A Prisão Cautelar E A Constituição Federal De 1988

Guilherme De Souza Nucci

           
Após duas décadas de vigência, cumpre analisar se os direitos e garantias
constitucionalmente dispostos, relacionados à prisão processual, têm sido
seguidos com eficácia. Parece-nos, em primeira análise, estarmos distantes do
integral implemento dos dispositivos garantistas idealizados. Caminhamos,
porém, rumo ao horizonte desenhado pelo constituinte em 1988.

 

            Em
relação à prisão cautelar, dentre outras, despontam as seguintes garantias:
a) a prisão processual é medida excepcional, vinculada a critérios de
razoabilidade e necessidade, afinal, todo acusado é presumido inocente, até o
trânsito em julgado de sentença condenatória (art. 5º, XVII, CF); b) a prisão
somente pode advir de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, CF); c) inexiste prisão
sigilosa e a pessoa detida tem direito de acesso à família, ao advogado e à
fiscalização do juiz (art. 5º, LII e LXIII, CF); d) todo acusado tem direito
ao silêncio, sem que se possa extrair dessa atitude qualquer prejuízo à sua
defesa (art. 5º, LXIII, CF); e) o preso tem direito à identificação dos
responsáveis por sua prisão e pelo seu interrogatório policial (art. 5º,
LXIV, CF); f) a prisão ilegal deve ser relaxada pelo juiz (art. 5º, LXV, CF);
g) a liberdade provisória é um direito do preso, dependente apenas das
condições fixadas em lei (art. 5º, LXVI, CF).

 

            Avaliando-se
a eficiência dos dispositivos citados, conclui-se que, no geral, a
jurisprudência trilha a meta de garantir o fortalecimento da presunção de
inocência. A prisão cautelar, se voltarmos os olhos ao passado, era decretada
em maior extensão, abrangendo casos desnecessários e provocando situações despidas
de razoabilidade. Atualmente, ainda que alguns magistrados continuem a
decretar a prisão processual sem necessidade e contrariando o postulado do
estado de inocência, os Tribunais vêm corrigindo essa distorção, concedendo
ordens de habeas corpus com freqüência e orientando a formação de um
entendimento que consolida a garantia de se permanecer em liberdade até o
trânsito em julgado de sentença condenatória.

 

Outra
particularidade, advinda diretamente do texto constitucional de 1988, foi a
cessação, quase total, da denominada prisão para averiguação.
Costumavam alguns agentes policiais deter pessoas para averiguação,
sem ordem do juiz e ausente o estado de flagrância. A medida restritiva da
liberdade tinha por finalidade instruir, na maioria das vezes, a investigação
policial. Substituindo essa forma indevida de prisão, seguindo-se mandamento
constitucional, editou-se a Lei 7.960/89, criando-se a prisão temporária,
justamente para atender a fase da investigação criminal, porém, contando com
a determinação judicial e por prazo certo. A formação dos bacharéis em
Direito, depois da Constituição de 1988, aprimorou-se e a prisão cautelar,
anteriormente efetivada sem maiores formalidades, passou a constituir
instituto cercado de maiores cuidados.

 

            A
redemocratização ocorrida no Brasil após 1985 atingiu seu ápice institucional
com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por isso, a prisão
processual ganhou visibilidade, não mais se tolerando a detenção camuflada,
sem comunicação a terceiros e, pior, sem controle judicial. A par disso,
instituiu-se o direito ao silêncio, impedindo-se que, contrariamente à
vontade do investigado ou acusado, promova-se a extração coercitiva da
confissão. Ninguém é obrigado a se auto-acusar, preceito hoje consagrado
tanto na doutrina como na jurisprudência. Além da transparência da prisão, a
pessoa detida tem o direito de saber quem foi o responsável pelo cerceamento
da sua liberdade, podendo tomar as medidas cabíveis para apurar eventual
abuso de autoridade.

 

            Prisões
ilegalmente realizadas devem ser relaxadas tão logo comunicadas ao
magistrado. Ao lado dessa providência, o direito de aguardar em liberdade o
julgamento definitivo passou a constituir um forte obstáculo à prisão
automática e generalizada. Cada caso deve ser analisado à luz dos elementos
fundamentais de necessariedade e da razoabilidade. A lei ordinária não pode,
singelamente, proibir a liberdade provisória, sem critério e de maneira
desordenada. Exemplo disso foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou
inconstitucional o art. 21 da Lei 10.826/2003 (Armas) por vedar, sem maiores
detalhes, a liberdade provisória ("Os crimes previstos nos arts. 16, 17
e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória").

 

            A
reforma trazida pelas Leis 11.689/08 e 11.719/08 consagra idêntica visão
acerca da excepcionalidade da prisão cautelar. Não mais existe, no Código de
Processo Penal, qualquer modalidade de prisão automática ou fundada em
elementos inconsistentes. A prisão preventiva (art. 312, CPP) passa a ser o
modelo regente de todas as demais, como a prisão para recorrer e para
aguardar o júri.

 

            Tem-se
consagrado, cada vez mais, o direito à utilização do instrumento do habeas
corpus
para impugnar decretos de prisão de toda ordem, além de se
permitir a oposição do interessado em relação a investigações criminais e
processos instaurados sem justa causa.

 

            Há
muito a evoluir, entretanto. O sistema prisional brasileiro ainda padece da
falta de vagas, gerando por conseqüência a indevida e injusta inserção do
preso provisório em celas habitadas por presos condenados definitivamente.
Essa mescla de pessoas foge à orientação legal e, sobretudo, constitucional,
visto não se permitir nem mesmo a pena cruel (o que a superlotação não
consegue evitar) quanto mais a detenção provisória em situação análoga.

 

            Outro
dado preocupante é a excessiva duração da prisão cautelar, que também
contraria a idéia de celeridade do processo criminal e, por óbvio, termina
por ferir qualquer base de razoabilidade. Não se pode deter alguém, considerado
inocente até decisão condenatória definitiva, por períodos longos e que
podem, inclusive, ser equiparados ao cumprimento de pena. Por outro lado,
deve-se garantir a segurança pública, direito constitucional dos brasileiros,
motivo pelo qual a simples soltura de preso, sem se atentar para a garantia
da ordem pública, também não deveria ser o mecanismo adotado como padrão.

 

            O
mais adequado aparelhamento do Poder Judiciário e dos demais órgãos
responsáveis pela segurança pública é indispensável, visando-se o processo
célere, com respeito aos direitos e garantias individuais, sem abrir mão da
garantia da ordem pública. A prisão cautelar, em si mesma, não foi vedada
pelo texto constitucional de 1988, ao contrário, nele encontra lastro. Porém,
a busca pelo equilíbrio entre os interesses individuais, que falam pela
liberdade, e os interesses da sociedade, que buscam a segurança, é o ideal a
ser perseguido.

 

            Possam
os vinte anos de vigência da Constituição de 1988 inspirar os Poderes do
Estado a respeitar, cada vez mais, os direitos e garantias humanas
fundamentais.

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