Por Paulo Daniel Cicolin -
A discussão sobre o uso da cannabis para fins medicinais tem evoluído nos últimos anos, especialmente a partir das regulações propostas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela discussão do tema no Congresso Nacional, ainda que a passos lentos quando comparada com outros países (como, por exemplo, Canadá, Uruguai, Espanha, Holanda e alguns estados americanos) e que, inclusive, já permitiram o uso não só para fins medicinais, mas também para o uso recreativo, assunto específico que no Brasil ainda está longe de amadurecer.
No entanto, para qualquer exercício sobre a pauta da cannabis para o ano de 2022 é preciso entender, ainda que brevemente, como chegamos ao estágio atual.
O ponto de partida para compreender a situação da cannabis no Brasil é o ano de 2006, por meio da atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que previu em seu artigo 2º, parágrafo único, a possibilidade de a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita de plantas vegetais como a maconha (cannabis sativa), exclusivamente para fins medicinais ou científicos, o que nunca ocorreu desde a vigência da referida lei.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187, reconheceu a legitimidade e constitucionalidade do movimento Marcha da Maconha, garantido a seus apoiadores o livre exercício do direito de reunião e expressão, o que contribuiu para colocar o tema ao menos em debate para a sociedade, ainda que estudos acadêmicos remontem desde a década de 1970 sobre os benefícios da planta.
Seguindo a discussão na sociedade, foi a vez de o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução nº 2.113, aprovar, no ano de 2014, o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias de crianças e adolescentes refratárias aos tratamentos convencionais, prevendo uma série de obrigações tanto para os médicos prescritores quanto aos responsáveis legais dos pacientes.
No ano seguinte, em 2015, a Anvisa publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 03, que atualizou a Lista de Substâncias Sujeitas a Controle Especial, prevista na Portaria SVS/MS nº 344/98, com a inclusão do canabidiol, bem como RDC nº 17, em que definia os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produtos à base de canabidiol em associação com outros canabinoides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Em nova atualização da Portaria SVS/MS nº 344/98, no ano de 2016, a Anvisa permitiu o registro de medicamentos derivados da cannabis sativa em concentração máxima de 30 mg de tetrahidrocannabinol (THC) por mililitro e 30 mg de canabidiol por mililitro, motivado pela fase final do procedimento de registro do medicamento Mevatyl®.
Em vista dessas atividades normativas, no ano de 2017, por meio da RDC nº 156, a Anvisa incluiu a cannabis sativa na Denominação Comum Brasileira como planta medicinal, permitindo um manuseio mais claro e preciso na área da farmacopeia brasileira.
No ano de 2019, a Anvisa publicou a RDC nº 327, que trata sobre os procedimentos para a concessão de autorização sanitária para a fabricação e importação, bem como os requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de cannabis sativa para fins medicinais — de uso humano.
Entre os pontos de destaque da referida norma, podem ser citados:
— A definição do teor dos produtos à base de cannabis, cujos ativos devem ser exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos, possuindo predominantemente canabidiol (CBD) e com tetrahidrocanabinol (THC) não superior a 0,2%;
— A concessão pela Anvisa de autorização sanitária (AS) — somente para empresas — para fabricação, importação e venda de produtos à base de cannabis com prazo improrrogável de cinco anos — após esse período, a empresa deve seguir as vias específicas de registro de medicamentos;
— Os produtos de cannabis não podem ostentar nomes comerciais, devendo ser designados pelo nome do derivado vegetal ou fitofármaco acompanhado do nome da empresa responsável e devem ser utilizados somente por via oral ou nasal;
— A proibição de qualquer publicidade de produtos à base de cannabis, inclusive distribuição de "amostras grátis", sendo que a prescrição do medicamento somente pode ser realizada por médicos legalmente habilitados pelo Conselho Federal de Medicina;
— A importação dos insumos farmacêuticos para fabricação e comercialização do produto de cannabis somente pode ser realizada nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado, uma vez que a plantação em território nacional ou a importação da planta ou partes da planta continuam proibidas.
Atualmente em vigor, a RDC nº 327/2019 pode ser considerada a principal norma do setor, visto que permitiu avançar em pontos até então obscuros para fabricantes, importadores, médicos e pacientes, contribuindo para o aprimoramento do sistema, tanto que neste ano de 2021 a Anvisa aprovou dois novos produtos à base cannabis, os quais foram solicitados com fundamento na referida RDC: soluções de uso oral nas concentrações de 17,18 mg/mL e 34,36 mg/mL, com até 0,2% de THC, os quais deverão ser prescritos por meio de receituário tipo B.
Outro ponto fundamental da RDC nº 327/2019 é sua transitoriedade, pois a norma deverá ser revista em até três anos de sua publicação, que ocorreu em dezembro de 2019, conforme seu artigo 77, parágrafo único, o que deverá acontecer justamente no ano de 2022, ano de eleições no país.
Paralelo à regulação pela Anvisa, o ano de 2021 ainda reservou a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) nº 399/2015, que propõe alterar o artigo 2º da Lei de Drogas, justamente para viabilizar o plantio, fabricação e a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação.
O PL foi aprovado em regime de apreciação conclusiva pela comissão especial formada para tratar o assunto na Câmara dos Deputados e deveria seguir diretamente para o Senado Federal para discussão e votação nessa casa, mas houve a interposição de recurso por um grupo de deputados e agora o PL deverá ser votado em plenário.
Os principais pontos do PL, tal como aprovado pela comissão especial, são os seguintes:
— Permanece vedada a prescrição, a dispensação, a entrega, a distribuição e a comercialização para pessoas físicas, de chás medicinais ou de quaisquer produtos de cannabis sob a forma de droga vegetal da planta, suas partes ou sementes, mesmo após processo de estabilização e secagem;
— As atividades de cultivo, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, manipulação, comercialização, importação e exportação de produtos à base cannabis são permitidas às pessoas jurídicas, mas não às pessoas físicas;
— As pessoas jurídicas interessadas deverão ser previamente autorizadas pelo poder público e deverão observar condições mínimas de segurança par ao plantio, inclusive com a indicação de responsável técnico;
— O cultivo de plantas de cannabis medicinal deverá ser feito exclusivamente em casa de vegetação/estufas; enquanto as plantas de cânhamo industrial poderão ser cultivadas em ambiente aberto, desde que seja cercado, controlado, projetado e mantido de modo a impedir o acesso de pessoas não autorizadas, bem como garantir a contenção e a não disseminação no meio ambiente;
— Os locais de plantação deverão adotar padrões de segurança no perímetro que cerca o cultivo, como instalação de tela alambrado de aço galvanizado ou de muros de alvenaria, ambos com no mínimo dois metros de altura e providos de cercas elétricas com tensão suficiente para impedir a invasão de pessoas não autorizadas, além de não poderem ostentar qualquer identificação das atividades ali desenvolvidas;
— As instituições de pesquisa poderão plantar, cultivar, colher, manipular, processar, transportar, transferir e armazenar sementes, espécies vegetais secas ou frescas da planta, de insumos, de extratos e de derivados de cannabis, bem como importar e exportar sementes e derivados, previamente autorizadas pelo poder público;
— Os medicamentos e produtos de cannabis medicinal de uso humano continuarão com sua produção e comercialização autorizadas pela Anvisa, permitindo-se o uso veterinário pelo órgão agrícola responsável;
— As associações de pacientes sem fins lucrativos, legalmente constituídas, criadas especificamente para esse fim e com registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, poderão cultivar e processar plantas de cannabis medicinal, além de elaborar produtos magistrais ou oficinais fitoterápicos com o objetivo de dispensá-los aos seus associados;
— As farmácias magistrais poderão manipular e dispensar produtos magistrais e oficinais fitoterápicos derivados de cannabis medicinal de uso humano ou veterinário, desde que autorizadas a atuar com produtos de controle especial pelo órgão sanitário federal ou pelo órgão agrícola federal;
— É autorizada a produção e comercialização de produtos fabricados a partir do cânhamo industrial, tais como cosméticos, produtos de higiene pessoal, celulose, fibras, produtos de uso veterinário sem fins medicinais, dentre outros, fabricados a partir do cânhamo industrial, desde que as suas formulações contenham apenas níveis residuais de Δ9 —THC iguais ou inferiores a 0,3%;
— É autorizada a produção e comercialização de gêneros alimentícios e suplementos alimentares fabricados a partir do cânhamo industrial, desde que suas formulações contenham apenas níveis residuais máximos de 0,001% (1mg/100g) de Δ9-THC de 0,01% de canabinoides totais (10mg/100g);
— Disponibilidade às associações de pacientes sem fins lucrativos, por meio dos bancos oficiais, de oferta de linha de crédito especial, financiada com parte do montante arrecadado com os tributos incidentes sobre a comercialização de medicamentos e produtos de cannabis medicinal, em percentual e condições a serem definidos pelo poder público.
De volta para o futuro, o ano de 2022 impactará diretamente no caminho que o país seguirá para regular o uso da cannabis para fins medicinais, especialmente em virtude do calendário político.
Como o assunto mexe com anseios políticos conflitantes, há a possibilidade de haver uma forte polarização da sociedade sobre o tema, o que poderá dificultar a formação de um consenso técnico pela Anvisa, com o objetivo de revisar a RDC º 327/2019, ou mesmo político pelo Congresso Nacional, com a discussão sobre o PL nº 399/2015.
Segundo dados da consultoria BDSA, especializada no mercado canábico, o mercado legal da cannabis, no ano de 2020, atingiu o valor de US$ 21,3 bilhões, correspondendo a um aumento de quase 50% em relação ao ano de 2019, e deve seguir aumentando à medida que cada vez mais países autorizam o uso da cannabis para fins medicinais e/ou recreativos, com previsão de atingir US$ 55 bilhões em 2026.
Em outro relatório elaborado pela Whitney Economics, também uma consultoria especializada no setor canábico, o mercado da cannabis no Estados Unidos emprega atualmente cerca de 321 mil pessoas, 77 mil a mais que o ano de 2020.
No Brasil, segundo pesquisa realizada pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados no ano 2016, o Brasil poderia arrecadar até R$ 5,6 bilhões em tributos num cenário de legalização irrestrita de cannabis apenas com o uso recreativo. No mesmo estudo, os autores apontam que haveria uma economia anual com os presos por tráfico de cannabis na ordem de quase R$ 1 bilhão, considerando todo o aparato estatal envolvido.
A expectativa para os defensores do uso medicinal continua sendo a possibilidade de autorizar a plantação da cannabis em território nacional para fins medicinais, o que certamente traria inúmeros benefícios aos país, como o desenvolvimento do agronegócio e toda sua cadeia de suprimentos; novos estudos científicos e novas tecnologias de medicamentos pela indústria; além da arrecadação de tributos e geração de empregos, mas, principalmente, na possibilidade de redução de custos e ampliação de tratamento médico aos inúmeros pacientes que hoje necessitam da cannabis.
Nesse cenário de polarização que o país vive atualmente, manter e renovar a vigência da RDC nº 327/2019, por um novo prazo de três anos, parece razoável e proporcional, especialmente porque o tempo para isso seria até dezembro de 2022, quando já se saberia o resultado das eleições e uma nova legislatura poderia continuar a discussão do PL nº 399/2015, considerando que dificilmente o PL entrará na pauta do plenário da Câmara de Deputados até lá.