Damásio Evangelista de Jesus -
Existem, como é sabido, duas tendências divergentes na opinião pública ocidental a respeito do direito de civis possuírem e, eventualmente, até portarem armas de fogo para defesa pessoal. Uma corrente prioriza a liberdade individual; outra, a segurança pública.
A primeira destaca que, por mais eficiente que seja o aparelhamento policial de um país, nunca será possível a um particular ser protegido 24 horas ao dia, de modo que sempre haverá uma faixa de sua existência em que cabe a ele, e a mais ninguém, exercer o direito de defesa. A segunda pondera que há uma cultura da violência disseminada na sociedade e que a mera possibilidade de se ter e se utilizar uma arma a alimenta, devendo, por isso, ser banida.
Esses são, fundamentalmente, os dois grandes argumentos a favor e contra as armas. Nos Estados Unidos, por uma série de razões históricas, relacionadas, em última análise, com a própria colonização anglo-americana como ali ocorreu, entendem muitos que o acesso às armas é um direito individual indiscutível.
No antigo regime europeu, lembre-se, o porte de armas era privilégio da nobreza. As velhas Ordenações do reino luso – Afonsinas, Manuelinas e Filipinas – referiam-se ao uso de “armas defensivas e ofensivas” como direito exclusivo dos membros do chamado Braço Nobre do Reino. Ora, desde o começo da colonização do Novo Mundo, por força das circunstâncias e para efeitos práticos, o porte de armas foi não somente facultado, mas muitas vezes até tornado obrigatório para os plebeus, que constituíam o terceiro Estado. No caso do Brasil quinhentista e seiscentista, os impostos pagos pelos portugueses que para cá se transferiam eram, em regra, menores do que os pagos por eles em território europeu. A razão disso estava em estimular a vinda deles e o povoamento do Brasil. Mas, em contrapartida, eram obrigados – note-se isso, tratava-se de uma obrigação – a ter armas e colaborar, quando necessário, na defesa do território.
A nobreza europeia era isenta de impostos, mas portava armas e se obrigava a lutar nas guerras, pagando assim o “impôt du sang”. Na América, os plebeus pagavam bem menos impostos pecuniários ou em espécie, mas tinham, também, que pagar uma certa quota do imposto do sangue. Eram, pois, de alguma forma assimilados à nobreza europeia. Um mesmo plebeu que, na Europa, seria severamente punido se levasse uma espada à cintura, aqui a portava tranquilamente, muitas vezes acompanhada de trabucos, bacamartes e outras engenhocas bélicas que os armeiros dos séculos XVI e XVII já começavam a produzir artesanalmente. No Brasil, perdeu-se inteiramente, com o decurso dos séculos, essa correlação psicológica entre porte de arma e status de nobreza, mas nos Estados Unidos isso ainda é vivo e desperta polêmica. Para muita gente, lá, a proibição de usar armas equivale a um rebaixamento social, a uma redução à condição de tutelados do poder público, a uma condição servil. Uma capitis diminutio. Sendo, ademais, um país em que vige o sistema da common law, o fundamento jurídico do direito de um particular ter armas é muito sólido, embora existam argumentações dignas de todo o respeito em sentido contrário. Na ONU, nas reuniões do Escritório das Nações Unidas contra Crimes e Drogas (UNODC), em Viena, participei várias vezes, representando o Brasil, de discussões sobre o direito de vender e adquirir armas de fogo, tendo acompanhado exposições favoráveis e contrárias.
Concretamente, no Brasil, temos uma legislação altamente restritiva do uso de armas por parte de civis. Quando se discutiu a adoção do Estatuto do Desarmamento, manifestei-me a favor por entender que a violência é um fator cultural que se alimenta, sobretudo, com ela mesma. Em outras palavras, armas ensejam violência e violência gera violência. Esse é um raciocínio muito simples. Tão simples que até pode parecer simplório e ingênuo. E de fato o é, se não compreendermos, como sempre entendi, que a política de desarmamento deve, forçosamente, ser acompanhada por uma série de medidas políticas de outra natureza. Não basta desarmar os civis honestos e cumpridores da lei para acabar com a violência. Há, sobretudo, que desarmar os delinquentes. Há que vigiar nossas fronteiras para impedir a entrada de armas; há que aparelhar melhor nosso sistema policial; há que agilizar e melhorar nosso Judiciário. E, sobretudo, e acima de tudo, há que investir seriamente em EDUCAÇÃO. Junto ao Estatuto do Desarmamento deveria também ter entrado em vigor um estatuto visando a melhorar o sistema policial do país, no sentido de nos dar maior proteção. Desarmamento civil só se legitima com segurança pública. Temos o primeiro; não existe, porém, a segunda.
Precisamos, a longo prazo, de melhor EDUCAÇÃO; de imediato, mais POLÍCIA.
Aplicou-se, com rigor extremado, o Estatuto do Desarmamento. Houve, mesmo, empenho político intenso, no sentido de torná-lo ainda mais severo, com a proibição até mesmo da venda legal de armas. Um plebiscito nacional mostrou que, contrariamente ao esperado em muitos ambientes políticos, a opinião pública não desejava essa radicalização e insistia em que, pelo menos no recanto dos lares, devia prevalecer o direito de auto-defesa.
Hoje enfrentamos uma situação insustentável. Não somos mais donos de nossos bens. “Nossos”? Na verdade, creio que são nossos apenas no papel. Na prática, somente usufruímos deles de maneira relativa. Dentro e fora de casa, eles, os bandidos, nos permitem exercer nossos direitos enquanto querem.
Pessoalmente, me alegraria um mundo sem armas, se tal fosse possível. Sendo isso utópico, prefiro um mundo com o menor número de armas possível. Mas julgo que, nas atuais circunstâncias, já estamos perdendo a hora. A criminalidade cresceu tanto que, reduzi-la, já é uma tarefa hercúlea.
O Estatuto do Desarmamento já restringe muitíssimo o acesso de civis a armas de fogo. Já estabelece restrições demais, a ponto de, na prática, ser quase impossível, para a maior parte das pessoas, adquirir uma arma legalmente. Muito mais fácil e barato é adquirir, extra-legalmente, uma arma contrabandeada ou roubada. Paradoxo: tornar legal a posse de uma arma de fogo é extraordinariamente difícil; não há fiscalização suficiente, porém, para coibir o comércio ilegal.
Por que não aproveitar o calor da hora para se reestudar – com seriedade e real vontade política – o sistema educacional?
Não seria essa uma bandeira muito mais adequada para a PÁTRIA EDUCADORA que deseja semear para o futuro?