Por Matheus da Silva Sanches e Andrey Borges Batalha -
Passado pouco mais de um ano da vigência da Lei nº 13.964/19 (pacote "anticrime"), diversas questões controversas seguem tumultuando a correta compreensão do processo penal brasileiro. Entre elas, destaca-se a consequência jurídica em caso de desrespeito às formalidades legais atinentes à cadeia de custódia da prova.
Partindo-se desse cenário, independentemente do entendimento adotado, é inegável que, de acordo com o suposto delito apurado, a documentação dos elementos colhidos ao longo da persecução penal adquire maior ou menor relevância (mas nunca deixando de tê-la). Ora, a cadeia de custódia da prova atinente a uma lesão corporal não se compara à de um crime cibernético, por exemplo. É o que bem explica Aury Lopes Júnior (2021, p. 460):
"Dados como local do crime, temperatura, condições meteorológicas e condições específicas de transporte e armazenagem nada dizem quando se trata de uma interceptação telefônica, mas são absolutamente cruciais sem se tratando de coleta de DNA. (...) A preservação das fontes de prova é fundamental, principalmente quando se trata de provas cuja produção ocorre fora do processo, como é o caso da coleta de DNA, interceptação telefônica etc.".
Pois bem, no caso de uma suposta prática do crime de revenda de biocombustível adulterado, tipificado no artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91, por se tratar de conduta que deixa resquícios, a perícia será imprescindível para sua constatação.
Apenas com o pleno cumprimento dos respectivos dispositivos legais (artigos 158-A e seguintes do Estatuto Processual Penal) seria possível comprovar que: 1) o produto periciado era de fato o mesmo que estava exposto à revenda pelo estabelecimento comercial no dia em questão; 2) o método de coleta adotado pelos agentes estatais jamais poderia comprometer o biocombustível periciado, vindo a influenciar no resultado da diligência; e 3) o recipiente utilizado para coleta e armazenamento da amostra e qual o lapso temporal compreendido entre essa diligência e a análise; tudo isso sem prejuízo da documentação da perícia propriamente dita e seus resultados, entre outros aspectos.
Imagine-se a seguinte hipótese (muito recorrente, por sinal): agentes públicos realizam fiscalização rotineira em posto de gasolina e coletam amostras dos produtos mantidos em depósito. Ato contínuo, procede-se à análise dessas amostras e verifica-se a desconformidade em relação aos padrões legais, no que tange ao nível de PH vislumbrado, por exemplo. O auto de infração é, portanto, lavrado, sem prejuízo da imposição de multa ao proprietário do local, que se recusa a pagá-la por entender indevida, por confiar na qualidade de seu produto.
Em seguida, ao tomar conhecimento dos fatos, o Ministério Público oferece denúncia imputando ao proprietário do referido posto de combustível a prática do delito em questão (artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91).
Ao longo da fase instrutória, somente após despender gastos constituindo patrocinadores (que nem sempre se atentam às minúcias que envolvem uma perícia técnica e específica), conclui-se que a coleta do produto teria sido efetuada em recipiente inapto para armazenar o combustível analisado — tal qual um invólucro revestido de policloreto de vinila (PVC), a título de exemplo —, visto que as propriedades materiais deste poderiam desencadear reações químicas capazes de ensejar as irregularidades constatadas no nível de PH. Ou seja, a adulteração da amostra poderia ter sido provocada por falhas na coleta pelo agente público, e não pela suposta má qualidade do produto.
Ora, não é difícil constatar que esse indivíduo teria, ao final do feito, uma falsa absolvição, atrelada a inúmeras "sanções extralegais" decorrentes da mera condição de investigado ou denunciado, sendo impossível não recordar a célebre expressão espanhola "la pena de banquillo" (a penalidade do banco), utilizada para tratar da "pena processual" — oriunda da mera deflagração (ainda que infundada) de uma ação penal, ou até mesmo da instauração de inquérito policial em face de alguém, o que é suficiente para causar prejuízos irreversíveis, especialmente nos casos em que a imputação está relacionada com o meio empresarial.
É incontestável que a persecução penal acaba por gerar diversos reflexos extrapenais, principalmente em matéria de crimes empresariais. Sob a ótica do investigado/acusado, a empresa passa a enfrentar um descrédito enorme perante o mercado. É certo que os veículos midiáticos noticiariam o ocorrido, popularizando a errônea ideia de que aquele estabelecimento específico vende biocombustíveis de procedência — no mínimo — duvidosa. Isso afetaria diretamente a relação com a distribuidora do produto, vindo a ocasionar a quebra de vínculos trabalhistas, prejudicando diversas famílias, em um verdadeiro "efeito dominó", além de impossibilitar o envolvimento em eventuais procedimentos licitatórios etc.
Já sob o viés estatal, visualizam-se diversos gastos de recursos humanos e financeiros, sem prejuízo da banalização das normas de cunho garantistas previstas em todo ordenamento jurídico.
Chega a ser, no mínimo, contraditório (para não dizer absurdo): o ramo jurídico mais inexorável ser utilizado para lesar bens jurídicos constitucionalmente protegidos como a ordem social, a ordem econômica e até mesmo o livre exercício da profissão, tudo isso por meio de persecuções irresponsáveis ou imprudente, vindo a causar danos irreversíveis, o que se constata quando nem mesmo posterior decisão absolutória definitiva é capaz de retomar o status quo ante das pessoas físicas e jurídicas envolvidas na persecução penal.
Em continuidade às contrariedades estatais, tem-se que o mesmo ente que impõe uma vasta burocracia administrativa como condição para poder abrir um negócio próprio não adota uma postura equivalente na hora de fiscalizar e investigar os atos praticados no desempenho dessa atividade, principalmente ao valer-se do âmbito criminal.
Assim, surge a figura do Estado que muito cobra e pouco oferece; o qual deveria auxiliar, mas, nesses casos, prejudica. Ora, de nada vale prever garantias individuais no texto legal, mas não as cumprir ou obstaculizar o seu cumprimento.
Nesse cenário, retornando ao aspecto processual do processamento do delito em apreço, destaca-se o dever de ofício que recai sobre a autoridade policial que preside as investigações no sentido de fiscalizar as atividades dos agentes sob seu comando e orientá-los a favor do fiel cumprimento da cadeia de custódia. Ademais, uma vez verificado ao longo das investigações o desrespeito à documentação do procedimento pormenorizado nos artigos 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, caberia ao delegado de polícia representar pelo arquivamento da investigação, ou até mesmo determinar a realização de novas diligências — no caso do delito em análise, reiniciar a investigação por meio da coleta de uma nova amostra do biocombustível (se possível).
Do mesmo modo, tal zelo deveria orientar a postura do Ministério Público, haja vista que exerce a função de custos legis, obrigando-o a zelar pela licitude da investigação e às demais garantias constitucionais no curso da persecução.
Ou seja, verificado o não preenchimento das exigências legais para a confecção válida da prova, o arquivamento do procedimento investigatório seria a medida adequada, devido à inexistência de meios para, ao longo do processamento do feito, sanar o vício detectado, afastando a pretensa materialidade delitiva.
Essa mesma cautela também deve ser exigida do magistrado, em especial nos primeiros contatos com a inicial acusatória, seja para seu recebimento (artigo 396 do Código de Processo Penal) quanto para confirmá-lo (artigo 399 do mesmo diploma legal). Os motivos são inúmeros: 1) inobservância da legislação processual penal; 2) economia processual; 3) evitar o constrangimento ilegal do acusado; e 4) falta de justa causa.
Em suma, esse é o raciocínio a ser sustentado: em se tratando de crime de revenda de biocombustível adulterado, a não documentação da cadeia de custódia da prova acarretará na ilicitude dos elementos colhidos e o natural desentranhamento dos autos e a absolvição do acusado, nos termos do inciso II do artigo 386 do Código de Processo Penal, independentemente da corrente doutrinária adotada para solucionar eventual quebra da cadeia de custódia.
Ante à impossibilidade de se realizar uma nova perícia sobre aquele biocombustível armazenado na data dos fatos imputados, inexistiriam, sequer, indícios de materialidade delitiva. Portanto, verificado o desrespeito às normas alusivas à cadeia de custódia da prova, seria incabível a deflagração de ação penal em face do proprietário do estabelecimento comercial.
Vê-se, portanto, que o fiel cumprimento da cadeia de custódia da prova é benéfico a todos os envolvidos na persecução penal: no caso do investigado/processado, trata-se de uma garantia de ter a inequívoca ciência de estar sendo julgado de acordo com o combustível que de fato vendia, sem qualquer influência de agentes químicos externos; já para as autoridades estatais, acaba por evitar o mau uso de recursos públicos, tanto financeiros quanto humanos, evitando persecuções penais inúteis e, assim, o abarrotamento do — já abarrotado — Poder Judiciário.
Há de se reconhecer que o raciocínio sustentado encontra respaldo direto na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, qual seja: "Para a configuração do tipo penal descrito no artigo 7°, IX, da Lei nº 8.137/1990, é imprescindível a demonstração inequívoca da impropriedade do produto".
Diversas são as decisões proferidas em julgamentos desse crime que corroboram o defendido nesta análise, de modo a permitir sua aplicação, por analogia, ao delito de revenda de biocombustível adulterado.
Através do REsp 1050908/RS observa-se a insuficiência da mera presunção da improbidade do produto para a condenação do acusado, considerando-se imprescindível a realização da perícia — mesmo entendimento adotado nos autos do AgRg no AREsp 333459/SC. Já ao julgar o AgRg no Ag 14185656/RJ, decidiu-se que a configuração do delito tipificado no artigo 7º, IX, da Lei n 8.137/1990 estaria condicionada à existência de perícia e de atestado acerca da impropriedade para o consumo, de modo que, inexistindo um desses requisitos, estaria comprovada a inexistência de materialidade delitiva.
Além disso, através do julgamento do REsp 1369828/DF, ficou evidente a obrigatoriedade da realização da perícia ocorrer antes do desaparecimento natural no produto — o que, no que tange ao delito analisado, vislumbra-se quando há o esgotamento de determinada remessa do combustível exposto à venda, além do constante nas bombas, para serem destinados aos clientes. Isso apenas ressalta a impossibilidade de ser mantida em trâmite a persecução penal quando constatada a inobservância da cadeia de custódia da prova.
Por último, a partir do REsp 1575406/SP foi adotado o entendimento de que a inércia estatal em não realizar a perícia em momento cabível jamais poderia ser utilizada a favor do próprio Estado, não podendo, portanto, prejudicar o particular.
Após estas breves considerações para defender nada além do que o mero cumprimento da lei processual penal, conclui-se que o respeito à cadeia de custódia da prova é imprescindível à formação de justa causa para a apuração de suposta conduta delitiva de revenda de biocombustível adulterado, sob pena de serem impostas ao particular severas sanções legais e, principalmente, "extralegais", atentando não somente às suas garantias individuais, mas também à ordem econômica e a preservação da atividade empresarial.