A Inversão Da Prova No Pedido Cautelar De Apreensão De Bens

Luis Alberto Safraider

            Seguirei o modelo de exposição
que foi proposto, ou seja, farei um painel, um quadro, um panorama da inversão
do ônus da prova na apreensão de bens e valores e em outras medidas
assecuratórias permitidas pela nova lei de tóxicos. Com isto explico que não
entrarei em polêmicas teóricas. Para tanto dividirei a apresentação em três
tópicos:

 

a)    O primeiro diz
respeito à legalidade da inversão do ônus da prova;

b)    O segundo diz
respeito à diferença entre a apreensão de instrumentos utilizados para a
prática do crime e a apreensão de coisas obtidas por meio criminosos bem como o
seqüestro de produtos do crime ou proveito auferido com sua prática;

c)    Por fim, a título de
conclusão, sustentarei que incide a inversão do ônus da prova tanto sobre os
bens apreendidos utilizados para a prática de crimes tipificados pela lei de
tóxicos, quanto sobre os obtidos por esse meio criminoso ou auferidos com a sua
prática, produtos de apreensão ou seqüestro judicial. A minha opinião é que
dada a dificuldade dos juizes entenderem esta situação, seria aconselhável a
iniciação do procedimento de venda dos bens apreendidos e seqüestrados
juntamente com a denúncia para forçar uma decisão e eventual recurso.

 

 

1-    A legalidade da
inversão do ônus da prova

 

            É comum vermos trabalhos
publicados em nome de um pretenso direito penal liberal sustentando que é
odiosa a inversão do ônus da prova posta pelo art. 60, da Lei 11.343/2006,
porque ofende o princípio do estado de inocência. No entanto, em nenhum desses
trabalhos encontrei descritas as conseqüências da aplicação do princípio do
estado de inocência. Simplesmente se alega o princípio como se não fosse
possível nenhuma exceção a ele.

 

            A história dos princípios
demonstra duas coisas: primeiro que eles são construções jurídicas e portanto
não são princípios ou fundamento de nada. Segundo, que a conseqüência disso é
que a função deles não é alicerçar externamente construções jurídicas,
construir democracia, ou manter a paz social, mas possibilitar e legitimar as
exceções. Assim, os princípios da igualdade e da liberdade, dos quais é
corolário o princípio do estado de inocência – e aqui já vemos que o tal
princípio não é princípio de nada – são distinções que possibilitaram a
inclusão de todas as pessoas na lei bem como a partir daí excepcionar a
igualdade e a liberdade: todos são iguais, mas as mulheres não votam; os negros
continuaram escravos; quem tem curso superior tem prisão diferenciada,
determinadas autoridades só podem ser processadas em determinadas instâncias, etc,
e tudo legitimado pelo princípio da igualdade. Todos tem direito à liberdade:
mas pobres de países pobres não podem morar em países ricos; é possível a
prisão cautelar, etc.

 

            Se todos são iguais em direitos e
deveres e tem a sua liberdade garantida, foi normal afirmar que todos são
inocentes até prova em contrário. A prova em contrário só é reconhecida como
tal após uma sentença transitada em julgado. E as legitimações das exceções já
começam aqui. Por exemplo:

 

a)    O estado de inocência
só é garantido até o trânsito em julgado da sentença condenatória pela
instância de segundo grau, porque se houver recurso especial ou extraordinário
o efeito é só devolutivo. E contra isto quase ninguém reclama.

b)    O estado de inocência
é garantido até que seja necessária a prisão cautelar. Quanto a isto também não
há a menor dúvida.

c)    O estado de inocência
não vale para os crimes de perigo abstrato, para os quais, ninguém menos que
Eugênio Raúl Zaffaroni[1]
diz que há inversão do ônus da prova, e assim por diante.

 

            Isto nos faz ver que o princípio
do estado de inocência generaliza um estado pessoal, e foi criado para permitir
exceções. No entanto, agora as exceções precisam obedecer a determinados
critérios que devem estar vinculados ao princípio da proporcionalidade, que,
por sua vez, foi criado justamente para permitir a compatibilidade entre
princípios, a despeito de que em certas ocasiões um prepondere sobre o outro.
Estes critérios quase nunca vêm especificados por quem utiliza o estado de
inocência no comentário de leis específicas, passando a falsa impressão que ele
se basta por si, ou, de outro modo, não se submete à proporcionalidade.

 

            Assim, é óbvio que a adoção de
medidas cautelares no processo penal é compatível com a aplicação da presunção
de inocência, assim como a inversão da prova. O critérios podem ser tomados de
vários pontos de vista. Para o Tribunal Constitucional Espanhol os critérios
são:

 

a)    Qualquer medida
restritiva deve ter apoio em resolução do direito;

b)    Qualquer medida
restritiva deve ter por base um juízo de racionalidade acerca da finalidade
perseguida e as circunstâncias concorrentes; e

c)    Qualquer medida
restritiva não pode resultar desproporcionada[2].

 

            Neste aspecto: primeiro, nós
temos uma lei e é ela que determina a inversão do ônus da prova; segundo, a finalidade
perseguida é impedir o enriquecimento ilícito, principalmente aquele oriundo do
comércio ilícito de drogas, e nisto não há nenhuma irracionalidade; por fim,
dadas as dificuldades práticas para a comprovação da origem dos bens de pessoas
ligadas ao tráfico, é proporcional a inversão do ônus da prova, porque basta ao
acusado a apresentação do seu imposto de renda, por exemplo, para comprovar a
licitude de sua propriedade.

 

            No Brasil são poucos os trabalhos
científicos sobre os corolários do princípio da inocência. Antônio Magalhães
Gomes Filho diz que ele deve servir de parâmetro e pressuposto para todas as
atividades estatais que digam respeito à repressão criminal3. Luiz
Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho vincula-o ao reforço da ampla defesa,
ao princípio in dubio pro reo, e a que as regras restritivas de
liberdades sejam interpretadas restritivamente[3].
Especificamente quanto ao critério para restrição da inversão do ônus da prova
não há nada. Quanto a jurisprudência, como diz Fauzi Hassan Choukr[4]
em pesquisa por ele realizada a respeito do princípio do estado de inocência,
“os Tribunais ainda têm certa timidez na extração das conseqüências máximas de
tal princípio”.

 

            Concluindo este ponto, parece-me
racional afirmar que não há nada que impeça o legislador de trabalhar com a
inversão do ônus da prova, desde que sua decisão obedeça a critérios de
proporcionalidade. Portanto, a inversão do ônus da prova no caso que estamos
tratando é legal.

 

2-    A apreensão de
objetos utilizados para o cometimento do crime e a apreensão e seqüestro de
bens obtidos por meio criminoso ou como proveito do crime

 

            No que diz respeito à Lei de
Tóxicos, são possíveis dois tipos de apreensão:

 

a)    A apreensão de
instrumentos utilizados na prática do crime ou destinados a fim delituoso; a
apreensão de objetos necessários à prova da infração e também a apreensão de
coisas obtidas por meios criminosos. Este tipo é regulado pelo art. 240 e ss.
do CPP.

 

b)    Em segundo lugar, é
possível a busca e apreensão bem como o seqüestro de bens móveis e imóveis ou
valores consistentes em produtos dos crimes previstos na Lei de Tóxicos, ou que
constituam proveito auferido com sua prática. Este tipo é regulado pela Lei de
Tóxicos, com o rito dos arts. 125 a 144, do CPP.

 

            A apreensão descrita em primeiro
lugar é feita pelo Delegado de Polícia no inquérito. Já a busca e apreensão bem
como o seqüestro descritos em segundo lugar devem ser feitos através de pedido
judicial, obedecidos os pressupostos das ações cautelares, ou seja, o fumus
boni juris
e o periculum in mora, além do requisito dos indícios
suficientes da proveniência ilícita dos bens (art. 126, do CPP).

 

            O problema aqui é saber se a
inversão da prova se refere aos produtos apreendidos no inquérito ou só os
obtidos depois, via judicial. Nós fizemos duas experiências frustradas na minha
promotoria. Nas duas pedimos o seqüestro de veículos apreendidos, que não
estavam ligados tanto ao tráfico – seria muito difícil conseguir a decretação
de sua perda -, mas como bens comprados com o dinheiro da droga. Um deles um
juiz mandou “engavetar”. No outro, o juiz disse que o veículo já estava
apreendido e, portanto, não havia necessidade do seqüestro. Brigamos hoje pela
perda de um veículo registrado em nome do réu de tráfico de entorpecentes, sob
o argumento que o Ministério Público não comprovou sua vinculação com o crime
e, portanto, deve ser liberado.

 

3-    A inversão do ônus da
prova atinge todos os bens apreendidos e seqüestrados

 

            O art. 63, da Lei 11.343/2006 é
claro quando diz que o juiz decidirá na sentença sobre todos os bens
apreendidos, seqüestrados ou declarados indisponíveis. Assim, tanto faz se se
tratam de bens utilizados para a prática da infração ou bens auferidos como
proveito da infração, apreendidos pelo Delegado, ou por decisão judicial, o
ônus de provar a licitude é do acusado. É comum a apreensão de telefones
celulares em “bocas de fumos”, sob a afirmação de são utilizados para a venda
de droga, assim como também é comum a apreensão de aparelhos de som e outros
aparelhos eletroeletrônicos encontrados em “bocas” sob a alegação de há vários
deles no local, não há nota fiscal e por isto há indícios de que são furtados e
foram trocados por droga. Acaba não se demonstrando nem a venda por telefone
celular, nem a receptação. O que se faz com estas coisas? A única solução é a
devolução para o réu. Isto acontece muito freqüentemente com veículos
apreendidos e que estão normalmente em nome de outras pessoas, que depois pedem
a devolução, ou do próprio réu, que alega que o veículo não pode ser declarado
perdido por falta de justificativa legal.

 

            O problema aqui é saber se a
inversão do ônus da prova se estende aos bens apreendidos pelo Delegado e que
dizem respeito à prova do crime, ou se restringe a produtos de apreensão e
seqüestro judicial.

 

            Parece que o legislador, ao
tratar dos bens apreendidos, autorizando sua utilização por órgãos da
segurança, determinando o certificado provisório dos veículos cedidos a estas
entidades em seus próprios nomes, determinando o local onde ficarão depositados
os bens apreendidos e seqüestrados, determinando por fim que o juiz deve
decretar o confisco tanto dos bens apreendidos pela autoridade policial, quanto
os por via judicial, unificou o procedimento referente ao tratamento dos bens
apreendidos e seqüestrados bem como o tratamento a ser dado a eles, ou seja, a
inversão do ônus da prova. De outro modo, não teria sentido a autorização para
utilização de veículos por órgãos oficiais, a autorização da venda antecipada
de outros bens apreendidos ou seqüestrados, enfim, que já antes da sentença
final se disponha acerca dos bens apreendidos e seqüestrados, leiloando-os,
deixando tão somente para após a decisão final, em caso da decretação de perda,
a sacramentação do que se fará com os veículos e a remessa dos bens e valores
ao SENAD.

 

            O problema continua sendo chamar
a atenção dos juízes para esta interpretação, frente à visão simplista da
aplicação do princípio do estado de inocência com que somos massacrados pelos
chamados liberais do direito. De outro lado, é muito mais cômodo citar
determinados autores famosos, que utilizam mal o princípio do estado da
inocência, para não decidir, e também é muito mais fácil não se referir a bens
apreendidos e seqüestrados na sentença de mérito criminal, procrastinando a
decisão neste ponto ou remetendo simplesmente as partes à via cível.

 

            Note-se que o art. 4º e seu § 2º
c/c o art. 7º, I, da Lei 9.613/1998 (Lavagem de Dinheiro) fala em inversão da
prova sobre a apreensão e seqüestro e quanto a ela não há reclamação. Além
disso, a Lei sobre Lavagem de Dinheiro trata de bens apreendidos em crimes de
tráfico de entorpecentes e não há motivo para tratamento diferente na Lei de
Tóxicos, ainda mais que a inversão do ônus da prova é comum às duas.

 

 

4-    Conclusão

 

            Tratados os três problemas, gostaria
de deixar uma sugestão para discussão, que é a necessidade do Ministério
Público obedecer ao disposto pelo art. 62, §§ 3º e 4º, da Lei 11.343/2006, ou
seja, providenciar a alienação cautelar dos bens apreendidos e seqüestrados e
que não foram objeto de colocação sob custódia das agências de segurança. Acho
que com isto obrigaríamos os juízes a se posicionarem sob a inversão do ônus da
prova, forçando a criação de discussão e, enfim, teríamos uma expectativa
normativa mais ou menos generalizada para esses casos, o que até agora não
existe.

 

            Para análise dos colegas, deixo
duas sugestões:

 

PRIMEIRA
SUGESTÃO

 

            A
inversão do ônus da prova determinada pelo artigo 60, da Lei 11.343/2006 não
ofende o princípio do estado de inocência porque é racional acerca da
finalidade perseguida e porque é proporcional. A racionalidade acerca da
finalidade está em impedir o enriquecimento ilícito e a prática da lavagem de
dinheiro oriundos do tráfico de drogas. A proporcionalidade está em que é fácil
comprovar a licitude de um patrimônio, enquanto é muito difícil comprovar a
ilicitude, mesmo que haja uma condenação por tráfico e o patrimônio do
condenado não seja condizente com sua situação econômica.

 

SEGUNDA
SUGESTÃO

 

            O Ministério Público deve
obedecer o disposto pelo art. 62, §§ 3º e 4º, da Lei 11.343/2006, obrigando,
deste modo, o Poder Judiciário a se posicionar sobre a licitude da inversão do
ônus da prova tanto para aqueles bens apreendidos no inquérito policial pelo
Delegado de Polícia, quanto para aqueles bens apreendidos e seqüestrados por
via judicial.



[1]
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro. Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 1.999, pp. 560/562.

[2] V. NAVARRETE, Antonio Maria Lorca. El Processo Penal de la Ley de
Enjuciamiento Criminal. Madrid: Editorial Dykinson, 1.997, p. 119.

[3]
O Processo Penal em face da Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1.998, pp. 93/103.

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