Por Sidney Duran Gonçalez -
Quando Sócrates é levado a julgamento, ele expõe os fundamentos da acusação, que, conforme demonstra o filósofo, seria contraditória em si mesma: “Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses, porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte, os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem deuses? Seria de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas, filas de cavalos e das jumentas, e acreditassem não existirem cavalos e asnos.”1
Hoje talvez estejamos diante das mesmas indagações, contradições e retrocessos, com discursos duros de agravamento das leis penais que não se comportam com o mínimo de razoabilidade e tampouco vinculam-se a qualquer elemento demonstrativo de efetividade.
Quando acompanhamos a morte de nove jovens pisoteados em uma comunidade pobre após uma ação de policiais, não podemos deixar de refletir de que estas ações são motivadas por um pensamento que se instalou no seio de nossa sociedade, sendo reverberado por locuções e discursos que criam a impressão de que em certas localidades e para algumas comunidades a violência pode ser tolerada, ou pior, até mesmo necessária.
A aversão ao pobre nas sociedades liberais é algo que marca suas características, pois, cria-se a falsa realidade de que as pessoas deixam de prosperar por motivos pessoais, “vende-se” a falsa ideia de que não melhoram suas vidas por falta de empenho, ou como dizem, falta de mérito pessoal, colocando a culpa da miséria no próprio miserável, que após trabalhar durante todo dia e estudar em uma escola pública pela noite terá que concorrer com alunos dos melhores colégios particulares que se dedicaram somente aos estudos. E isso considerando a sorte daqueles que conseguiram terminar o ensino médio, o que em nosso país já é uma façanha digna de medalha.
A meritocracia, em uma sociedade liberal com bases em populações historicamente marginalizadas, faz com que não exista na verdade real competição para ascensão social, permanecendo as sociedades marginalizadas competindo apenas entre si mesmas, pelo melhor barraco, por duas refeições ao dia, por concluir o ensino fundamental, não existindo realmente e em escalas sociais a quebra do ciclo de miséria e marginalização.
Nas comunidades marginalizadas existe a ausência do Estado, que não demonstra se importar realmente com estas populações, que vivem a própria sorte. A ausência do Estado faz com que outras forças requeiram a tutela social daqueles que ali residem, o que muitas vezes é feito pelo tráfico de drogas, que se utiliza da postura negativa do Estado em relação as populações pobres que moram em comunidades, preenchendo esse espaço mantém refém os marginalizados.
Quando se escuta as máximas autoridades da nação defenderem o recrudescimento das posturas policiais em áreas de sociedades marginalizadas, já imediatamente soa o alarme da aporofobia, o medo ao pobre, que é o inimigo da sociedade do livre mercado, que destoa do sucesso daqueles que em razão de sua condição privilegiada aderem ao modelo liberal.
As propostas do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, em realizar o assassinato por meio de atiradores de elite de pessoas que portem arma de fogo; o projeto do ministro Sergio Moro que buscou flexibilizar a excludente de legitima defesa para acrescentar o verbo “prevenir” ao texto legal; a proposta de inclusão na previsão constitucional de garantia de lei e da ordem de autorização de matar manifestantes armados e a criação de uma GLO para o campo propostas pelo presidente Jair Bolsonaro são todas indicações de que o Estado tem eleito seus novos inimigos, os pobres.
Os discursos de recrudescimento das leis penais adotados, mostram uma postura de distanciamento da realidade vivida pelas sociedades marginalizadas, adotando-se verdadeiro discurso genocida em relação a estas sociedades, que estariam expostas a violência estatal. Na verdade, a forma mais humanizada de propor alteração nos índices de segurança pública nas sociedades marginais seria a ação social do Estado, levando bem-estar e desenvolvimento social, mais para isso, teríamos que aceitar e incluir os pobres como verdadeiras pessoas de direito e membros do corpo social.
A professora Adela Cortina em sua obra, nos chama a atenção para desenvolvermos posturas que contrariem a marginalização dos pobres, “si es verdad que actuamos de forma más prosocial cuando nos sentimos observados por otras personas, sería conveniente ir lanzando mensajes claros de que nuestras sociedades rechazan las conductas aporófagas y apuestan por las actuaciones que empoderan a los pobres, publicitar que apreciamos las acciones que tienden a incluir en vez de excluir, que se ocupan de acoger y no rechazar a los que parecen no tener nada que devolver a cambio”.2
A postura de escolha pelo Estado do pobre como inimigo, em um pais que possui milhões de miseráveis e que por 338 anos manteve escravos os negros, que ainda nos dias atuais sofrem exclusão e preconceito, chama a séria reflexão parte da sociedade para que denunciem a ação estatal, opondo-se ao recrudescimento penal que objetivamente atingirá as comunidades mais pobres e carentes.
Certamente as ações que temos presenciado, com o aumento da letalidade policial em autos de resistência; as ações em comunidades com diversos mortos sem qualquer histórico de crimes, são reflexos deste avanço contra o inimigo da sociedade liberal, aquele que pouco tem para dar e que muito precisa da ação social do Estado, aquele que está presente nos locais onde a criminalidade se prolifera, ali mesmo onde o Estado rechaça sua inserção.
O pobre se transforma nessa lógica, em um estranho a comunidade, fazendo rememorar os textos legais produzidos por Mezger a pedido do nacional-socialismo, e exposto por Munhoz Conde em sua obra crítica3. O pobre passa a ser um fardo para sociedade, pois necessita de ações sociais, e aquele que adere ao sistema liberal entende ser demasiado pesado para o restante da sociedade, passa-se assim o “cidadão da sociedade liberal” a ver questões sociais como um fardo colocado nas costas de quem produz, surgindo uma animosidade por parte daqueles que entendem manter o Estado e entre aqueles que necessitam das ações do mesmo para mantarem minimamente suas condições de vida.
As ações de propostas de endurecimento do Direito Penal no estado liberal são sempre voltadas para manutenção do establishment, ações repressivas contra manifestações; ações repressivas para o campo; excludentes para liberar excessos de agentes repressivos, todas estas propostas já repercutem no aumento da repressão pelos órgãos de polícia, com notícias diárias de que aumentam em nosso Estado denúncias de violência em comunidades pobres.
A entrevista dada ainda em 2017 pelo comandante da Rota de São Paulo, que de maneira extremamente sincera fala abertamente sobre a ação policial em diversas zonas da capital paulista, deveria nos fazer refletir acerca da situação vivida pelas comunidades marginalizadas "Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando", complementou. "O policial tem que se adaptar àquele meio que ele está naquele momento", argumentou.”4
O policial fala abertamente de algo que já conhecemos - nunca fariam uma abordagem violenta em uma festa na Zona Sul, ou haveria um atirador de elite para abater um morador de Copacabana. As alterações penais propostas pelas autoridades citadas têm endereço certo e, infelizmente, irão bater ás portas daqueles que menos contato tem com o Estado, e invariavelmente quando deste recebem algo, poderá vir com amargo gosto de chumbo.
A aporofobia se alastra nos Estados liberais, é discutida com preocupação em todo mundo, e pelo que vimos, caminha a passos largos em nosso país, nos restando denunciar, combater e discutir, pois precisamos de maior inclusão e muito menos violência para construirmos um pais que possa novamente abraçar a todos.