Cezar Roberto Bitencourt -
- Considerações preliminares
A Globo, “com exclusividade”, estarreceu o país ao divulgar a “delação premiada” de Joesley Batista, da JBS, destacando, acriticamente, que o presidente da República, Michel Temer, havia endossado a compra do silêncio de Eduardo Cunha, ao afirmar “isso tem que manter, viu!”. O mais surpreendente de tudo é que, mesmo após divulgado o áudio que demonstrou que referida frase estava descontextualizada, e não correspondia a essa assertiva, referida emissora continuou insistindo em sua tese, equivocada, para não dizer falsa, martelando a imaginação de milhões de telespectadores.
Sobre esse diálogo com Joesley Batista, como um todo, concedemos uma entrevista para o jornal Zero Hora, edição de sábado/domingo, que saiu nos seguintes termos:
"É uma cilada, armada por alguém que será preso se não colaborar. Até as ações controladas devem ter limites. Eu tenho uma obra sobre flagrante preparado (algo admissível) e sobre flagrante provocado (isso é criminoso). Me parece um flagrante provocado, em que o Presidente é induzido a ouvir relatos de crimes. Entendo que o Temer não é muito atingido criminalmente, mas politicamente ficou muito mal".
Faremos, a seguir, algumas considerações sobre as circunstâncias fático-jurídicas que envolveram o presidente Temer, examinando, inclusive, a ação controlada, a prisão em flagrante e, principalmente, o possível erro em que, eventualmente, ele possa ter incorrido.
- Armadilha travestida de ação controlada ou flagrante provocado
A “armadilha” que golpeou o presidente da República não pode ser, tecnicamente, classificada como o instituto jurídico-penal denominado "ação controlada", amoldando-se melhor não ao conhecido “flagrante preparado”, mas ao que denominamos “flagrante provocado”, que é absolutamente ilegal, por ser ardiloso, fraudulento e representar uma espécie de tocaia aplicada pela autoridade investigadora. Neste, no flagrante provocado, ao contrário do que ocorre no flagrante preparado, há a atuação decisiva da autoridade pública, que cria uma situação fantasiosa com a finalidade de induzir o cidadão ou investigado a erro para fazê-lo infringir a lei penal e incriminá-lo, exatamente como ocorreu in casu. Demonstraremos essas diferenças adiante.
Por outro lado, na noite da divulgação desse fato em edição extraordinária do Jornal Nacional, o Ministério Público declarou, com ufanismo, que pela primeira vez foi utilizada a figura da “ação controlada” na operação "lava jato". As circunstâncias levam a crer, por essa manifestação do parquet, que a indigitada gravação do diálogo com o presidente Temer fez parte da dita “ação controlada”, aliás, instituto absolutamente inaplicável naquela circunstância, no mínimo, pela absoluta ausência de uma situação de flagrância criminosa, na medida em que foi criada pelo próprio interlocutor.
Se essa presunção corresponder à realidade, a situação fica muito mais complexa, pois as autoridades repressoras (polícia e Ministério Público) fizeram parte dessa “armação” para a autoridade máxima do país. Temos dificuldade em acreditar nessa hipótese, pela dignidade, honestidade, grandeza e seriedade dessas instituições; até porque, se ocorreu essa hipótese, a referida gravação é absolutamente nula e imprestável como prova, por ter sido obtida de forma ilícita. Mas, apenas para argumentar, vamos considerar que dita autogravação não foi organizada, planejada e dirigida pelas referidas autoridades. Ainda assim, teceremos algumas considerações relativamente aos institutos da “ação controlada” e do “flagrante provocado”, mesmo que ambos sejam absolutamente inaplicáveis ao caso concreto, apenas para contextualizarmos esses aspectos.
O conceito de ação controlada é dado pelo artigo 8º da Lei 12.850/13, segundo o qual consiste em "retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações". É, pode-se constatar, o mesmo conceito geral de retardamento da intervenção policial em busca do melhor momento para a produção probatória, porém, foram incluídos aqui os elementos diferenciadores da obrigação de observação e acompanhamento. Contudo, não se pode ignorar que a aplicação da dita ação controlada destina-se à hipótese de flagrante delito que, pelas finalidades indicadas, o texto legal autoriza o seu retardamento, objetivando melhor resultado com essa excepcionalidade funcional (retardo na intervenção policial).
Trata-se, claramente, de uma exceção à regra geral que determina à autoridade pública que proceda à prisão quando em situação de flagrante delito (artigo 301 do CPP). Afinal, segundo este artigo, as autoridades policiais e seus agentes têm o dever de “prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, imediatamente. Não fazê-lo pode configurar crime, como o de prevaricação, porque é seu dever de ofício agir. A partir dessa previsão legal, abre-se uma situação de permissividade que afasta a pretensão de ilicitude do tipo, afinal, o ordenamento determina uma ação e permite, sob condições, a realização do seu oposto, ou seja, a omissão. Evidentemente, ao tratar-se de um conflito de deveres, resta presente uma situação de justificação procedimental, visto que submetida aos requisitos legais estruturantes da ação controlada.
Propomo-nos, ainda que de forma concisa, traçar algumas distinções que nos parecem recomendáveis sobre a conceituação de prisão em flagrante, embora não seja disso que aqui se trate. Ocorre o flagrante preparado, que diríamos melhor, flagrante esperado, quando o agente infrator, por sua exclusiva iniciativa, concebe a ideia do crime, realiza os atos preparatórios, começa a executá-los e só não consuma seu intento porque a autoridade policial, que foi previamente avisada, intervém para impedir a consumação do delito e prendê-lo em flagrante. Constata-se que não há, nessa hipótese, a figura do chamado agente provocador. A iniciativa é espontânea e voluntária do agente. Há início da ação típica. E a presença da força policial é a “circunstância alheia à vontade do agente”, que impede a consumação. Essa modalidade de flagrante não é atingida pela Súmula 145 do STF, sendo, portanto, a conduta do agente típica, nos termos da tentativa.
Já o flagrante provocado, que para nós não passa de um crime de ensaio, tem outra estrutura e um cunho ideológico totalmente diferente. Neste, no flagrante provocado, o delinquente é impelido à prática do delito por um agente provocador (normalmente um agente policial ou alguém a seu serviço). Isso ocorre, por exemplo, quando a autoridade policial, pretendendo prender alguém, contra quem não tem provas, mas que sabe ser autor de vários crimes, provoca-o para cometer um, com a finalidade de prendê-lo em flagrante. Arma-lhe uma cilada, similar a que sofreu Michel Temer. Isso é uma representação; o agente, sem saber, está participando de uma encenação teatral. Aqui, nessa hipótese, o agente não tem qualquer possibilidade de êxito na operação, configurando-se perfeitamente o crime impossível. Constata-se a presença decisiva do agente provocador, que, a rigor, deveria ser coautor do fato delituoso. Nessa hipótese não há, portanto, situação de flagrância.
Finalmente, o flagrante forjado, que também não se confunde com o preparado e tampouco com o provocado. Naquele, os policiais “criam” provas de um crime que não existe. É um dos casos mais tristes da rotina policial e que, infelizmente, ocorre com muito mais frequência do que se imagina. A situação mais corriqueira do flagrante forjado ocorre, por exemplo, quando agentes policiais “enxertam” no bolso (ou no automóvel) de quem estão revistando substância entorpecente (ou até mesmo armas). É evidente a inexistência de crime; o que há efetivamente é o abuso de autoridade, devendo responder criminal e administrativamente o agente policial.
- A responsabilidade pela legalidade e legitimidade da prova produzida
A responsabilidade pela legalidade, legitimidade, integridade, moralidade e constitucionalidade dos meios de provas utilizadas nas investigações criminais, bem como nos processos judiciais, de um modo geral, é da autoridade que os utiliza, no caso, da Polícia Federal e do Ministério Público que os adotaram, avalizaram e validaram os meios de provas que divulgaram. Acresceram aos áudios — questionáveis, diga-se de passagem — que divulgaram o peso, conceito, respeitabilidade e autoridade de suas instituições e, agora afirma-se, que divulgaram os áudios tais como receberam, sem periciá-los, como deveriam ter feito!
É inacreditável que o Ministério Público Federal trabalhe, descuidadamente, com toda a “suposta prova” que sustenta suas demandas judiciais. É inconcebível que se adote uma postura acrítica, descriteriosa, descuidada sem se preocupar com a legitimidade e validade da prova que produz, desde que sirva aos seus interesses acusatórios. Será por essa razão que incluíram nas famosas “dez medidas contra a corrupção” a possibilidade de usar provas obtidas por meios ilícitos? Não será isso crime de abuso de autoridade?
Após o extraordinário estrago que fez à sociedade, confessa o parquet, publicamente, que não fez um pente-fino sobre a lisura, validade e legitimidade do material que adota como meio de prova, ao afirmar que o material não foi periciado, e apenas, segundo a Folha, “foi analisado de forma preliminar”. Conforme a Folha, na edição de 20 de maio de 2017, reconhece o parquet que dois técnicos limitaram-se a ouvir o autogrampo do dono do Grupo J&F. "'Não houve auxílio de equipamentos especializados na avaliação sobre a integridade dos áudios', anota o texto da Procuradoria (veja cópia abaixo)". Perícia encomendada pela Folha atestou, segundo referido periódico, que a gravação sofreu mais de 50 edições.
Diante dessa perplexidade toda, com absoluto acerto, o criminalista Antonio Carlos Mariz, defensor do presidente, destacou: “Parece que foi coisa preparada!”.
Cabe, aqui, uma pergunta que não quer calar: se o Ministério Público age com essa leviandade — se efetivamente houve ação controlada — em fatos envolvendo a autoridade máxima do país, o presidente da República, o que não deve fazer com os demais simples mortais que caem em suas garras? Parece que o Ministério Público desconhece a responsabilidade com a manutenção da cadeia de prova, especialmente daquelas de discutível legitimidade, atribuindo-a ao delator.