A NOVA NATUREZA DA AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE ESTELIONATO

Por Ava Garcia Catta Preta -  

Na sessão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal do último dia 13, a Suprema Corte brasileira teve a oportunidade de se manifestar pela primeira vez sobre um dos aspectos do chamado pacote "anticrime" que geram controvérsias no meio jurídico, notadamente quanto à sua aplicação.

Na oportunidade, os ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Marco Aurélio, Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso entenderam que o novel §5º do artigo 171 do Código Penal não retroage nos casos em que houve oferecimento de denúncia antes da vigência da Lei nº 13.964 .

A jurisprudência sobre o tema ainda é extremamente jovem e certamente ainda sobrevirão diversas teses das cortes e da academia, de modo que o que se pretende aqui é analisar qual interpretação mais se aproxima da orientação constitucional da retroatividade benéfica penal.

Pois bem. Sabe-se que uma das alterações legislativas promovidas pelo chamado pacote "anticrime" (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019) foi a exigência da representação da vítima como condição de procedibilidade da ação penal relativa ao crime de estelionato, insculpida no §5º do artigo 171 do Código Penal.

Ou seja, a partir do início da vigência da Lei nº 13.964/19, em 23 de janeiro de 2020, a natureza da ação penal no crime de estelionato passou de pública incondicionada a pública condicionada à representação.

Em relação às condutas ainda não descobertas ou ainda sob investigação quando do início da vigência da Lei nº 13.964/19, não há maiores controvérsias: aplica-se a nova lei e exige-se a representação da vítima como condição de procedibilidade da ação penal.

A problemática surge nas situações em que já houve oferecimento ou até recebimento da denúncia antes da vigência do chamado pacote "anticrime". Nesses casos, exige-se a representação da vítima como condição de prosseguibilidade — e não mais de procedibilidade — da ação penal? Entendendo-se que sim, qual seria o termo inicial e o prazo decadencial para a apresentação da representação?

A doutrina e a jurisprudência se dividem e propõem as mais diversas soluções. Para alguns, o oferecimento da denúncia anteriormente à vigência da norma afastaria a sua aplicação, uma vez que o ato jurídico estaria perfeito e acabado. Para outros, a representação é necessária mesmo nos casos em que já houve oferecimento de denúncia, devendo-se aplicar analogicamente, em relação ao prazo decadencial, a norma do artigo 91 da Lei nº 9.099/95. Há ainda os que defendem que o prazo decadencial deve ser o da regra geral do artigo 103 do Código Penal — seis meses —, contado a partir da vigência da lei.

A reflexão sobre a melhor interpretação sob o aspecto técnico deve se iniciar pela aferição da natureza jurídica do novel §5º do artigo 171 do Código Penal. Estabelecer tal premissa é imprescindível na medida em que, se considerada uma norma de natureza material ou mista, a orientação normativa desde a reforma penal de 1984 é a de que a lei posterior deve retroagir caso favoreça o réu, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal . Tal orientação foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 ao adotar, no inciso XL do seu artigo 5º, o novatio legis in mellius, ou seja, "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" .

Nesse sentido, verifica-se que, de fato, a norma em questão possui natureza mista ou híbrida, uma vez que, apesar de efetivamente orientar práticas a serem adotadas no curso do procedimento, o dispositivo legal é dotado de forte conteúdo que se relaciona com institutos do Direito material , como a extinção da punibilidade pela decadência (artigo 107, inciso IV, CP).

Portanto, sendo a norma de natureza mista e possuindo caráter favorável ao réu — uma vez que cria uma nova hipótese de extinção da punibilidade —, parece-nos que o entendimento mais acertado é o de que deverá retroagir , restando verificar de que forma tal dispositivo será aplicado nos casos em que já houve o oferecimento da denúncia quando da vigência da lei, ou seja, de que modo e em que prazo se exigirá a representação da vítima nas ações penais em curso.

Para o professor Aury Lopes Junior , a partir da vigência da nova lei, os juízes devem suspender os feitos e intimar as vítimas para manifestação sob pena de decadência. Em relação ao prazo para tal manifestação, uma possibilidade seria a aplicação, por analogia, do artigo 91 da Lei nº 9.099/95, que prevê o prazo de 30 dias para os casos em que tal lei passou a exigir representação para a propositura da ação penal pública (notadamente no crime de lesão corporal) .

Sabe-se que a analogia, apesar de não constituir fonte formal do Direito Penal, pode ser aplicada para beneficiar o réu. Na situação em análise, de fato a aplicação por analogia do prazo do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 mostra-se mais favorável ao réu do que a não exigência da representação nos casos em que já houve oferecimento de denúncia pelo crime de estelionato antes da vigência do chamado pacote "anticrime".

No entanto, a aplicação do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 por analogia se mostra menos benéfica — e relembre-se que a analogia jamais pode ser aplicada em prejuízo do réu — do que simplesmente observar o prazo da norma geral do artigo 103 do Código Penal, tendo como termo inicial o início da vigência da lei, o que, no silêncio do legislador e em observância do ditame constitucional da retroatividade mais benéfica penal, parece-nos a compreensão mais adequada. Nesse sentido, não tendo o legislador se manifestado expressamente sobre o prazo para apresentação da representação nos crimes de estelionato — como o fez, por exemplo, na Lei nº 9.099/95 —, deve-se  aplicar o prazo de seis meses previsto na norma geral do artigo 103 do Código Penal.

Quanto ao termo a quo, o parâmetro que se mostra mais adequado é o início vigência da 13.964/19, ocorrida no último dia 23 de janeiro, uma vez que seria absurdo que o prazo decadencial se iniciasse antes mesmo da exigência de a representação existir. Por outro lado, qualquer marco após a vigência da lei seria menos benéfico ao réu, o que afrontaria o postulado do novatio legis in mellius (artigo 5º, inciso XL, CF/88).

As cortes brasileiras vêm adotando os mais diversos entendimentos sobre o tema, sendo que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios já aplicou a interpretação que nos parece mais acertada ao oportunizar ao Ministério Público a formalização do interesse da vítima no prosseguimento da ação penal no prazo decadencial de seis meses contados da vigência da Lei nº 13.964/19.

Tal entendimento foi exarado pelo desembargador Mario Machado no âmbito da concessão de liminar que restou confirmada posteriormente por unanimidade pela 1ª Turma Criminal daquela Corte Distrital nos autos da Reclamação nº 0716187-75.2020.8.07.0000 .

Nas cortes superiores, a primeira manifestação sobre o tema adveio do julgamento do Habeas Corpus nº 573.093, originário de Santa Catarina, pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a qual, acompanhando o entendimento do relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, reconheceu se tratar de norma de caráter híbrido justamente pelo seu potencial extintivo da punibilidade, no entanto assentou que o oferecimento da denúncia tornaria o ato jurídico perfeito e acabado, blindando-o da exigência da nova norma — ainda que ela seja reconhecidamente mista e mais favorável ao réu.

Após o julgamento do writ supraindicado, os demais casos similares que tramitaram na 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça seguiram a orientação do precedente inaugural, inclusive com referência direta a ele .

Um desses casos foi justamente o que deu origem ao HC nº 187.341, no qual o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre a matéria pela primeira vez, no último dia 13, tendo se alinhado ao entendimento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o §5º do artigo 171 do CP não retroage nos casos em que já houve oferecimento de denúncia antes da vigência da Lei nº 13.964/19.

Por outro lado, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu entendimento divergente quando do julgamento do Habeas Corpus nº 583.837, também de Santa Catarina, no qual assentou, de forma unânime, que a nova norma deverá retroagir para todos os casos em que ainda não se operou o trânsito em julgado.

O voto do relator, ministro Sebastião Reis Júnior, chega a dialogar com o primeiro entendimento exarado pela 5ª Turma (HC 573.093/SC), rechaçando o argumento de que a denúncia formaria um ato jurídico perfeito e acabado, de modo a afastar a incidência da nova norma, por entender que "o ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do artigo 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão" .

A partir daí, a 6ª Turma daquela corte superior já adotou entendimento idêntico no precedente formado no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.668.091, do Paraná, de relatoria da ministra Laurita Vaz , demonstrando que irá continuar seguindo o entendimento formado no precedente inaugural do ministro Sebastião Reis Júnior e perpetuando uma divergência entre as turmas que tratam de Direito Penal no Superior Tribunal de Justiça, a ser dirimida eventualmente pela sua 3ª Seção.

Por fim, apesar de o tema ser relevante academicamente, na prática o que se tem visto é uma banalização tão grande da forma de apresentação da representação que a discussão sobre a sua exigência ou não, bem como o momento ideal para tanto, vê-se cada vez mais esvaziada.

Tanto é assim que, em diversos julgamentos envolvendo o tema nas diferentes cortes brasileiras, muitas vezes a discussão sequer chegou ao seu mérito jurídico, uma vez que consideram que o mero registro de boletim de ocorrência ou o simples ato de prestar depoimento — ainda na fase investigatória ou já em juízo — já é suficiente para suprir a necessidade de representação pela vítima, tornando a sua exigência cada vez mais supérflua.

 

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