Ricardo Lodi Ribeiro -
Em tempos em que o combate à corrupção é erigido por muitos como principal objetivo do nação, capaz de justificar o afastamento das garantias constitucionais do cidadão e ofuscar a necessária atenção para a escandalosa série de medidas legislativas propostas pelo governo erigido do impeachment em direção ao aumento da desigualdade social, como o congelamento dos gastos sociais, a reforma da Previdência e a reforma trabalhista, a publicação do relatório da Oxfam Brasil, A Distância Que Nos Une – Um Retrato das Desigualdades Brasileiras, nos convida à reflexão sobre as causas da histórica e persistente distância entre ricos e pobres no Brasil e da relação com a corrupção.
De acordo com o referido estudo, divulgado em setembro de 2017, apesar dos avanços dos últimos anos, a desigualdade em nosso país permaneça extrema. Ainda somos o 10º país mais desigual do mundo, tendo o terceiro pior índice Gini da América Latina e Caribe (só perdemos para Colômbia e Honduras), e o que o 1% mais rico concentra mais renda. Os seis maiores bilionários brasileiros possuem juntos a mesma riqueza do que a metade mais pobre do país.
Seria a chamada “corrupção endêmica”, derivada da nossa “herança patrimonialista”, responsável por esse quadro? Pensamos que não. Como destaca Jessé Souza, o uso político do combate da “corrupção apenas do Estado” deriva da tentativa de estabelecer uma dicotomia entre o Estado demonizado e o mercado como reino da eficiência e da virtude, a fim de escamotear a nossa desigualdade e, a partir do esvaziamento da função estatal distribuidora, justificar a manutenção da grotesca concentração de renda, em favor da elite que é a maior beneficiária da própria corrupção, por meio de financiamentos e privilégios estatais, com a conveniência e o estímulo do mercado. Nessa toada, faz todo o sentido manter livres os corruptores delatores e prender os políticos, preferencialmente os que apresentarem um viés mais distributivista.
Desse modo, ao contrário do que sugere o senso comum, o maior problema da corrupção não são os recursos que são subtraídos do erário, mas o desvio de perspectiva da atuação estatal, que, deixando de perseguir uma finalidade adequada aos anseios da maioria da população, atende aos interesses do corruptor, quase sempre situado no percentual mais elevado da pirâmide social e econômica.
Embora seja difícil mensurar o custo orçamentário da corrupção em nosso país, o economista Claudio Frischtak, doutor em Economia pela Universidade de Stanford, apresentou, a pedido da TV Globo, o cálculo, baseado em dados do Tribunal de Contas da União, de que em obras de infraestrutura, no período compreendido entre 1970 e 2015, houve um superfaturamento de R$ 100 bilhões a R$ 300 bilhões. Esse valor foi apresentado pelo programa de televisão como “o custo da corrupção”.
Se dividirmos o maior valor pelos 45 anos pesquisados, dá uma média de R$ 6,66 bilhões por ano. De fato, é um valor muito expressivo, cuja manutenção nos cofres públicos possibilitaria o incremento das políticas sociais em nosso país, uma vez que o montante supera, por exemplo, em seis vezes o gasto federal anual com a educação infantil, ou equivale a um terço do montante reservado à assistência ao idoso. Porém, é forçoso reconhecer que dentro dos valores globais anuais de despesa da União, cerca de R$ 3 trilhões no exercício de 2016, a cifra não traria maior equilíbrio às contas públicas, ou seria fonte relevante para novas necessidades públicas ou melhor cobertura para as demandas sociais. Assim, ao contrário do que habita o imaginário popular, não basta devolver o que foi “roubado” para atender às urgências da população mais pobre do país.
Por outro lado, de acordo com o citado estudo da Oxfam Brasil, o Estado brasileiro deixa de arrecadar, por ano, quase dez vezes mais, cerca de R$ 60 bilhões, com apenas três medidas fiscais que beneficiam exclusivamente os mais ricos, concentrando ainda mais a renda no topo: (i) isenção do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos; (ii) isenção de Imposto de Renda sobre lucros remetidos ao exterior; (iii) e dedução dos juros sobre capital próprio. De acordo com estudo vencedor do XX Prêmio do Tesouro Nacional – Concurso de Monografia em Finanças Públicas, apresentado por Sergio Wulff Gobetti e Rodrigo Octávio Orair, intitulado Progressividade Tributária: A Agenda Esquecida, apenas em relação à isenção de lucros e dividendos, apurados de contribuintes brasileiros em 2015, considerando uma alíquota de 15%, seria possível arrecadar R$ 43 bilhões por ano. Alertam os referidos autores que, dentre os integrantes e parceiros da OCDE, apenas o Brasil e a Estônia preveem tal isenção.
Sob uma perspectiva mais geral, o gargalo é bem maior. De acordo com o Demonstrativo de Gasto Tributário 2016, elaborado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, os valores dos incentivos fiscais, apenas relativos a tributos federais, somam anuais R$ 271 bilhões. A esse montante, devem ser acrescidos os recursos que são objeto de evasão fiscal, que totalizam, de acordo com estudo do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), a cifra de R$ 275 bilhões anuais. Logo, somando-se as parcelas relativas à renúncia de receita com aquelas referentes à evasão fiscal, chega-se à soma total de cerca de R$ 546 bilhões anuais que deixam de ser arrecadados. Ou seja, quase cem vezes o custo da corrupção acima estimado.
Não subestimamos as dificuldades práticas e políticas de combater a sonegação fiscal e de extinguir os benefícios fiscais. Aliás, à luz da justiça fiscal, vale considerar que nem todos deveriam ser extintos, pois muitos deles são justificados. Mas, por outro lado, é forçoso reconhecer que também não é simples o combate efetivo à corrupção, que seja capaz de ir além da perseguição seletiva a adversários políticos. Também não se ignora que a corrupção não se esgota no superfaturamento de obras públicas. Muitas vezes está associada até mesmo à obtenção legislativa de benefícios fiscais e à efetivação das práticas evasivas. O que se pretende com a comparação desses dados é tão somente mensurar os prejuízos ao orçamento pelos fenômenos da corrupção, da concessão de benefícios fiscais e da evasão fiscal, a fim de chamar a atenção para a pouca importância que vem sendo dada às últimas, em comparação com a primeira, o que se traduz em grave desvio de perspectiva que causa sérios prejuízos às finanças públicas nacionais.
De todo modo, se não é possível, por uma simples decisão política, acabar com a corrupção, sonegação e pôr fim a todos os benefícios fiscais, está exclusivamente na esfera de decisão do legislador estabelecer um sistema tributário menos regressivo, o que traria muito mais resultado para o equilíbrio do orçamento do que o combate politicamente seletivo da corrupção apenas do Estado. Como se viu, com a adoção de medidas como o fim da isenção dos lucros e dividendos, sejam os distribuídos para domiciliados no Brasil ou no exterior, e o da dedução dos juros sobre capital próprio, o ganho em arrecadação superaria em quase 10 vezes o “custo da corrupção”. Assim, a corrupção não é o principal ralo do dinheiro público no Brasil. É o sistema tributário regressivo que alivia os mais ricos, servindo como elemento propulsor ao aumento da desigualdade, principal problema nacional, que emperra o nosso desenvolvimento econômico e social.
No cenário brasileiro, há crises sistêmicas graves na tributação da renda sob a perspectiva da justiça fiscal, o que se revela principalmente pela timidez da progressividade, que não atinge as grandes rendas, uma vez que a alíquota mais alta já onera a classe média, que paga a mesma alíquota do que as altas rendas. Como destaca, Misabel de Abreu Machado Derzi, apesar do movimento neoliberal que reduziu a tributação dos ricos nos EUA, no Canadá e na Europa, esses países ainda apresentam um regime de progressividade muito maior do que em nosso país.
Por outro lado, se o tamanho da carga tributária em nosso país é comparável às economias de mesmo porte, sua distribuição entre as materialidades econômicas deixa claro que, no Brasil, tributamos muito mais do que nos outros sistemas o consumo e muito menos a renda. Não é difícil perceber que a tributação sobre o consumo, embora dirigida à população por inteiro, atinge mais pesadamente os mais pobres que gastam todos os seus rendimentos na aquisição de bens e serviços essenciais à sua própria sobrevivência.
Como o nosso sistema é marcado pela hipotributação do patrimônio e da renda dos ricos e pela hipertributação dos salários e do consumo dos pobres, estes acabam pagando proporcionalmente muito mais do que os aqueles. De acordo com o citado estudo da Oxfam Brasil, os 10% mais pobres no Brasil gastam 32% de sua renda em tributos, sendo que 28% dos quais na tributação indireta. Enquanto isso, os 10% mais ricos gastam somente 21% de sua renda em tributos, sendo 10% em indiretos.
Identificado o sistema tributário regressivo como elemento de exacerbação da desigualdade social, é imperioso mudá-lo, tornando-o mais progressivo. Se nada for feito pelos governos, a concentração de riqueza tende a aumentar, o que coloca em risco da democracia e o atendimento às necessidades mais basilares da população mais pobre. E o instrumento que os Estados possuem que maior efeito revela para a redistribuição de rendas é a tributação igualitária, que, ao mesmo tempo em que financia a justiça social, preserva a livre iniciativa e a livre concorrência, sendo a progressividade fruto da ponderação entre os
No entanto, aqui e alhures, não são subestimadas as dificuldades práticas de implementação dessas medidas em um sistema político dominado pelos mais ricos a partir do financiamento de campanhas eleitorais pelos extratos mais poderosos da pirâmide social. Segundo Noam Chomsky, a razão fundamental do atraso da América Latina e, portanto, do Brasil foi o fracasso de sua sociedade em controlar a concentração da riqueza e do capital pela elite e lidar com o radical problema da desigualdade: "A América Latina nunca controlou suas elites. Os setores mais ricos nunca tiveram responsabilidade para com seus países, eles fazem o que bem entendem". Todavia, o agravamento da situação social não confere outra alternativa democrática senão o enfrentamento das injustiças sociais, cuja viabilidade financeira depende de uma profunda reforma tributária igualitária.
Por isso, é preciso que o Brasil passe por um processo pelo qual todas as nações hoje desenvolvidas vivenciaram no passado e controle as suas elites, de modo a dirigir o desenvolvimento a todos. É chegada a hora de superar a cortina de fumaça que a cruzada espetaculosa do combate à corrupção do “outro” para vencer a austeridade seletiva e enfrentar o principal problema do Brasil, que é a desigualdade social. Afinal, o que nós temos hoje não é um problema de pobreza. O mundo e o Brasil nunca foram tão ricos.