocatícia de contar histórias (storytelling). Tal habilidade consiste em talhar fatos naturalísticos e elementos probatórios no formato de histórias atraentes, coerentes, lógicas e persuasivas, cujo objetivo é influenciar o convencimento do julgador sobre o mérito da causa.
A história, no contexto da litigância penal, pode ser conceituada como a narrativa de evento, ou eventos, que comunica alguma informação sobre a condição humana, que é significativa na perspectiva da lei penal e está apoiada nos meios de prova existentes. [2]
Philip Meyer, Professor de Direito na Universidade de Vermont, publicou interessante livro sobre as aplicações forenses da teoria da narrativa. [3]
Para ele, cada história possui cinco elementos estruturais, que se influenciam reciprocamente: (i) enredo; (ii) personagem; (iii) cenário; (iv) linha do tempo; (v) condição humana.
O enredo é o elemento mais importante no âmbito forense, podendo ser conceituado como uma sucessão ordenada de eventos. O labor do Advogado consiste em selecionar materiais brutos (dentre elementos probatórios e fatos naturalísticos), moldá-los como eventos, e organizar esses eventos na sequência ordenada de uma história.
A própria natureza do enredo determina quais fatos podem servir como eventos, pois o enredo controla os eventos, mas ao mesmo tempo é criado por eles. Portanto, há relação de interdependência entre enredo e evento: o significado do todo é resultado do somatório das partes, mas simultaneamente as partes obtém seu significado a partir do todo.
Conceito importante é o de profluência, a qual estabelece relação causal, conferindo uma dinâmica interna progressiva aos eventos do enredo. No meio forense, como a audiência (magistrado ou jurados) tende a ser pouco paciente, o enredo deve ser o mais direto e compactado possível, similar à estrutura da narrativa cinematográfica comercial.
Outro conceito é o de lógica da história, relacionado à capacidade de a sequência de eventos (especialmente o final da história) proporcionar um significado relevante à audiência. Todos os eventos do enredo são preparatórios do final, motivo pelo qual o defensor deve saber onde pretende chegar, e estruturar seu enredo de trás para frente.
Releva destacar também o tema. Trata-se da principal ideia, insight ou verdade subjacente às escolhas do narrador, durante o processo de seleção, formatação e sequenciamento dos eventos que integram o enredo. O tema costuma ser fortemente insinuado ao longo da história, porém raramente é explicitado.
Portanto, há diferença entre os conceitos de tema da história e teoria do caso. Nesta última, os fatos naturalísticos são estruturados para fins de enquadramento em elementos constitutivos de normas jurídicas abstratas. Ou seja, os fatos naturalísticos são apresentados invocando, de forma explícita, os princípios e regras nos quais o causídico se apoia para influenciar a convicção do julgador. [4]
Segundo Meyer, o gênero prevalente nas expectativas da audiência forense é o melodrama. [5]
Este último é caracterizado por duas temáticas principais: o triunfo da virtude moral sobre a vilania, e a subsequente idealização das concepções morais atribuídas à audiência. Cuida-se da conhecida trama que envolve jornada de herói/protagonista que encarna virtudes morais, superando grandes adversidades (internas e externas) na sua encarniçada refrega para derrotar o vilão/antagonista.
Por sua vez, a caracterização do personagem é considerada aspecto crucial de muitas formas narrativas contemporâneas, tais como o romance. Já outras formas, como o cinema comercial, são mais centradas na estrutura narrativa do enredo, à qual estão subordinados os personagens. Isso decorre de limitações temporais (duração máxima do filme longa-metragem) e tecnológicas (inexistência de meios para explorar a psicologia de cada personagem) desse meio audiovisual.
Para Meyer, na prática forense a história se assemelha mais à linguagem cinematográfica, focando na estrutura narrativa do enredo e incorrendo em reducionismos quanto aos personagens.
Não obstante, os personagens têm considerável importância para a história forense, especialmente quando o causídico é capaz de construir personagem humano e convincente, com motivação psicológica coerente e integrado a enredo bem estruturado. [6]
Como no sistema de administração da justiça a responsabilidade penal pressupõe juízos de valor sobre variegados aspectos comportamentais e psicológicos (v.g. ação voluntária, compreensão, vontade, culpabilidade, personalidade, motivos etc.) do acusado, é necessária a criação de personagem que seja compreensível e coerente, com o qual o auditório possa nutrir relação de empatia e identificação pessoal.
Os personagens se dividem em simples e complexos.
Aqueles são unidimensionais, têm característica única e são previsíveis, tendendo a exercer função coadjuvante no enredo. Já estes são pluridimensionais, têm múltiplas características (por vezes conflitantes) e são imprevisíveis, tendendo a exercer função protagonista no enredo.
Para o efetivo desenvolvimento de cada personagem, há três técnicas aplicáveis à história forense: (i) descrição: emprego parcimonioso e seletivo de detalhes que evocam traços do caráter do personagem, despertando o interesse do auditório na sua complementação [7]; (ii) diálogo: uso de transcrições e paráfrases dos diálogos para definir o caráter do personagem, a partir do conteúdo e forma das suas afirmações; (iii) ação: inferência do caráter, motivação, papel no enredo e comportamento futuro do personagem, com base em suas ações pretéritas.
Outro aspecto importante é o cenário. Este serve como limite geográfico do enredo, mas também é desenvolvido e descrito sob medida para condicionar a forma como o auditório compreende e interpreta os eventos do enredo.
Para tanto, podem ser usadas as seguintes técnicas: (i) inclusão ou omissão de certas espécies e grupos de objetos, ou objetos específicos; (ii) descrição de determinado objeto com maior ou menor grau de detalhe; (iii) escolha da pessoa gramatical; (iv) seleção do vocabulário e estruturação de períodos e parágrafos; (v) escolha de quais informações serão transmitidas de forma direta ou implícita etc. [8]
A linha do tempo da história não se limita à exposição dos eventos que integram o enredo em ordem cronológica.
Nas histórias mais complexas inexiste cronologia linear, pois o narrador avança e retroage no tempo, selecionando eventos e fazendo dobras temporais, para atender às exigências do enredo. Há duas progressões temporais distintas em qualquer história. Os eventos que compõem o enredo se sucedem temporalmente (story time). Já a narrativa da história (discourse time) pode não ser paralela à sobredita sucessão temporal, embora ambas devam ser coordenadas. [9]
Assim, o Advogado deve compreender a importância estratégica da arquitetura temporal da sua história, que não se confunde com a cronologia linear dos eventos. O artífice da história pode reconstruir eventos, fazendo escolhas relacionadas ao compasso e ritmo da narrativa. Por exemplo: escolhendo a ordem de apresentação dos eventos (fazendo elipses, flashbacks e flash-forwards), dedicando mais tempo a certos eventos etc.
Bryan Foley e Ruth Robbins ressaltam a importância do tópico do arrazoado forense relativo aos fatos, pois julgadores são mais persuadidos por valores tais como justiça, bom senso, compaixão por pessoa injustiçada etc., em detrimento da argumentação jurídica. [10]
Esses autores apontam três elementos fundamentais da história forense: personagem, conflito e resolução. Nesse contexto, o papel do narrador é caracterizar os personagens e o conflito de modo a induzir o julgador a escolher a resolução mais favorável do caso.
O personagem principal é o acusado, cujos antecedentes, perfil, ações e escolhas durante o conflito etc. devem ser pesquisados e incluídos na história, para que o julgador possa compreendê-lo e empatizar com ele.
Dependendo da natureza e gravidade dos fatos imputados, pode ser difícil despertar simpatia do julgador pelo acusado. Nesse caso, podem ser usadas as seguintes táticas pelo defensor: (i) substituição da pessoa do acusado por causa mais abrangente (v.g. defesa de direito fundamental individual); (ii) retratação de conflito interno do acusado (v.g. luta pessoal contra a dependência química de substância entorpecente).
Quanto ao conflito, a história deve explicitar os interesses contrapostos, considerando que o auditório tende a torcer pela parte mais fraca na peleja. As necessidades e objetivos do personagem, somados à forma da sua participação no conflito, dão vida a este último, conferindo significado aos olhos do auditório.
O derradeiro elemento é a resolução do conflito. A história deve fortemente insinuar solução favorável do caso compatível com as caracterizações do personagem e do conflito, além de justa.
Steve Baxley, por sua vez, compara o processo de construção da história forense à atividade de esculpir formas em mármore. O primeiro passo é o Advogado se perguntar sobre o que é aquele caso criminal. A história é a teoria do defensor sobre o que aconteceu para forçar o seu cliente a sofrer criminalização secundária, além da injustiça sofrida pelo cliente. [11]
O próximo passo é listar todos os fatos relevantes, classificando-os em favoráveis ou desfavoráveis ao acusado. Conforme o causídico vai esculpindo sua história com martelo e cinzel, deve tentar reinterpretar, de modo favorável ao acusado, o máximo de fatos inicialmente classificados como desfavoráveis. A história só é convincente se incluir todos os fatos. A admissão de fatos desfavoráveis fomenta a credibilidade do Advogado aos olhos do auditório.
Após, deve ser criado o enredo, centrado na situação conflituosa vivenciada pelo acusado e suas ações e escolhas para solucioná-la. Em regra, o enredo deve ser estruturado em três partes: estabelecimento, desenvolvimento e solução do conflito. Idealmente, o enredo deve ser capaz de conjugar apelo emocional e rigor lógico, focando em uma ou duas razões excludentes da responsabilidade penal do acusado.
Baxley também recomenda que a história seja talhada sob medida para ser mais convincente, à luz dos vieses e heurísticas dos julgadores.
O tema da história deve ser único, ter apelo universal, evocar reação emotiva do auditório e caber em uma ou duas frases, demonstrando que a justiça consiste em sentença (ou veredito) favorável ao acusado. Assim, múltiplas teses, contraditórias entre si do ponto de vista lógico, devem ser vistas com reservas.
Alguns temas considerados efetivos por Baxley são: (i) os que envolvem escolhas das agências do poder punitivo (v.g. os policiais poderiam ter obtido mandado judicial, mas optaram por invadir à força o domicílio do acusado); (ii) os de cariz contrafactual (v.g. se tivesse sido observado o procedimento legal de reconhecimento pessoal, este seria minimamente confiável); (iii) os que consistem em trilogia (v.g. a acusação é desnecessária, sem sentido e sem fim).
Como alertava o Mestre Rubem Fonseca, “nada temos a temer exceto as palavras”. Logo, o defensor deve ser um exímio artesão do vernáculo, escolhendo cuidadosamente cada palavra usada para caracterizar o acusado, vítima, terceiros, fatos naturalísticos etc. na sua história.
O tema deve ser apresentado logo no início da história. Após, o narrador deve incluir os cinco elementos centrais, que dominam as expectativas do auditório: (i) qual foi a conduta praticada: (ii) quem a praticou; (iii) como ela foi praticada; (iv) por que ela praticada; (v) quais eram as circunstâncias factuais.
Importante ressalvar que, ao contrário das histórias criadas por outros profissionais (v.g. romancistas, roteiristas de cinema etc.), o conteúdo e a forma da história do causídico estão sujeitos aos limites legais e deontológicos da Lei nº. 8.906/94 e do Código de Ética e Disciplina da OAB. No meio forense, as histórias das partes devem ser éticas, realistas e ancoradas em elementos probatórios, não induzindo o julgador em erro.
O principal traço distintivo da história forense é o fato de ser inacabada, pois o seu final pode ser fortemente insinuado pelo narrador, mas não ordenado. Cabe ao julgador escrever o final, propiciando sentido e consequências práticas à história.
Destarte, o objetivo deste estudo exploratório sobre tema pouquíssimo ensinado e debatido no País (storytelling aplicado à prática forense penal) foi enfatizar a importância da habilidade advocatícia de criar boas histórias, enredos e temas, como meio de defesa efetiva dos interesses do acusado.