Por Gamil Föppel El Hireche e Raul Mangabeira -
Caso concreto: o empresário Y, altamente impactado pelas medidas restritivas impostas pelas autoridades públicas durante a pandemia da Covid-19, à beira de declarar falência, para não demitir os seus funcionários, opta por destinar as contribuições previdenciárias dos seus empregados ao pagamento dos seus próprios salários. O Ministério Público Federal, diante desse quadro, oferece denúncia contra o empresário Y, imputando-lhe a conduta de apropriação indébita previdenciária, nos termos do artigo 168-A.
Ano a ano, o país vive economicamente em crise. Desde a crise advinda da dívida externa, em 1981, em que houve a maior queda percentual do Produto Interno Bruto (PIB) na base anual, passando pela crise gerada a partir do Plano Collor, em 1990, em que o PIB caiu 4,3%, pela crise fiscal, em 2015, e, até mais recentemente, pela crise do coronavírus, em que houve um decréscimo de 9,7% no PIB.
Evidentemente, a crise econômica, para além de afetar diversos estratos sociais, impacta e é suportada também pelos empresários, que se vêm obrigados a toda sorte de soluções para que não declarem falência. Uma dessas "soluções", muito entre aspas, é o que se pretende analisar nesta sede, e que diz respeito ao não repasse das contribuições previdenciárias no contexto de sociedades empresárias sem caixa para fazê-lo.
Cumpre, neste espaço, analisar quais seriam os efeitos jurídico-penais da ausência do repasse das contribuições previdenciárias retidas pelo empregador, uma vez que sua falta pode ser interpretada, em tese, como suporte fático para a tipificação dos artigo 168-A do Código Penal (CP).
O questionamento que se extrai a partir da possibilidade de tipificação da conduta em comento é: estaria, de fato, o empresário sem recursos em caixa concretizando uma conduta criminosa a partir do não repasse das contribuições recolhidas do trabalhador?
Tradicionalmente, busca-se responder a esse questionamento com base na tipicidade subjetiva da conduta ou no último substrato do fato punível. É dizer, os esforços doutrinários e jurisprudenciais costumam girar em torno da existência ou não do dolo de apropriação ou da culpabilidade/inculpabilidade do sujeito, analisando-se uma causa de exculpação supralegal (a multicitada inexigibilidade de comportamento conforme a norma jurídica).
Antes mesmo de se questionar, no entanto, como sói ocorrer nos tribunais, se houve ou não o dolo de apropriação ou uma causa supralegal de exculpação, é preciso questionar se houve, concretamente, apropriação em sua dimensão objetiva, aspecto geralmente adormecido no debate.
Nessa linha, por lógico, apropriação objetivamente típica não haverá quando o empregador não se apropriar das contribuições previdenciárias. É que a expressão "não repassar", ao contrário de ser mecanicamente interpretada, deve ser lida a partir de sua colocação sistêmica no Código Penal. Embora a redação típica do artigo168-A dê conta de que é crime simplesmente "deixar de repassar" à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, é preciso não perder de mente que o núcleo do tipo, consistente em "deixar de repassar", apenas terá existência jurídico-penal relevante quando houver efetiva apropriação; afinal, a apropriação indébita previdenciária é uma espécie de apropriação, estando inserta no Capítulo V do CP.
A conclusão é: deixar de repassar à previdência social, sem se apropriar dos recursos, não representa hipótese de adequação ao artigo 168-A do CP, por evidente incompatibilidade típica. Apropriar-se significa apossar-se ou tomar como sua coisa que pertence a outra pessoa. A destinação do recurso, para si, de maneira a tomá-lo como seu, é um aspecto de extrema relevância na análise da apropriação indébita previdenciária.
A situação do empregador que, no contexto de uma sociedade empresária, à beira de declarar falência, deixa de repassar as contribuições, a depender das peculiaridades do caso, pode não ser criminosa. Ficando claro que o empresário não toma para si as contribuições, utilizando-as, por exemplo, para pagar o salário do próprio funcionário, apropriação alguma haverá (já que o empresário não tomou a coisa para si), sendo o caso, mais precisamente, de um "não repasse" decorrente do "desvio" das contribuições.
O que se pretende criminalizar, com a tese da simples ausência de repasse, sem a devida apropriação, é justamente o desvio das contribuições e não a sua apropriação em si. Ocorre que quando o legislador quis incriminar a conduta de desviar, ele o fez expressamente, a exemplo do que se fez em relação ao peculato. Na redação típica do artigo 312 do CP (peculato), cuida-se, a um só tempo, da apropriação dos recursos e do desvio dos recursos. Dois núcleos típicos expressos e distintos. Houvesse a ausência do verbo desviar, o "peculato desvio" seria, inevitavelmente, atípico.
Essa é exatamente a hipótese do presente caso. O legislador, na redação típica do 168-A, optou por criminalizar exclusivamente o não repasse derivado da apropriação. O não repasse derivado do desvio, nem mesmo forçadamente, poderia ser entendido como suporte fático do tipo penal em questão. Aquém de se locupletar, o desvio para o pagamento de salários do próprio funcionário, no contexto de sociedades empresárias em crise financeira, impede que haja demissões em massa e efeitos outros muito mais deletérios do que o não repasse das contribuições devidas pela situação empregatícia (e tais valores podem ser cobrados por outras esferas de controle, a exemplo da administrativa e tributária).
A atipicidade da conduta em questão, decorrente da ausência de apropriação, gera, ainda, a possibilidade de absolvição sumária, nos termos do artigo 397 do Código de Processo Penal, bem como a impossibilidade de deflagração de medidas outras mais rudimentares, a exemplo da instauração de inquérito policial, inevitavelmente a ser trancado (e tudo porque, deixar de repassar, sem se apropriar, não é crime).
A dormência das considerações acerca da tipicidade objetiva é visível em alguns precedentes. O STJ, por exemplo, perfilha do entendimento segundo o qual o tipo penal do 168-A estaria conformando a partir de um dolo genérico de não repassar as contribuições do trabalhador [1]. Antes disso, a sexta turma era assente quanto à necessidade de se demonstrar a intenção de se furtar ao recolhimento tributário [2], tendo adotado, posteriormente, o entendimento firmado pela corte [3].
Esses dois entendimentos, embora divergentes, são sinérgicos quanto ao enfoque na tipicidade subjetiva das condutas, considerando-se que a tipicidade objetiva naturalmente estaria satisfeita com o simples "não repassar" (o que, veremos, é insuficiente).
Superada, apenas momentaneamente, a discussão sobre a tipicidade objetiva, ainda assim a conduta em análise seria atípica, por ausência de dolo. Conforme explicitado, a jurisprudência vem entendendo presente a tipificação subjetiva a partir de uma atecnia dogmática. A dogmática, como instrumento de previsibilidade, busca estabelecer os padrões mínimos interpretativos de um fato punível, de maneira a ser cientificamente constrangedor falar-se em dolo (dolo fictício), quando, dogmaticamente, este não existente.
Nesse caso, busca-se concretizar a conduta dolosa com base em um pretendido "dolo genérico". A discussão, no entanto, acerca da natureza do dolo, se genérico ou específico, perderia o sentido diante da ausência de liberdade da vontade. Dolo, ao menos por enquanto, ainda é consciência e vontade. E a vontade, no dolo, é vontade qualificada pela liberdade. Que liberdade existe em quem precisa fazer uma escolha crítica entre dois fins nobres? A intenção de recompor e, ato contínuo, adimplir o débito previdenciário, não se furtando fazê-lo em tempo hábil, é um outro aspecto que informa ainda mais a impossibilidade de tipificação subjetiva.
Por fim, esbarraríamos no terceiro, e mais ordinariamente tratado pela doutrina, obstáculo para a perfectibilização do crime de apropriação indébita previdenciária em crises econômicas: a inexigibilidade de conduta conforme ao direito, integrante ínsito ao terceiro elemento do crime (a culpabilidade).
A normalidade das circunstâncias fáticas é o fundamento concreto da exigibilidade de comportamento do empregador. O último estágio do juízo de culpabilidade consiste, justamente, no exame da normalidade das circunstâncias de realização do tipo de injusto por um autor capaz de culpabilidade, com conhecimento real ou possível da proibição concreta. Dessa forma, a máxima negação da normalidade da situação de fato pressuposta no juízo de exigibilidade [4] enseja o inevitável reconhecimento de que ao empregador que não repassa as contribuições trabalhistas, em circunstâncias de anormalidade, não poderia ser exigida outra conduta.
Estando provada, "mediante provas documentais, que a ruinosa situação financeira da empresa, além de grave, temporária e contemporânea à prática do delito, tenha repercutido no patrimônio pessoal dos sócios, a evidenciar que estes não tinham como pautar o seu comportamento conforme o direito" [5], crime algum haverá.
Não outro foi o entendimento do Tribunal Regional Federal da 4° Região, segundo o qual "a situação evidenciada, assim, demonstra ser crível a existência de condições anormais suportadas pela sociedade empresarial e que lhe retiraram a possibilidade de honrar todos os débitos, impondo-se o reconhecimento da excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa" [6].
Diante do exposto, resta evidente que o tipo de apropriação indébita previdenciária, como espécie de apropriação indébita, apenas terá sua tipicidade objetiva conformada quando houver, de fato, apropriação dos recursos, não sendo o mero não repasse suficiente para configurá-la. Em um segundo momento, a tipificação subjetiva da conduta está prejudicada pela ausência de liberdade do empregador. Por fim, a conduta não seria criminosa por presente uma causa de exculpação supralegal.