A ADVOCACIA CRIMINAL SEGUNDO FERRAJOLI

Por Diogo Malan -  

Luigi Ferrajoli é um dos filósofos do Direito que exercem mais influência sobre acadêmicos das Ciências Penais e operadores do sistema de administração da Justiça criminal pátrio.

Por limitações de espaço e tempo, far-se-á recorte epistemológico limitando este texto à brevíssima introdução sobre a aplicação da teoria jurídica de Ferrajoli ao Direito Processual Penal, seguida de exposição das ideias desse autor italiano acerca da ética na advocacia criminal.

A esse propósito, a teoria jurídica de Ferrajoli visa a assegurar o maior grau possível de racionalidade nas decisões penais, pelo reforço de sistema orgânico de vínculos e regramentos, que fundamenta as práticas e procedimentos persecutórios estatais em conhecimento (e não autoridade).

Assim, se busca sistema que, ao mesmo tempo, reduza o poder e valorize o saber judicial, o que pressupõe a veracidade empírica e logicamente controlável das suas motivações decisórias .

Essa epistemologia cognoscitiva impõe procedimento probatório no qual a adjudicação do caso penal se dá por meio de asserções empiricamente sujeitas à comprovação pelo acusador e à refutação pelo defensor (princípio da estrita jurisdicionalidade) .

Nesse modelo processual, há regramentos que disciplinam a reconstrução histórica dos fatos naturalísticos imputados, assegurando-se a obtenção de verdade mínima, porém mais controlável e garantida. Isso devido à natureza empírica e determinada da hipótese acusatória, por cânones do conhecimento tais como os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo etc .

O procedimento probatório cognoscitivo é regido por três garantias primárias (ou epistemológicas): 1) formulação da imputação (nullum iudicium sine accusatione); 2) ônus da prova da parte acusadora (nulla accusatio sine probatione); e 3) direito de defesa do acusado (nulla probatio sine defensione) .

A essas garantias primárias se agregam as garantias secundárias (ou garantias de garantias), que são instrumentais com relação àquelas: 1) publicidade dos atos processuais; 2) oralidade, que abrange seus corolários lógicos (imediação, concentração e identidade física do juiz); 3) legalidade dos procedimentos; e 4) motivação das decisões judiciais .

Nesse contexto, o procedimento de busca da verdade se assemelha a uma investigação empírica de ensaio e erro. A principal garantia da sua obtenção é o maior grau possível de exposição das teses da acusação à refutação da defesa .

Entre nós, infelizmente a teoria jurídica de Ferrajoli nem sempre é estudada e compreendida de forma adequada. Desse déficit resultam interpretações heterodoxas, que tentam inserir a fórceps nessa teoria ideias incompatíveis com ela. Por exemplo: a defesa da restrição excessiva, ou sacrifício, de garantias processuais penais do acusado no altar da defesa social contra a criminalidade .

Com o intuito de oferecer modesto contributo ao debate nacional sobre a teoria jurídica de Ferrajoli, serão expostas suas ideias sobre a ética na advocacia criminal .

Esse filósofo peninsular começa ressaltando o escasso interesse da literatura (jurídica e extrajurídica) europeia e latino-americana pela deontologia, deveres processuais, funções e prerrogativas dos advogados.

Há consideravelmente mais literatura dedicada a aspectos organizacionais, garantias, prerrogativas etc. dos demais atores processuais penais: magistrados e integrantes do Ministério Público.

Para Ferrajoli, essa desproporção na produção literária é causada por diversas carências culturais e institucionais.

A primeira é a significativa inferioridade dos poderes do defensor frente ao acusador, da qual decorre a marginalidade da figura do defensor.

A segunda é o desinteresse da cultura jurídica por investigação sociológica sobre o funcionamento concreto do sistema de administração da justiça criminal e suas mazelas, causadas pela organização judiciária e excesso de profissões forenses e seus integrantes.

A derradeira é o peso da tradição inquisitória, que segue influenciando o caldo cultural das carreiras jurídicas e da doutrina processual penal.

Após, Ferrajoli ressalta dois modelos — descritivos e normativos — de defensor e deontologia advocatícia, que são antitéticos: adversarial e colaborador.

O defensor adversarial, teorizado pelo realismo jurídico norte-americano, por deontologia e princípio é vinculado a um dever de solidariedade ao acusado, ainda que este seja culpado. Esse defensor deve estar disposto a exercer quaisquer meios processuais para defender os interesses do acusado, ainda que de forma amoral (v.g. interpondo recursos manifestamente infundados; requerendo diligências com a única finalidade de obter a extinção da punibilidade pela prescrição etc.).

Por outro flanco, o defensor colaborador, teorizado pela escola clássica do Direito Penal, é considerado órgão indispensável à administração da justiça criminal, estando vinculado a variegados deveres éticos (v.g. lealdade processual; urbanidade etc.). Nesse sentido, o regime ético e jurídico do defensor se assemelha ao do Ministério Público.

Os sobreditos modelos representam concepções deontológicas antagônicas: o primeiro prioriza o interesse pessoal do acusado, maximizando o seu direito fundamental de defesa; o segundo privilegia a acurácia do acertamento do caso penal, mediante a comprovação ou falsificação empírica das hipóteses acusatórias.

Mais adiante, Ferrajoli busca analisar se (e em qual medida) esses dois modelos são reconciliáveis, fornecendo aportes deontológicos capazes de conciliar a defesa do interesse pessoal do acusado com o auxílio à correta administração da Justiça criminal.

Para tanto, o ponto de partida é reflexão teórica sobre a natureza jurídica do direito fundamental de defesa, cuja principal garantia é o dever advocatício de prestar assistência jurídica ao acusado. Assim, o conteúdo do direito de defesa, de titularidade do acusado, é idêntico ao conteúdo do dever de prestação de assistência jurídica ao acusado.

Nesse diapasão, a função do defensor é servir como porta-voz do acusado, traduzindo para o jargão jurídico seus interesses e necessidades, contrastando e equilibrando o papel do acusador no processo penal. Ou seja, é intermediar a relação entre o acusado e o sistema de administração da Justiça criminal.

Em última análise, o direito de defesa, assim como todos os demais direitos fundamentais e respectivas garantias, tutelam o sujeito débil, que no processo penal é sempre o acusado.

Não obstante, à semelhança dos demais direitos fundamentais e suas garantias, o direito de defesa não é absoluto, encontrando limites na legalidade e nos direitos fundamentais de terceiros.

Nessa toada, o regime deontológico do defensor impõe deveres de lealdade, probidade e urbanidade (artigos 77 e 78 do Código de Processo Civil, aplicáveis por analogia).

Assim, o defensor não pode praticar atos contrários à administração da Justiça (v.g. falso testemunho, fraude processual, denunciação caluniosa, crimes contra a honra, expedientes cujo único fim é obstruir a marcha processual etc.), nem mesmo aqueles facultados ao acusado (v.g. mentir em juízo). Em síntese, o defensor pode defender o seu cliente no processo, mas não do processo .

A defesa técnica consiste no poder-dever de o defensor praticar quaisquer atos que o seu cliente praticaria pessoalmente, caso ele tivesse formação jurídica e habilitação legal para tanto. As únicas exceções a essa regra geral são as mentiras e trapaças em juízo.

Importante ressalvar que os precitados deveres de lealdade, probidade e urbanidade do defensor não implicam quaisquer deveres de colaborar com a incriminação do acusado, desmentir declaração inverídica do acusado, revelar segredos prejudiciais ao acusado etc.

Cuida-se de regime deontológico puramente negativo: o defensor deve se abster de mentir, trapacear, usar meios enganosos de prova para induzir o acusador ou julgador em erro etc. Porém, não é desleal omitir fatos naturalísticos, elementos informativos ou probatórios que sejam desfavoráveis ao acusado.

Ferrajoli entende possível caracterizar a função do defensor como um Ministério Público, desde que essa dimensão pública seja relativa ao direito fundamental de defesa, e não à administração da Justiça criminal. Aqui o filósofo italiano emprega o adjetivo fundamental na acepção de universal: pertencente à esfera pública, porquanto é de titularidade e interesse de cada pessoa, e virtualmente de todas elas.

Com base nessa premissa, deve haver a organização de carreira jurídica composta por servidores públicos incumbidos da defesa dos acusados hipossuficientes: o Ministério Público da defesa.

Esse Ministério Público defensivo foi teorizado por autores clássicos do pensamento iluminista europeu (Bentham, Carrara etc.), porém ele nunca foi introduzido nos ordenamentos jurídicos do Velho Continente, e, sim, em alguns países latino-americanos (Argentina, Brasil etc.).

Sendo o direito de defesa de cariz universal, ele deve ser assegurado gratuitamente pelo poder público.

Por ser o único meio de testagem empírica da credibilidade da hipótese acusatória em juízo, o direito de defesa confere legitimidade moral e política à adjudicação do caso penal. Na sua falta, o sistema de administração da Justiça criminal se torna classista e discriminatório, subvertendo a estrutura triangular da relação processual pela exclusão da participação dialética de um dos atores processuais penais: o acusado.

Portanto, o regime deontológico do Ministério Público da Defesa e do defensor particular constituído pelo acusado é idêntico. Ambos podem dizer e fazer tudo que o acusado faria, caso ele tivesse formação jurídica e habilitação legal para tanto, dentro do marco da legalidade. Nada mais, nada menos. A única exceção é o direito de mentir em juízo, de titularidade exclusiva do acusado.

Para tanto, o defensor deve cumprir seus deveres de lealdade, probidade e urbanidade, mantendo relação de independência com o julgador, acusador e seu próprio assistido ou cliente.

Como se trata de regime deontológico puramente negativo, o defensor não pode dizer ou fazer algo que prejudique os interesses do acusado.

Ferrajoli reconhece o cariz genérico dos deveres de lealdade, probidade e urbanidade, que torna indefinido o conteúdo da deontologia profissional do defensor.

Malgrado tais deveres sejam incapazes de solucionar, em abstrato, todos os possíveis dilemas éticos e morais suscitados pela prática jurídica penal, eles servem para: 1) demarcar a diferença e o limite entre a deontologia do defensor e o precitado modelo de defensor adversarial; e 2) estabelecer limites à atuação profissional do defensor, mais rígidos do que aqueles aplicáveis ao acusado.

Por conseguinte, o filósofo peninsular sugere que os limites deontológicos da defesa técnica são mais rigorosos do que os limites da autodefesa.

Para tanto, ele questiona, por exemplo, o limite entre o direito do acusado a mentir, ou a apresentar narrativa fática alternativa àquela do acusador (podendo conter incriminação, expressa ou implícita, de terceiros), e o apoio do defensor a essa iniciativa do acusado.

A situação mais dramática, segundo ele, é quando o defensor toma conhecimento sobre a existência de elementos informativos ou probatórios que incriminam seu cliente, cuja ocultação causará a condenação de inocente.

Ferrajoli arremata reconhecendo que a diferença entre os dois sobreditos modelos de defensor (adversarial versus colaborador) pode ser mitigada, mas não totalmente suprimida. Ela tampouco é capaz de fornecer uma solução abstrata e satisfatória para todos os possíveis dilemas éticos e morais despertáveis pela prática forense penal.

O que a investigação filosófica proporciona é a consciência acerca da possibilidade ordinária de reconciliação prática desses dois modelos deontológicos, e da impossibilidade de fazê-lo em situações extraordinárias.

 

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