Por Celso Luiz Limongi -
A função do juiz criminal não é a de um vingador implacável. Cumpre-lhe julgar com imparcialidade, neutralidade e serenidade a ação penal condenatória posta pelo Ministério Público.
Sabe-se que o Direito Penal e o Direito Processual Penal visam à proteção de cada membro da sociedade civil. O primeiro, ao descrever condutas tidas como criminosas, previne, por escrito, o indivíduo, de modo a não surpreendê-lo. E o Direito Processual Penal, exigindo, aliás, em consonância com a Constituição Federal, artigo 5º, incisos LIV e LV, o cumprimento rigoroso do devido processo legal, protege, igualmente, o acusado, garantindo-lhe julgamento pelo menos com ampla defesa, perante juiz imparcial.
Em outras palavras, ao juiz criminal a Constituição Federal e o Código de Processo Penal atribuem a função de coarctar o exercício arbitrário do jus puniendi pelo Estado-administração, representado pelo Ministério Público, titular da ação penal.
Esse é a magna função do magistrado criminal: segurar a volúpia acusatória do promotor de Justiça, aparando excessos e dando ao caso a solução justa e adequada.
Juiz que pretenda ser justo, mas teme represália do promotor e dos advogados; juiz que queira fazer justiça, porém fica receoso de contrariar o tribunal, a Corregedoria ou o CNJ; juiz que saiba ser necessário aplicar princípios favoráveis ao réu no caso concreto, mas não enfrenta o clamor público ou tem medo das críticas tantas vezes perversas e improcedentes da imprensa, é melhor exercer outra profissão.
Fico espantado, com todas as vênias do Tribunal de Justiça, que amo intransitivamente, e por isso dói-me com mais intensidade, em ver que o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, em face de representação assinada por 23 promotores, acusando-o de conceder, com extrema liberalidade, a liberdade para presos...
Grandes juízes e desembargadores passaram pelo Tribunal de Justiça paulista e mostraram inconformismo a posições jurisprudenciais dominantes naquela corte de Justiça, pelo que, com inteligência, decidiam de modo contrário, conseguindo, por inúmeras vezes, modificar a posição dominante. Isso, sem embargo de serem chamados, por alguns, pejorativamente, de “novidadeiros”.
Claro que tribunais superiores recebem da Constituição Federal competência para uniformizar a jurisprudência no país, função essa denominada de função nomofilácica. E, assim, os juízes, os tribunais de Justiça, os tribunais regionais federais devem obedecer às súmulas emanadas dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal.
Isso não significa que o juiz não possa conceder ordens de Habeas Corpus, ou expedir decreto de absolvição, se a matéria não foi objeto de precedentes ou de súmulas dos tribunais superiores e do Supremo.
E no caso concreto, se houver singularidades que nem sequer foram cogitadas pelo legislador ou pelas súmulas, ou, ainda, justamente pelas peculiaridades do caso, claro que caberá ao juiz até contrariar o conteúdo da lei (não da norma), dando a esta interpretação de acordo com os significados da Constituição Federal, ou mesmo descumprir a súmula, desde que com fundamentação adequada e razoável.
Não se desprezem, ainda, as dificuldades para avaliar verdades: o que hoje é uma grande verdade, amanhã poderá ser veementemente repelida, e vice-versa. Quem poderia imaginar que o Supremo Tribunal Federal pensasse em descriminalizar o aborto feito até a 12ª semana de gestação ou que fosse autorizado o uso de maconha para tratamento médico? Quem há cerca de 15 anos não ficaria surpreso e boquiaberto com o casamento oficial entre pessoas do mesmo sexo? Aliás, no último dia 15, o gabinete de ministros da Alemanha aprovou uma terceira opção de gênero para identificação oficial, atendendo a determinação da Corte Constitucional Federal, de modo que os alemães podem identificar-se em documentos como homem, mulher ou diverso. Mas é preciso que a decisão do gabinete passe pelo Parlamento. Isto é, o mundo muda, os costumes se modificam, ao passo que a lei é sempre óbice às transformações sociais.
A violência, no Brasil, chegou a níveis assustadores e intoleráveis. Reconhece-se que tal estado de coisas exige a mais rápida e eficaz providência, sem uso de paliativos e de procedimentos demagógicos, muito comuns por parte dos Poderes Legislativo e Executivo. Mas também é assustador outro aspecto: a população carcerária ultrapassou a casa dos 700 mil presos, a terceira do mundo, agora superando a da Rússia. E, como é mais do que sabido, o ambiente deletério das prisões contribui não para educar o preso, mas para aperfeiçoá-lo e especializá-lo na prática da delinquência. Todavia, parece não interessar a ninguém esta pura realidade, a de que as cadeias e presídios se transformaram em escolas de aperfeiçoamento para a prática de crimes da mais variada natureza. Por sinal, se prisão inibisse a prática de crimes e fosse a solução para pôr fim à criminalidade, o nível desta já estaria baixíssimo, diante de tão significativo e crescente número de presidiários.
Eis, pois, o dilema: a necessidade de prender versus o direito de liberdade. Ao determinar a prisão preventiva, o juiz deverá aferir com muita prudência a necessidade da prisão, porquanto a grande regra é a liberdade, que só deverá ser violada após decisão judicial trânsitada em julgado.
Em suma, diferentemente do que dizia Montesquieu, para quem o juiz não seria senão a boca da lei ou nada mais do que um ser inanimado, proibido de interpretar a lei, é preciso compreender que, como tantas vezes disse o ministro Eros Grau, a função do juiz é interpretar e aplicar a lei, tudo em uma só operação.
A América Latina está e sempre esteve repleta de exemplos antidemocráticos, em que o caudilho enfeixa nas mãos os três poderes políticos, e o Judiciário fica completamente subjugado, decidindo na forma que os poderosos desejam.
Graças a Deus que existem, no Brasil, juízes independentes, verdadeiramente ciosos da magnitude de suas funções, como o são o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho e, de modo geral, os juízes brasileiros, comprometidos com os ideais de justiça.