Cláudio Chequer -
Em março deste ano, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro ajuizou uma ação penal em face do jornalista Ricardo Noblat, colunista do jornal O Globo, pela prática dos crimes descritos nos artigos 139 (difamação) e 140, parágrafo 3° (injúria qualificada por preconceito), combinado com o artigo 141, II e III, todos do Código Penal Brasileiro, e o delito previsto no art. 20, parágrafo 2°, da Lei n° 7.716/1989 (racismo), em concurso material (artigo 69 do Código Penal).
A denúncia do Ministério Público teve por base uma representação criminal do então ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Benedito Barbosa Gomes, pessoa que se sentiu ofendida em sua honra a partir de matéria publicada, no dia 19 de agosto de 2013, por meio da imprensa escrita (jornal O Globo) e mediante publicação em site da Internet (Blog do Noblat) hospedado no site do mesmo jornal. Para o autor da representação e para o Ministério Público, autor da ação penal, a matéria publicada poderia ser considerada como sendo de conteúdo “manifestamente racista e ofensivo à honra funcional do Ministro” (trecho extraído da denúncia do MP).
O trecho da matéria jornalística veiculado e considerado ofensivo à honra do Ministro Joaquim Barbosa pelo Ministério Público foi descrito na denúncia, apresentando-se com o seguinte teor:
“Quem o Ministro Joaquim Barbosa pensa que é? Que poderes acredita dispor só por estar sentado na cadeira de presidente do Supremo Tribunal Federal? Imagina que o país lhe será grato para sempre pelo modo como procedeu no Caso do Mensalão? Ora se foi honesto e agiu orientado unicamente por sua consciência, nada mais fez do que deveria. A maioria dos brasileiros o admira por isso. Mas é só, ministro. Em geral, admiração costuma ser um sentimento de vida curta. Apaga-se com a passagem do tempo. Mas enquanto sobrevive não autoriza ninguém a tratar mal seus semelhantes, a debochar deles, a humilhá-los, a agir como se a efêmera superioridade que o cargo lhe confere não fosse de fato efêmera. E não decorresse tão somente do cargo que ocupa por obra e graça do sistema de revezamento. Joaquim preside a mais alta corte de justiça do país porque chegara a sua hora de presidi-la. Porque antes dele outros dos atuais ministros a presidiram. E porque depois dele outros tantos a presidirão. O mandato é de dois anos. No momento em que uma estrela do mundo jurídico é nomeada ministro do tribunal superior, passa a ter suas virtudes e conhecimentos exaltados para muito além da conta. Ou do razoável. Compreensível, pois não. Quem podendo se aproximar de um juiz e conquistar-lhe a simpatia, prefere se distanciar dele? Por mais inocente que seja, quem não receia ser alvo um dia de uma falsa acusação? Ao fim e ao cabo, quem não teme o que emana da autoridade toga Joaquim faz questão de exercê-la na fronteira do autoritarismo. E por causa disso, vez por outra derrapa e ultrapassa a fronteira, provocando barulho. Não é uma questão de modos. Ou da educação que o berço lhe negou, pois não lhe negou. No caso dele, tem a ver com o entendimento jurássico de que para fazer justiça não se pode fazer qualquer concessão à afabilidade. Para entender melhor Joaquim acrescenta-se a cor – sua cor. Há negros que padecem do complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação. Joaquim é assim se lhe parece. Sua promoção a ministro do STF em nada serviu para suavizar-lhe a soberba. Pelo contrário. Joaquim foi descoberto por um caça talentos de Lula, incumbido de caçar um jurista talentoso e ...negro. Jurista é pessoa versada nas ciências jurídicas, com grande conhecimento de assuntos de direito, segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Falta a Joaquim ‘grandes conhecimentos de assuntos de direito’ atesta a opinião quase unânime de juristas de primeira linha que preferem não se identificar. Mas ele é negro. Havia poucos negros que atendessem às exigências requeridas para vestir a toga de maior prestígio. E entre eles, disparado, Joaquim era o que tinha o melhor currículo. Não entrou no STF enganado. E não se incomodou por ter entrado como entrou. Quando Lula bateu o martelo em torno do nome dele, falou meio de brincadeira, meio a sério: ‘Não vá sair por aí dizendo que deve sua promoção aos seus vastos conhecimentos. Você deve à sua cor’. Joaquim não se sentiu ofendido. Orgulha-se de sua cor. E sentia-se apto a cumprir a nova função. Não faz um tipo ao destacar-se por sua independência. Ninguém ousa cabalar seu voto.Que não perca a vida por excesso de elegância (esse perigo ele não corre) mas que também não ponha a perder tudo o que conseguiu até aqui. Julgue e deixe os outros julgarem.”
Em parte importante da denúncia, afirma a procuradora da República autora da ação penal que: “O ora denunciado, a pretexto de fazer crítica à atuação do Ministro Joaquim Barbosa no exercício de suas funções como presidente do Supremo Tribunal Federal, notadamente no caso do denominado MENSALÃO, extrapolou os limites da liberdade de expressão e manifestação do pensamento, passando à ofensa deliberada ao ofendido, eis que além de colocar em dúvida a honestidade de seu agir no referido processo, afirma que o ofendido não tem qualquer merecimento para estar na posição que ocupa, por lhe faltar conhecimentos jurídicos (...)”.
O limite da liberdade de expressão foi realmente extrapolado pelo jornalista Ricardo Noblat, nesse caso concreto?
Para a defesa de Ricardo Noblat, não. Segundo a tese defensiva, o artigo materializa apenas uma crítica jornalística, notadamente elaborada a partir de fato ocorrido em sessão de julgamento referente a uma sessão do processo conhecido como Mensalão. Explicou a defesa que, na ocasião da sessão de julgamento do dia 15 de agosto de 2013, destinada à apreciação de recurso, o Ministro Joaquim Barbosa havia acusado o Ministro Ricardo Lewandowski de fazer chicana no julgamento, acusação essa que foi notória e incontestável. Nesse passo, o acusado teria feito crítica sobre a maneira como o Ministro Joaquim Barbosa agia quando contrariado, bem como reflexão sobre o assunto, assim como outros já o fizeram, como foi o caso do Ministro Cézar Peluso. Defendeu também que era absolutamente público e notório que o então Presidente Lula queria mesmo nomear um jurista negro para o Supremo Tribunal Federal, de modo a deixar a composição da Corte mais plural e representativa da sociedade brasileira.
Para o juiz Helder Fernandes Luciano, juiz federal responsável pela análise e potencial recebimento da denúncia, no caso concreto o jornalista não violou o direito fundamental à liberdade de expressão. Não houve, no caso, crime de difamação, nem sequer injúria racial e racismo.
Em decisão com trinta laudas, o magistrado federal analisou cada uma das afirmações feitas no artigo publicado,e consideradas como criminosas pelo Ministério Público, para concluir que não houve nenhum tipo de crime, rejeitando a denúncia do MPF.
Para o juiz federal, em primeiro lugar, não houve o crime de difamação na veiculação da notícia em razão de tal crime exigir a imputação de fato determinado e ofensivo à reputação alheia, o que não ocorreu no caso concreto. Segundo o julgador, “questionar os poderes de uma autoridade pública não deve ser considerado uma afronta”. Por sua vez, “a crítica à autoridade pública, a qual tem por missão a consecução de bens comuns, isto é, destinados a todos os administrados (e jurisdicionados), tornou-se algo não somente possível, mas necessário. O exercício do cargo no Poder Judiciário não foge a essa regra. A eminente tarefa de julgar não deve estar desatrelada da atenção e de críticas (construtivas) para o bom desempenho da função. A atenção e a crítica serão maiores se maior for a responsabilidade do detentor do cargo”.
Por outro lado, também não houve injúria racial e racismo em razão de o articulista, ao afirmar que “há negros que padecem do complexo de inferioridade. Outros assumem postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação”, não se exclui outros componentes da raça negra que adotariam outros tipos de posturas diferentes dessas mencionadas.
Da mesma forma, na opinião do juiz, não houve crime de injúria racial e racismo na afirmação de que o Ministro Joaquim Barbosa teria sido escolhido em razão de sua cor, em razão de ser fato público e notório que o então Presidente Lula queria mesmo nomear um jurista negro para o STF, de modo a deixar a composição da Corte mais plural e representativa da sociedade brasileira.
O caso concreto objeto desta discussão jurídica entre o Ministério Público e o Poder Judiciário revela apenas mais um caso difícil envolvendo o tema direito fundamental à liberdade de expressão versus o direito à personalidade (que o direito à honra está inserido), assunto incrementado ainda mais pela necessidade de o Código Penal Brasileiro ser interpretado a partir de uma filtragem hermenêutica constitucional, que impõe uma leitura constitucionalizada dos crimes expressados na Parte Especial do CPB.
Se, há algum tempo, mas precisamente até o Século XVIII, predominava o entendimento firmado no sentido de que os direitos fundamentais eram absolutos e ilimitados, essa idéia, hoje, encontra-se superada. Ultrapassado esse debate, a principal discussão contemporânea se prende agora a um outro tema correlato: identificar a extensão de cada um dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República a partir da riqueza das circunstâncias do caso concreto.
No caso em análise, o Ministério Público parece ter interpretado o direito fundamental à liberdade de expressão de forma mais restrita, conferindo maior peso ao direito à personalidade, ao passo que o Poder Judiciário conferiu maior importância ao direito fundamental à liberdade de expressão e informação.
Sob a nossa perspectiva, conflitos como o descrito acima irão sempre existir e são razoáveis. É importante, entretanto, que o Direito Brasileiro consiga avançar no sentido de delinear algumas diretrizes que venham a traçar standards para tornar julgamentos como o do caso presente mais objetivo, conferindo maior segurança aos jurisdicionados.
Nesse sentido, entendemos primeiramente que o direito fundamental à liberdade de expressão precisa ser mais estudado no Brasil. Assim, entender os argumentos filosóficos que elevam a liberdade de expressão e informação ao status de direito fundamental já parece um bom início.
Para nós, a liberdade de expressão e informação foi elevada ao status de direito fundamental, ao menos, por dois fundamentos:num primeiro plano, temos de destacar a importância da liberdade de expressão para a democracia. A liberdade de expressão deve ser considerada como constituinte da democracia (como já asseverou o Tribunal Constitucional Alemão), ou seja, entre liberdade de expressão e democracia existe uma relação de interdependência de sentido, não se tendo notícia de experiência que reconheça a existência de um sem o outro.
A liberdade de expressão ainda pode ser considerada com o status de direito fundamental em razão de determinar a manutenção da balança entre a estabilidade e a mudança da sociedade. Um estado formado com base na ampla liberdade de expressão é mais forte e, portanto, está menos sujeito a convulsões sociais do que um estado autoritário, que impõe seu poder com base na repressão, no ressentimento e no medo.
Essas premissas do direito fundamental à liberdade de expressão impõem que o intérprete, ao analisar o direito fundamental à liberdade de expressão em um caso concreto capaz de revelar um autêntico conflito com outro direito fundamental, perceba-a sob duas perspectivas distintas: levando-se em consideração não apenas o direito da pessoa que emite a mensagem, mas também sob a ótica de quem recebe a mensagem que foi transmitida, assegurando ao povo o direito de saber a respeito de todos os assuntos de interesse público e impondo à mídia o dever de informar, da maneira mais ampla possível, os assuntos que envolvem esse tipo de interesse.
O direito de receber essa mensagem também se configura como merecedor de enorme atenção e proteção, especialmente a partir da análise de uma sociedade plural constituída em um estado democrático de direito.
Nesse sentido, parece-nos que os casos que envolvem processos criminais contra jornalistas em razão de críticas feitas a algum homem público deverão passar por um exame muito mais minucioso por parte dos órgãos públicos, um escrutíneo estrito (strictscrutinity) para lembrar a Era Lochner, época do economic substantive due processo of Law, para a configuração do crime ou de seu elemento subjetivo (o dolo), partindo-se do pressuposto de que a liberdade de expressão, em assuntos de interesse público, deve ser a regra, o ponto de partida.