A FUNDAMENTAÇÃO MÁGICA NÃO SE SUSTENTA: O CASO DA RECLAMAÇÃO 31.410

Por Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa -  

A Súmula Vinculante 11 proíbe o uso de algemas: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Para afastar a aplicação da súmula vinculante, os magistrados devem fundamentar de modo concreto os motivos adequados para tanto. Entretanto, acostumados a manter acusados algemados, em geral, há fundamentação já em autotexto, argumentação genérica, desprovida de aspectos concretos, que serve imaginariamente para todos os casos.

No caso enfrentado pelo ministro Marco Aurélio, na Reclamação 31.410-SP, formulado pela advogada Sandra Fonseca, constou na decisão impugnada:

“Tal medida é justificada pela necessidade de manutenção da segurança das pessoas participantes do ato processual e visa a evitar fugas, inclusive já ocorridas neste Fórum, a par da sempre desproporcionalidade entre número de presos e número efetivo de policiais da escolta. Foi salientado ainda que a retirada das algemas seria incompatível com a segurança decorrente da manutenção da custódia cautelar. Registra-se a presença de 06 policiais militares e 02 agentes penitenciários”. 

Aceitar a validade de uma argumentação “linear e desvinculada da situação concreta”, como sublinhado pelo ministro Marco Aurélio, é tornar letra morta a SV 11. Tanto assim que constou na decisão da reclamação:

“A menção ao número de réus e a suposição de evasão ou, até mesmo, de prejuízo à higidez física dos presentes na audiência são argumentos insuficientes a justificarem o uso do artefato. O emprego das algemas pressupõe haja resistência ou fundado receio, devidamente motivados pelas circunstâncias concretas, a evidenciar risco de fuga ou perigo à integridade física do envolvido ou de outras pessoas, não verificados na espécie. O prejuízo mostra-se evidente ante as peculiaridades do julgamento por corpo de jurados, no que prescindível a fundamentação da convicção formada”.

A decisão do STF é fundamental ainda porque ela sinaliza uma recusa às decisões formulárias, genéricas, que constituem fundamentação em sentido formal, mas não substancial, na medida em que, na realidade, nada "fundamentam" no caso concreto e à luz de suas especialidades. A decisão que determina a manutenção das algemas pode comprometer o julgamento (pois estamos diante de jurados leigos), exigindo, portanto, uma fundamentação de boa qualidade empírica, calcada em um fundado temor, jamais fruto de ilações ou criações fantasmagóricas de fuga (ou de qualquer dos outros perigos). A qualidade da decisão e a concretude dos elementos que a sustentam devem guardar proporcionalidade com o elevadíssimo custo da injustiça que essa "estética" pode efetivamente gerar neste julgamento.

A situação se potencializa porque se tratava de julgamento perante o tribunal do júri, em que as algemas são capazes de impactar negativamente na formação da convicção dos jurados, em regra, alheios às discussões jurídicas, que recebem para julgamento um acusado que não só responde por um crime doloso contra a vida, mas está perante os julgadores populares, fortemente escoltado e algemado, fazendo incidir o viés confirmatório da culpa. 

O julgamento é fortemente influenciado, assim, por fatores estranhos à conduta objeto do julgamento. Trata-se de um nudge acusatório incompatível com o fair play, consoante sublinhei com Bianca Bez Goulart (aqui). Não se pode desprezar o peso que a "estética" do réu algemado vai causar no ritual judiciário e na (infelizmente íntima e imotivada) convicção do jurado leigo. É a visão de um culpado. Fica muito difícil, para a defesa, desconstruir essa imagem, principalmente se levarmos em conta o "efeito primazia". 

Como já explicamos em outra coluna, em coautoria com Ruiz Ritter (aqui), "as informações posteriores a respeito de uma pessoa, em geral, são consideradas no contexto da informação inicial recebida, sendo esta, então, a responsável pelo direcionamento da cognição formada a respeito da respectiva pessoa e pelo comportamento que se tem para com ela, podendo-se reconhecer, com Freedman, Carlsmith e Sears, que 'as primeiras impressões são não só o começo da interação social mas também as suas principais determinantes'. As causas para esse fenômeno são atribuídas tanto à necessidade de se manter a coerência entre as informações recebidas, quanto ao nível de atenção dado para as informações, que tende a diminuir substancialmente quando já se tem um julgamento formado, fruto de uma primeira impressão. A compreensão dessa problemática nos remete a diversas situações no processo penal, como a presente. É imensurável o prejuízo cognitivo gerado pelo fato de um acusado entrar no salão do júri algemado (e pior se assim permanecer)". 

Por isso, o resultado foi a anulação do julgamento, com prejuízos econômicos, de credibilidade e tudo o mais que implica, justamente porque não se fez a adequada motivação. É, inclusive, uma das funções primordiais do STF: comunicar o standard de legalidade. Ainda que se tenha que pagar, no caso concreto, com o alto custo da anulação de um julgamento, mas isso se justifica pela dimensão simbólica, pela "comunicação" de um nível de exigência de legalidade e efetividade de direitos fundamentais, para evitar a repetição desse tipo de ilegalidade. Assim é que a superação de mecanismos mágicos de aparente fundamentação é uma tarefa cotidiana justamente porque se pode restringir direitos em democracia desde que com motivação adequada. Fundamentação mágica/genérica não se presta a isso.

 

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