A Lei da palmada – Aonde vamos com isto?

O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de tevê. 

 

Com a argúcia e o sarcasmo que lhe era habitual, JOÃO UBALDO RIBEIRO inicia a crônica intitulada “o correto uso do papel higiênico”, infelizmente a sua derradeira publicação, poucos dias antes de sua morte. O cidadão do mundo de Itaparica nos alerta pelas entrelinhas, sobre as medidas legais que surgem para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais.

 

Esse é justamente o dilema ético e político que envolve a recente lei n. 13.010/14, já notoriamente popularizada como a lei da palmada. Impende verificar não apenas sob o prisma jurídico se há uma compatibilização do novo regramento com a ordem constitucional, porém e, por que não, um julgamento moral sobre qual é a maneira certa ou errada do Estado e da sociedade dialogarem com a privacidade da família.

 

A aparente motivação da Lei n. 13.010/14

 

A Lei 13.010/14 - conhecida como a Lei da palmada - altera a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.

 

De acordo com o parágrafo único do novo art. 18-A do ECA, considera-se: I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize.

 

As sanções aplicáveis aos autores dos ilícitos consubstanciados em castigos físicos e tratamento cruel ou degradante não são aplicam apenas aos genitores, mas também aos integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes.

 

Especificamente no que concerne ao direito civil, o inciso I do art. 1638 do Código Civil prevê a perda por sentença do poder familiar do genitor que “castigar imoderadamente o filho”. Cuida-se de um ilícito caducificante, pois a supressão da autoridade parental será a consequência legal ao comportamento antijurídico de um dos pais. Contudo, a expressão castigar imoderadamente é um conceito jurídico indeterminado que não condiz com a doutrina da proteção integral.

 

Com efeito, o dever de cuidado inserto no artigo 227 da Constituição Federal determina que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

 

A parte final do referido dispositivo constitucional é decisiva no sentido de afirmar que qualquer forma de violência, crueldade e opressão será qualificada como ilícito.

 

Para aqueles que defendem o conteúdo e a motivação da nova lei, o mandamento constitucional estaria até então submetido a uma norma subalterna que mitigava a sua eficácia, contida pela discricionariedade judicial da interpretação do termo “imoderadamente”. Quer dizer, se a Constituição efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para o combate dos ilícitos familistas, era necessária a edição de uma norma que concedesse proteção suficiente aos bens jurídicos destacados pelo mencionado art. 227.

 

Poder-se-ia ainda asseverar que, ao contrário do direito penal – que atuará nos ilícitos de maior gravidade -, o direito civil é a primeira ratio, a mais imediata das redes sancionatórias do aparato estatal, e o mínimo que dele se espera é que tutele efetivamente os seres humanos vulneráveis em flagrante posição de assimetria nas relações familiares. Afinal, é no âmbito da família que se realiza a internalização da lei e a profilaxia da violência, o que no futuro impactará em sua redução em toda a sociedade.

 

Em síntese: Antes da vigência da Lei n. 13.010/14 vivenciamos o sistema do “tudo ou nada” em matéria de violência parental. Na concretude de cada caso haviam duas opções: ou se considerava o castigo como imoderado e se suprimia a autoridade parental, ou então o castigo se qualificava como moderado e nada acontecia aos genitores ou outras pessoas que titularizassem o poder de família.

 

O paradoxo se instalava. Sendo o castigo reputado como moderado, o fato praticado pelo genitor era considerado um ato lícito, insuscetível de sancionamento. Então, o mérito da Lei n. 13.010/14 seria o de atuar na zona cinzenta que havia no perímetro entre o rigor da perda judicial da autoridade parental e, no outro extremo, o silêncio e a omissão diante de ações de natureza disciplinar e punitiva que não alcançassem o extremo do ilícito penal de lesões corporais. As sanções estabelecidas pela nova lei às condutas por ela descritas como ilícitas, possuem nítido caráter preventivo, pois objetivam impedir a reiteração dos comportamentos antijurídicos através de medidas capazes de restabelecer a fisiológica convivência familiar, antes que os ilícitos se convertam em danos físicos ou psíquicos aos filhos.

 

Conforme o art. 2º da Lei n. 13.010/14, o art. 13 do ECA passa a vigorar com as seguinte alteração: “Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

 

Em complemento, expõe o art. 1. da lei em comento ao instituir o novo art. 18-B da Lei n. 8.069/90, que consumado o castigo físico ou o tratamento cruel, o conselho tutelar poderá aplicar as seguintes medidas: I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III- encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; V - advertência.

 

Por tudo que expusemos até agora, as novas sanções representariam um compromisso social de intolerância perante qualquer forma de violência, sob todas as formas. O cunho pedagógico estaria presente pela imposição de medidas que estimulam a entidade familiar a um compromisso com uma ordem substancial de cuidado e a exata compreensão do poder de família como um poder-dever, funcionalizado à proteção e promoção das situações existenciais da criança e do adolescente.

 

A real motivação da Lei n. 13.010/14

A par de todas as nobres intenções do legislador, pairam alguns aspectos preocupantes quanto a constitucionalidade da Lei n. 13.010/14. Ninguém se coloca contra a carga emocional de uma norma que apela ao fim da violência contra crianças e adolescentes. É uma mensagem que evoca os nossos sentimentos mais nobres. Discute-se, todavia, o seu próprio conteúdo.

 

É fundamental concretizar o imperativo do art. 227 da Constituição Federal. Uma das missões civilizatórias inseridas nas promessas da modernidade foi a de impor ao Estado, a sociedade e a família a obrigação de colocar nossas crianças e adolescentes a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Relativamente ao Estado e a sociedade, podemos ilustrar o cumprimento da obrigação constitucional com normas e políticas públicas que combatam a exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como o emprego de mão de obra infantil.

 

Mas a norma também se dirige à família.

 

Não nos cumpre nesse espaço questionar sob o ângulo pedagógico a potencialidade da eficácia de uma norma que objetiva coibir castigos domésticos. Aliás, não há causalidade evidente entre uma certa forma de educação e seus resultados concretos. No crivo psicanalítico há uma grande cisão entre aqueles que acreditam no efeito deletério do “puxão de orelhas” e outros que debitam à sua falta muito dos males que afligem os irresponsáveis adultos dos tempos atuais.

 

Questionamos enfaticamente a própria constitucionalidade da Lei n. 13.010/14.

 

A Constituição Federal legitimamente pretende estimular o cuidado pela educação, mas em nenhum instante desejou suprimir essa função da família e delegá-la ao Estado. Pelo contrário, estatui o art. 226 da Lei Magna que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

 

A referida proteção estatal à família felizmente se materializou nos últimos 26 anos em um conjunto de normas que tutelam a privacidade da entidade familiar, a intimidade de cada qual de seus membros e a instrumentalização das entidades familiares ao desenvolvimento pleno da liberdade de cada qual dos seus membros.

 

Seja desvinculando a origem da família do monopólio matrimonial; libertando o término das relações afetivas do jugo da culpa; desligando a entidade familiar da opção sexual dos seus membros, ou mesmo pela edição de um conjunto de leis (não raramente antecipadas pelos tribunais) voltadas a emancipação de cada grupo familiar, os poderes públicos progressivamente afirmaram a família como local prioritário para a solidificação da dignidade de seus personagens.

 

A proteção da família é uma conquista civilizatória. Em uma sociedade plural e extremamente heterogênea, caberá a cada entidade familiar direcionar a formação de seus filhos, dentro de suas idiossincrasias e padrões culturais. Na contramão desses avanços, é evidente que o poder público passa a intervir excessivamente na vida privada familiar ao prescrever um modelo único de formação de filhos, neutralizando uma missão privativa de cada entidade familiar, terceirizando-a ao Estado paternalista (agora na real acepção!).

 

Poder-se-ia argumentar que a lei não se volta ao fato isolado da palmada, tendo sido criada para reprimir a atuação dos pais que costumeiramente maltratam os seus filhos. Porém, para essas pessoas já existe todo um arsenal normativo, que se inicia pelo Código Penal, passando pela privação da autoridade parental do Código Civil, alcançando as sanções específicas do ECA, com a inserção do menor em família substituta. Pode-se questionar a aplicação prática de tais normas e o resultado em termos de efetividade. Todavia, incontroverso é que essas leis se prestam a combater as práticas ilícitas consumadas por famílias patológicas. Diversamente, a Lei da Palmada ingressará naquele espaço de autonomia existencial deferido aos pais das famílias normais para diuturnamente educar os seus filhos, com seus acertos, erros e limitações.

 

Se há alguma dúvida quanto a carga ideológica que permeia a  Lei n. 13.010/14, como então preencher os conceitos jurídicos indeterminados nela veiculados? Um safanão “humilha” a criança, uma chinelada a “ridiculariza”? A quem cabe decidir se há um sofrimento físico em um beliscão?

 

Tão grave quanto legislar sobre o certo ou errado em matéria de educação dos filhos, foi a escolha da autoridade indicada para sancionar os ilícitos. Será o Conselho Tutelar que definirá se o jovem foi humilhado ou ridicularizado? Os filhos denunciarão os pais a uma espécie de conselho popular? Dentre as políticas públicas de conscientização haverá uma cartilha para educar os pais no sentido de regulamentar a fronteira entre o lícito e o ilícito em matéria de convivência?

 

Se essa decisão fosse emanada de um juiz de direito poderíamos crer que a lapidação do conceito do abuso do direito do poder de família seria uma conquista paulatina e, sobremaneira, controlável por todas as garantias do devido processo legal, com a indispensável presença do Ministério Público. Haveria  segurança jurídica no sentido de se afirmar que a providência adotada – dentre as 5 possibilidades referidas pela lei -  seria aquela pautada nos interesses em jogo, com ponderação dos bens em tensão. Far-se-ia apelo à regra da proporcionalidade como limitador do poder conferido ao magistrado para a escolha da medida provisional correta. Por esse método, três subprincípios seriam observados na escolha, pelo magistrado, da providência material tendente a inibir ou remover o ilícito do castigo físico e do tratamento cruel ou degradante: (i) a adequação, segundo a qual a providência adotada pelo juiz não pode infringir o ordenamento jurídico, devendo ser adequada para que se atinja o bem da vida almejado; (ii) a necessidade, segundo a qual a ação material eleita deve ter a capacidade de realizar, no plano dos fatos, a tutela do direito, causando a menor restrição possível ao agressor; (iii) e a proporcionalidade em sentido estrito, segundo a qual o magistrado, antes de eleger a ação material a ser imposta, deve sopesar as vantagens e desvantagens da sua aplicação, buscando a solução que melhor atenda aos valores em conflito.

 

Todavia, atribui-se ao conselho tutelar a determinação do padrão educacional das nossas entidades familiares, infantilizando os detentores da autoridade parental e transferindo os seus filhos ao jugo do Estado. Uma lei que suprime a liberdade dos pais de, dentro dos limites da legalidade, exercer a prioritária missão de educar os filhos, não apenas ofende a autonomia e a privacidade das famílias, mas golpeia o próprio Estado Democrático de Direito ao violentar o direito à diferença, que consiste justamente na alteridade e na tolerância com as diversas formas de manifestação de pensamento quando estas não agridam a própria Constituição. Com fina ironia João Ubaldo Ribeiro Lembra que “Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo”.

 

Há uma enorme exposição do princípio da segurança jurídica quando os limites entre o lícito e o ilícito em sede de poder de família são enviados a um tribunal do júri da família, aqui denominado de “conselho tutelar”, mas que poderia ser qualquer outra autoridade que se prestaria ao papel de instância revisora da função constitucionalmente reservada aos pais.

 

Vivemos a passagem de Atenas a Esparta. Esparta era um exemplo de um modelo burocrático, que delegava ao Estado os cuidados das crianças, desde cedo educadas no rigor militar para a construção de uma ordem ideal. Atenas caminhava por uma linha muito diferente. O tempo mostrou qual o melhor modelo para as sociedades modernas. Ao Estado não cumpre adotar a moral de Rousseau, o filósofo que ensinou ao mundo como educar crianças, após abandonar todos os seus filhos.

 

Se tudo isto não fosse suficiente, há sólido embasamento normativo para amparar uma posição estatal minimalista no processo de educação dos filhos. Dispõe o artigo 26, item 3, da Declaração Universal de Direitos Humanos – da qual o Brasil é signatário - que aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos. Em reforço, o artigo 226, §7º, da Constituição Federal, dispõe que: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

 

Com essa crítica a uma excessiva e indevida intromissão da nova lei no planejamento familiar não propomos simplesmente um retorno ao passado. O ontem não era melhor que o hoje, mas o amanhã que se vislumbra com a Lei n. 13.010/14 poderá significar um retrocesso. No passado ainda recente, nos domínios do pátrio poder, havia uma proposital neutralidade estatal sob a privacidade de cada família, pela necessidade de se outorgar ampla discricionariedade aos pais para disciplinar e controlar os filhos. Os momentos patológicos da parentalidade eram sanados nos próprios limites do direito família (leia-se: guarda, visitação e alimentos) ou, em última instância, pelas normas de direito penal, sobremaneira quando o exercício excessivo do vetusto pátrio poder culminava em lesões corporais contra a pessoa do filho.

 

Com a evolução do direito de família, convertida de instituição fechada - voltada à preservação de sua unidade -, para instrumento de proteção e promoção das situações existenciais de cada qual de seus membros e do afeto que os vincula, paulatinamente a ordem jurídica foi encontrando espaços para sancionar os ilícitos danosos praticados contra a autonomia de seus membros. A cada dia se amplia o rol de eventos antes considerados inerentes à existência humana e ora transferidos à responsabilidade do autor do fato. A dinâmica familiar passou a atribuir peso a princípios como a paternidade responsável e o melhor interesse da criança, transformando páginas da vida em ilícitos. Há uma inexorável tendência de se extrair o menor da categoria estática, abstrata e estigmatizante de “incapaz”, para a concretude e dinamicidade de sua situação jurídica de pessoa em desenvolvimento, o que implica uma postura parental dialética, com respeito à autonomia e direitos fundamentais dos filhos.

 

Mas o que perigosamente se propõe para o futuro é uma subversão axiológica: suprimir a especial proteção do Estado a família em prol de uma pretensa superioridade estatal para forjar a moralidade de nossos futuros cidadãos. Louva-se a transposição do pátrio poder ao poder de família. Porém, o que não se deseja é que a autoridade parental se converta em autoridade estatal. Uma correta forma de materializar o art. 227 da Constituição Federal – para além da legislação que já possuímos -, seria uma ação estatal no sentido de fornecer meios para que as boas escolhas educacionais advindas do planejamento familiar possam ser maximizadas. É legítimo implementar consistentes políticas públicas abrangendo programas educacionais que discutam formas dialéticas de concessão de limites aos filhos, tão ou mais eficazes que a própria palmada. Nada mais.

 

Tal como introduzimos o tema, concluímos com JOÃO UBALDO RIBEIRO em sua derradeira crônica dominical do jornal “O Globo”: Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de cama, precatem-se.

 

Nelson Rosenvald

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