A AUTORIDADE DAS DECISÕES PROFERIDAS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Por Leandro Raca -  

O Supremo Tribunal Federal tem sido provocado a refletir sobre a garantia da autoridade de suas decisões. A questão veio à baia — implícita ou explicitamente — nos últimos meses e se confunde com a crise institucional vivenciada pelo país.

Antes do recesso forense, a 2ª Turma do STF iniciou o julgamento do Inquérito 4.696. O procedimento foi instaurado na ocasião da apreciação do Habeas Corpus 152.720, pelo qual o ex-governador Sérgio Cabral questionava sua transferência para Curitiba. Na oportunidade, o colegiado constatou a possível ocorrência de abuso no uso de algemas, marca-passo e cinto de contenção e determinou a instauração da investigação. As diligências sugerem que não havia necessidade de utilização dos aparatos de contenção, em clara afronta à Súmula Vinculante 11. 

Na sessão, o ministro Gilmar Mendes afirmou que, “costumeiramente, tenta-se contornar decisões da Corte (...) emitindo, por exemplo, uma nova ordem, um novo hc”. Continuou, ao afirmar que, “na sessão em que decidimos sobre a abertura deste inquérito, nós discutimos com bastante intensidade a necessidade de que essa Corte, ela mesma, abra os inquéritos para fazer as investigações e que passe a tomar deliberações nesses casos”. Ainda, que “essa Corte precisa preservar as suas competências, tem que preservar a sua autoridade”, o que defende ser necessário para evitar que “em pouco tempo, nós tenhamos tortura em praças públicas nesse país”. Acompanhou-o o ministro Dias Toffoli, que afirmou: “A desobediência é flagrante, flagrante, indo à Idade Media contra a Súmula Vinculante n°. 11”.

Antes de pedir vista dos autos, o ministro Fachin exarou: “Não me parece haver dúvida sobre o legítimo interesse institucional que há nessa matéria, por parte do Tribunal, nomeadamente o de fazer cumprir, na sua inteireza, as decisões emanadas desse Tribunal, por seus órgãos colegiados, ou monocraticamente, por um de seus integrantes”.

As duras — e pertinentes — manifestações dos ministros não devem ofuscar uma reflexão construtiva: em que medida o próprio tribunal contribuiu para a desautorização de suas próprias decisões?

No mês de maio, de forma monocrática, o ministro Alexandre de Moraes julgou procedente uma reclamação ajuizada pelo MPF, em face de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que concedeu liberdade provisória a pessoas que tiveram Habeas Corpus negado pela corte. No entendimento do ministro, ao denegar a ordem, a 1ª Turma do STF havia decidido de forma definitiva sobre a existência de requisitos para prisão. Por isso, a reapreciação da matéria pelo TRF-3 teria atentado contra a autoridade da decisão da suprema corte. 

Ocorre que a própria corte já desenvolveu “parâmetros à utilização desse instituto [reclamação], dentre os quais se destaca a necessidade de aderência estrita do objeto do ato reclamado ao conteúdo das decisões paradigmáticas do STF”. Em relevante precedente, de relatoria do ministro Celso de Mello, as hipóteses de cabimento da reclamação são bem explicitadas: 

“Os atos questionados em qualquer reclamação - nos casos em que se sustenta desrespeito à autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal — hão de se ajustar, com exatidão e pertinência, aos julgamentos desta Suprema Corte invocados como paradigmas de confronto, em ordem a permitir, pela análise comparativa, a verificação da conformidade, ou não, da deliberação estatal impugnada em relação ao parâmetro de controle emanado deste Tribunal”. 

Diante disso, parece evidente que não caberia reclamação contra decisão de instância inferior que, após denegação de Habeas Corpus pelo STF, concede a liberdade provisória. A reafirmação das razões de decidir previamente invocadas depende não apenas da aderência estrita do objeto do ato reclamado, mas também da manutenção da situação fática, à luz da possibilidade atual de substituição por medidas menos gravosas, o que pode, inclusive, ser influenciado pelo tempo transcorrido na vigência de medida liminar.

Nesse sentido, já ensinou Maurício Zanóide de Moraes:

“Toda a medida de coação determinada poderá ser substituída por outra que se mostre mais adequada e eficiente diante das novas situações naturalmente proporcionadas pela passagem do tempo. Isso faz com que possa haver uma readequação na escolha de uma nova medida tanto para recrudescer a inicialmente decretada quanto para minorar os seus efeitos restritivos. (...) Com isso diminuem-se os tão recorrentes excessos de prazos nas prisões provisórias e em outras medidas coativas que, se inicialmente estavam conformes, com o passar do tempo se mostraram ilegítimas e/ou desproporcionais”. 

Note-se: no caso concreto, a prisão restou suspensa por decisão liminar durante 19 meses, sem qualquer novo episódio que indicasse a necessidade de segregação preventiva. E parece evidente que, nesse período, a desproporcionalidade seria percebida pelas instâncias ordinárias, e não pela suprema corte. Nesse episódio, a afronta à autoridade do STF limita-se à aparência, enquanto um olhar cuidadoso revela a exemplar observância dos parâmetros que regem a prisão processual.

Um outro episódio relevante: em abril, os ministros se debruçaram sobre o pedido de Habeas Corpus preventivo do ex-presidente Lula. Por uma decisão da Presidência, o Plenário se viu obrigado a analisar um caso concreto, em vez das ADCs que tratam da possibilidade abstrata da execução provisória. O colegiado confirmou a possibilidade de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado e, ao mesmo tempo, insinuou que o resultado seria diverso se a questão fosse avaliada abstratamente. Ou seja, o tribunal se absteve de decidir a questão de forma definitiva e, consequentemente, de orientar a aplicação da Constituição pelas instâncias inferiores. Preferiu decidir de acordo com a capa dos autos a refletir sobre questão de direito urgente.

A situação se agrava em função dos seus efeitos nas instâncias inferiores. Uma vez que nem todos os precedentes do Supremo Tribunal Federal são vinculantes, a adesão aos entendimentos firmados é seletiva: precedentes sobre nulidades processuais e interpretações restritivas de tipos penais são ignorados, ao passo que são acatadas prontamente restrições ao espaço de exercício do direito de defesa, à presunção de inocência e ao caráter excepcional da prisão cautelar. Não por outro motivo, é comum que seja necessário provocar o STF, por meio de Habeas Corpus e reclamações, em casos que tratam de questões de direito já pacificadas pela suprema corte.

Após o julgamento do HC de Lula, as instâncias ordinárias ouviram o que lhes convinha. Embora se tenha concluído pela possibilidade de execução provisória, o encarceramento dos condenados em segunda instância segue largamente aplicado. Segundo a Folha de S.Paulo, apenas a Justiça de São Paulo mandou prender 14 mil pessoas. Da mesma forma, a apreciação de pedido de Habeas Corpus pelo STF é vista como a última palavra sobre a possibilidade de liberdade do investigado/réu, em que pese o caráter excepcional e provisório da prisão processual. 

Não há dúvidas de que o Supremo Tribunal Federal pode ter um papel importante na solução da crise pela qual passamos. Para tanto, convém que a reafirmação da autoridade das decisões da corte — como forma de buscar coerência interna no sistema judiciário — tenha sentido de apaziguamento de atritos institucionais, passando pela reafirmação de direitos, e não pela sua restrição. Caso se opte pela autoridade pela autoridade, corremos o risco de subverter o próprio fim da ordem jurídica penal e processual penal — ainda que em nome das mais nobres intenções. Prevalecendo a confusão, a suprema corte será apenas quem erra por último.

 

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