Por Hugo Fernandes Matias e Kenarik Boujikian -
O ano de 2018 foi paradigmático para a tutela coletiva judicial do direito à liberdade, com importantes decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas no habeas corpus coletivo 143.641/SP, que tratou do direito à convivência familiar de mulheres adultas e adolescentes com seus filhos, e no habeas corpus coletivo 143.988/ES, que cuidou do tema da superlotação em unidades de adolescentes, o que se deu após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, em 2015, no julgamento da ADPF 347.
Os tribunais passaram a olhar com maior entusiasmo para a possibilidade de proteção coletiva do direito à liberdade através dos habeas corpus coletivos, com multiplicação das decisões favoráveis no âmbito superior e nos tribunais estaduais .
A pandemia da Covid-19 fez com que o mundo parasse para refletir sobre medidas destinadas à manutenção do bem mais valioso, a vida. Isso, como ensina Agamben , diante de um estado real e permanente de exceção, sobretudo na temática do encarceramento e morte de pessoas no Brasil.
O Estado brasileiro tem obrigação, nos termos constitucionais e perante a comunidade internacional, de adotar todas as medidas administrativas, judiciais e legislativas para a promoção dos direitos à vida e saúde da população brasileira. Nesse sentido, no campo do Poder Judiciário, temos a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, de março de 2020, que recebeu elogios de órgãos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e de parcela significativa de personagens ligados à promoção de direitos humanos no país .
Recentemente, no campo da jurisdição, tivemos decisões importantes para a tutela coletiva da liberdade, proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, e destacaremos três, provocadas pela Defensoria Pública.
A primeira consistiu em liminar em habeas corpus para presos idosos do Rio de Janeiro, deferida por decisão do ministro Nefi Cordeiro, nos autos do HC 568.752/RJ, impetrado pela DPRJ; a segunda decisão determinou o cumprimento de prisão civil por débito de alimentos em regime domiciliar, concedida aos vulneráveis do estado do Ceará, no habeas corpus coletivo nº 568.021/CE, proposto pela DPCE; e a terceira foi prolatada no HC Coletivo 568.693/ES, que tratou da liberdade para presos que foram mantidos encarcerados pelo não recolhimento da fiança, impetrado pela DPES.
Agora, um registro antes de avançarmos: para além da própria decisão de reflexos coletivos, os tribunais superiores potencializaram os efeitos dos habeas corpus coletivos como importantes instrumentos para democratização do acesso à tutela jurisdicional, estendendo os efeitos de suas decisões para outros casos semelhantes, o que ocorre desde a extensão da liminar nos autos do HC 143.988/ES e como se deu recentemente nos processos relativos a Ceará e Espírito Santo, cujas decisões foram ampliadas para todo o país, após provocação da Defensoria da União .
O que se comprovou com os avanços recentes da tutela coletiva no campo penal é que os habeas corpus coletivos são fundamentais para suprir o déficit de acesso à Justiça para os vulneráveis, haja vista a carência de Defensorias Públicas em muitas comarcas. Além disso, mostrou-se essencial para a diminuição do número de processos individuais apresentados ao Poder Judiciário, permitindo a decisão em um único processo, ao invés de termos milhares de ações. E, ainda, reforçou o sentimento de justiça e igualdade, com a atuação do Estado-juiz, ofertando uniformidade de decisões.
No sistema socioeducativo, as Defensorias Públicas têm obtido êxito em relação a suspensão de medidas em meio aberto, semiliberdade e, em alguns casos, a suspensão de mandados de busca e apreensão, por vezes fazendo uso da modalidade coletiva do remédio constitucional para a tutela da liberdade .
Vivemos um tempo de excepcionalidade jamais imaginado, que está a clamar por medidas que estejam à altura dos acontecimentos. É o que se tem verificado em países da Europa, como Portugal , do Oriente Médio e África, como Irã , Marrocos e Burkina Faso, e até mesmo da nossa América Latina, como na Colômbia e no Chile . Em todos esses países foram adotadas medidas para diminuição das populações carcerárias a fim de promover os direitos fundamentais à vida e saúde.
No Brasil, há insuficiência de insumos básicos e controle sanitário em unidades prisionais, com casos de racionamento de água e dificuldades de acesso a profissionais de saúde. Faltam EPIs para trabalhadoras e trabalhadores do sistema, especialmente para que agentes prisionais possam se proteger da Covid-19. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontou para a falta de acesso a água e sabão em locais de encarceramento de pessoas. Não há sequer previsão mínima de testagem de internos .
Todas as pessoas carregam consigo o atributo da dignidade humana e é inaceitável a postura excludente dos direitos fundamentais da população do sistema prisional e socioeducativo, seja pela ação ou pela omissão. E não se pode esquecer que ao redor dessas pessoas temos seus familiares, agentes prisionais e socioeducativos, além das equipes técnicas que acabam por se colocar em situação de vulnerabilidade , com risco de contraírem ou transmitirem a Covid-19, potencializando a difusão da doença em nosso país. Não se trata de preocupação em abstrato, pessoas estão sendo contaminadas e morrendo em razão da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, presos e agentes .
Num momento da história em que todas e todos somos vulneráveis, urge a adoção de providências para manutenção da vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana como ponto central do nosso ordenamento jurídico, afastando, assim, mais um surgimento de necropoder enraizado na Covid-19.
Um dos caminhos para a adoção de medidas sanitárias no sistema prisional e socioeducativo brasileiro perpassa, obrigatoriamente, pelo manejo do habeas corpus coletivo em todas as esferas do Poder Judiciário, sendo sua admissão e processamento sinônimo de celeridade e economia de recursos e, sobretudo, essenciais para a saúde e vida da sociedade brasileira.
Está nas mãos do Poder Judiciário a efetividade do que chamamos Justiça, no patamar ético da dignidade humana erigida na Constituição brasileira como princípio fundante. Esperamos que saibam fazê-lo com a coragem e a sabedoria necessárias às mulheres e aos homens públicos.