A PRISÃO COMO INSTRUMENTO DE COERÇÃO MORAL ILEGÍTIMA PARA OBTENÇÃO DE PROVA ATRAVÉS DE DELAÇÃO PREMIADA

Paulo José Freire Teotônio, Bruna Carolina Oliveira e Silva e Jeferson Dessotti Cavalcanti Di Schiavi  -  

1 Introdução 

O instituto em exame ingressou com pompa no cotidiano jurídico brasileiro. Sua indiscriminada aplicação, todavia, sem obediência aos padrões principiológicos, passou a gerar controvérsias, notadamente por seu suposto uso contínuo e desregrado, servindo como meio de prova e não instrumento para obtê-la, dando azo à discussão sobre a sua compatibilidade com os preceitos constitucionais, notadamente no que pertine a sua compatibilização com as midiáticas prisões que tradicionalmente as antecedem.

Consiste o instituto em prêmio, com a redução de pena ou até mesmo na sua isenção, benefício legal concedido após a colaboração do indivíduo que delatar os demais autores do tipo penal praticado, funcionando como um instrumento de barganha, dado àquele que se disponibilizar a colaborar com as investigações.

Destaca-se que a narrativa do delator não vale por si só, sendo imprescindível que todas as informações prestadas sejam devidamente comprovadas, visto que o prêmio, no que tange à sanção, será concedido pelo Estado-juiz, após toda a instrução processual penal (devido processo legal), diante do seu livre-convencimento e da análise do acordo celebrado entre o delator e o Ministério Público ou, ainda, entre o delator e o Ministério Público em conjunto com o delegado de polícia.

Nesse diapasão, devemos ponderar sobre o requisito da voluntariedade do agente, ou seja, a ausência de coerção para a obtenção da delação, o que leva à obrigatória ponderação sobre a sua viabilidade com a prisão do delator, ou seja, deve-se admitir delação por parte de quem está no cárcere? Essa manifestação seria sempre voluntária?

Nesse sentido, devemos analisar de forma razoável e ponderada a real aplicação do instituto, tendo em vista o grande enfoque sobre este em decorrência dos escândalos de corrupção que tomaram conta do Brasil, isto porque a estrondosa repercussão da midiática Operação Lavo Jato proporcionou aos brasileiros uma maior visibilidade e um aumento considerável na utilização do instituto em análise. Sendo assim, cada caso deve ser analisado minuciosamente, a fim de garantir que não tenha sido utilizado como instrumento de tortura para obter a confissão daqueles que se encontram encarcerados. Sob a égide da prisão preventiva, os organismos de persecução penal têm tomado o instituto como atalho para cercear o devido processo legal e sorrateiramente inverter o onus probandi por parte do acusador, garantias constitucionais asseguradas àqueles que supostamente cometeram o delito. 

Ao perquirirmos um dos requisitos que deve estar presente na aplicação do instituto - a volição do agente -, nos deparamos com o óbice das condições de extrema fragilidade psicológica do indivíduo que foi inserido no sistema prisional e o seu desespero em subtrair-se da pena. Nesse diapasão, não há como fugir da breve análise do modus operandi adotado na operação policial retrocitada, na qual, ao menor indício de participação do investigado, persegue-se a todo custo a subsunção normativa para a expedição da segregação cautelar, e com isso obter o que podemos considerar uma delação premiada às avessas, ou seja, utiliza-se o fim para obter o meio. 

Cabe aos operadores do direito, identificando tal situação, movimentar a máquina legislativa no sentido de redesenhar o instituto, que deve ser utilizado observando as limitações impostas pelo ordenamento pátrio, trazendo maior segurança jurídica aos seus jurisdicionados.

Evidentemente, fatores pessoais não devem ser levados em conta para fundamentar a viabilidade da delação, dado que não se pode perquirir as razões que levaram o delator a entregar seus comparsas, mas, sim, a voluntariedade em realizar o acordo e colaborar com a investigação criminal.

Outrossim, a matéria delatada deve ser objeto de confrontação com o conjunto probatório, a fim de que seja preservado o princípio da presunção de inocência dos delatados, sob pena de subversão do sistema processual penal.

Por evidente, ninguém poder ser considerado culpado, muito menos condenado, só pelo conteúdo da delação, sem que esteja alicerçada pelo conjunto de provas carreadas aos autos.

2 A Origem e a Exegese do Instituto 

Antes de adentrarmos as minúcias do instituto e analisar a sua compatibilidade com a prisão, cumpre observar que o termo delação tem sua origem no latim: delatio, de deferre, na acepção pátria: denunciar, delatar, acusar, deferir. 

O instituto ora estudado teve sua origem mais remota nas Ordenações Filipinas (1603), cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou até janeiro de 1603 quando da entrada em vigor do Código Criminal de 1830. Já no regramento moderno, em decorrência da ineficácia dos meios investigativos tradicionais à década de 1990, bem como pelo recrudescimento da criminalidade, ressurgiu com a edição da Lei nº 8.072/90, que trata dos crimes hediondos. Em seu art. 8º, parágrafo único, passou a prever que "o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços". Este mesmo dispositivo legal trata no seu art. 4º que ,"se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços."

Ademais, está previsto em diversas legislações extravagantes, quais sejam: Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90, art. 8º, parágrafo único); Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo (Lei nº 8.137/90, art. 16, parágrafo único); Código Penal (art. 159, § 4º - extorsão mediante sequestro); Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98, art. 1º, § 5º); Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/99, arts. 13 e 14); Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei nº 11.343/06, art. 41); e Lei do Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013, art. 4º). Assim, conforme exposto anteriormente, o instituto da colaboração premiada (preferimos a denominação delação premiada, para que não seja confundida com o instituto revogado da extinta Lei de Tóxicos, ou seja, Lei nº 10.409/02); Lei nº 9.034/95, art. 6º, e Lei nº 7.492/86, art. 24, § 2º.

Não obstante, encontra-se tipificado em nove leis integrando diferentes delitos, iniciando-se pelo próprio Código Penal, em seu art. 159, § 4º (alterado pelo art. 7º da Lei de Crimes Hediondos - Lei nº 8.072/90), o qual prevê que aquele que for coautor do crime que delatar a associação criminosa (antiga quadrilha ou bando) que esta agindo poderá ter a sua pena reduzida de um a dois terços.

Devemos também observar a distinção doutrinária para os termos "delação premiada" e "colaboração premiada", visto que há entendimentos divergentes.

"A nosso ver, delação e colaboração premiada não são expressões sinônimas, sendo esta última dotada de mais larga abrangência. O imputado, no curso da persecutio criminis, pode assumir a culpa sem incriminar terceiros, fornecendo, por exemplo, informações acerca da localização do produto do crime, caso em que é tido como mero colaborador. Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas - nessa hipótese é que se fala em delação premiada (ou chamamento de corréu). Só há falar em delação se o investigado ou acusado também confessa a autoria da infração penal. Do contrário, se a nega, imputando-a a terceiro, tem-se simples testemunho. A colaboração premiada funciona, portanto, como o gênero, do qual a delação premiada seria espécie." (LIMA, 2016, p. 521) 

Para Júlio César Mossin e Heráclito Mossin (2016), foi uma tentativa do legislador no sentido de amenizar o termo "delação premiada", bastante carregado, com vistas a caracterizar a conduta daquele que denuncia seu comparsa na prática delitiva. A consequência de cunho jurídico para a "colaboração" e a "delação" são as mesmas: premiar aquele que denuncia os outros coautores ou partícipes.

Conforme comentamos supra, imperiosa a confrontação do uso do instituto com os paradigmas constitucionais, dado que vivemos num Estado Democrático de Direito, onde o cidadão é detentor de direitos e garantias fundamentais, identificando-se como mais valiosa a liberdade, que permite ao indivíduo praticar tudo que a lei permite e tudo que ela não lhe proíbe. 

Nessa dimensão, pertinente a discussão da constitucionalidade do instituto sob a ótica de sua aplicabilidade e margem de interpretação no contexto prático.

A delação premiada, certa ou errada, tem sido considerada uma moeda de troca, o que se lastima, sob o prisma da deontologia, já que se observa o prêmio como troca pela descoberta dos demais agentes.

A colaboração, em verdade, deve ser vista como uma contribuição às funções do Estado, devendo ser identificada como benefício legal concedido ao investigado ou acusado.

Muitos doutrinadores, todavia, observam que é uma declaração de ineficiência, posto que exterioriza uma falha do sistema de investigação criminal do Estado, cuja atrofia cada vez maior provoca a incapacidade de investigar e estabelecer a devida punição pelos meios usuais, notadamente no que concerne aos agentes que integram as organizações criminosas.

Todavia, o instituto demanda a necessidade de efetiva comprovação do que se delata, não podendo ou devendo ser um fim em si mesmo.

A delação deve ser vista como um dos muitos instrumentos postos à disposição da Justiça Criminal, demandando efetiva posterior investigação para comprovação do que fora alegado, visto que não é permitido sustentar a condenação, sendo sequer indicativo de justa causa para ação penal, posto que demanda a existência de outros meios de prova que corroborem as informações prestadas. Neste diapasão, vale observar que em nossa surrada pátria está cada vez mais evidenciada a fragilidade do aparato policial e a ineficiência do serviço público brasileiro na solução dos crimes. Aparato este, obsoleto, aliás, foi o que levou à validação da negociação entre o ente público e o agente criminoso (delator), sendo instrumento bem mais módico para as contas do Executivo e justificador da omissão dos gestores na melhoria do sistema tradicional.

Nesse contexto, insta conceituar o instituto, dando ensejo aos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci: "Colaborar significa prestar auxílio, contribuir; associando-se ao termo 'premiada', que representa vantagem ou recompensa, extrai-se o significado processual penal para o investigado ou acusado que dela se vale: admitindo a prática criminosa, como autor ou partícipe, revela a ocorrência de outro(s), permitindo ao Estado ampliar o conhecimento acerca da infração penal, no tocante à materialidade ou à autoria".

Por estar em voga tal instituto na prática forense, torna-se imperioso aperfeiçoá-lo, visto que ainda precário, dado que raros os textos legais que inserem em seu corpo o dispositivo da colaboração premiada.

Na nossa ordem constitucional, ao contrário das nações de onde foram extraídas as ideias centrais do instituto, não se concebe mais a participação do magistrado no acordo entre o investigado/acusado, sob pena de irreversível quebra da imparcialidade necessária ao processo penal.

Tal imparcialidade do juiz decorre do princípio do juiz natural como pressuposto para que a relação processual se instaure validamente, a fim de evitar quaisquer vícios, ilegalidades e nulidades nos atos praticados. Para Tourinho Filho, "trata-se de verdadeira garantia em respeito ao direito que as partes têm de ser julgadas por juiz imparcial. E essa imparcialidade proporciona uma indissimulada conotação ética ao processo".

O nosso sistema processual penal está intimamente vinculado ao princípio da imparcialidade e do contraditório, devendo todas as decisões proferidas pelos magistrados serem imparciais e submetidas ao princípio da ampla defesa e do contraditório, assegurando o efetivo cumprimento de todas as garantias constitucionais aos cidadãos brasileiros.

Assim, o julgador deste deve distanciar-se da realização do acordo, para não macular a própria validade da prova obtida, posto que o Estado-juiz deve estar afastado também da investigação e da participação na obtenção de indícios para dar suporte a uma ação penal, o que deve ficar a cargo das autoridades policiais e do Ministério Público, dentro dos limites legais, conforme já enfatizado.

Ao magistrado cabe verificar a regularidade, a legalidade e a voluntariedade do acordo para fins de homologação, desde que atendidos os requisitos legais, devendo evitar a divulgação dos termos do acordo, para evitar serem instrumentos de julgamentos populares prévios ou satisfação de egos inflados, sob pena de sepultamento do devido processo legal e, notadamente, dos direitos dos investigados.

3 Paradigmas de Aplicabilidade 

A crescente organização da criminalidade hodiernamente tem reclamado melhor e mais inteligente atuação do Poder Público, dadas a nova estruturação e a organização das organizações criminosas, que por vezes contam com braços no poder estatal. Reclama, assim, a intervenção dura do Estado, dentro dos parâmetros legais colocados a sua disposição.

Todavia, precisamos nos atentar para o atual sucateamento do aparato policial, por conta da falta de investimentos e descaso do Executivo, que deixa a população cada vez mais dependente da atuação dos representantes do Parquet, o que denota a necessidade de revitalização e especialização dos órgãos do Ministério Público para confrontar de forma eficaz e plena as atividades da criminalidade organizada. 

Importante menção, desta forma, ganha o instituto da denominada "colaboração premiada" ou "delação premiada", trazida em artigos esparsos da lei repressiva, não só para as investigações, mas também para permitir uma melhora da prova processual penal, viabilizando condenações que outrora seriam extremamente difíceis ou improváveis.

Com relação ao tema abordado, Jorge Vicente Silva(1) assim lecionou:

"A denominada 'colaboração premiada' não é figura nova no direito brasileiro, encontrando-se previsão anterior na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90, art. 8º, parágrafo único), na Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95, art. 6º), na Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98, art. 1º, § 5º) e na Lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/99, arts. 13 e 14)."

Por outro lado, analisando o mesmo tema jurídico acima abordado, Isaac Sabbá Guimarães(2) descreve:

"O sistema de processo penal brasileiro abre-se cada vez mais para intervenções, ainda que mitigadas, típicas daqueles que se regem pelo princípio da oportunidade, predominante nos países de cultura jurídica anglo-americana. Esta é, aliás, uma tendência que atende bem, em nosso entender, aos anseios de realização de um direito penal material, o qual se poderá considerar impraticável num sistema absolutamente regido pelo princípio da obrigatoriedade (da ação penal)."

Os benefícios legais advindos da delação, vale enfatizar, ao contrário do que os leigos supõem, são destinados ao investigado, copiando-se o denominado plea bargainig do processo penal norte-americano. O acordo tratará ou do sobrestamento do processo - impedindo, pois, que o Ministério Público dê continuidade à persecução criminal, como forma assemelhada ocorre na suspensão condicional do processo do art. 89 da Lei nº 9.099/95 -, ou da redução da pena, devendo a contribuição do investigado ser espontânea, de livre-vontade, sem a instigação ou a coação de terceiros, posto que tal prática nefanda violaria notadamente os preceitos da razoabilidade e da proporcionalidade, devendo preponderar, portanto, a vontade de colaborar com a polícia judiciária ou com a justiça. 

Não se pode ignorar a possibilidade de retratação do delator, como enfatiza Heráclito Mossin, visando garantir os direitos do delatante e dos postulados constitucionais, in verbis: 

"Portanto, resulta da combinação do art. 200 do Código de Processo Penal com o art. 5º, inciso LV ('aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes'), que retratação da confissão é também um direito constitucional do confitente, é uma garantia sua. Em circunstâncias desse matiz, em hipótese alguma pode ser negado ao delator voltar atrás, desdizer o que por ele foi afirmado ou revelado quando de sua confissão." (MOSSIN, Heráclito Antônio; MOSSIN, Júlio César O. G. Delação premiada: aspectos jurídicos. São Paulo: JH Mizuno, 2015. p. 224) 

A colaboração espontânea, assim, cria apenas, em tese, uma expectativa de direito à obtenção de um dos benefícios, não gerando, contudo, efeito erga omnes, ou seja, para terceiros estranhos ao acordo, justamente os que mais reclamam do instituto, implicando maior dinamismo e eficácia na apuração de fatos graves, para os quais se punia somente os operadores e nunca os mandantes. Essa, aliás, é justamente a razão benéfica do instituto, posto que permite chegar aos mandantes, obedecidos os paradigmas do domínio do fato. 

Havendo mais de um réu no processo-crime, somente o colaborador será beneficiado. Aliás, é a colaboração, por vezes, que leva ao processamento de outros infratores, os mais graves e, por vezes, acobertados pelo aparato estatal.

O advento dos dispositivos legais acima analisados, sem sombra de dúvida, decorreu da adoção de modelos alienígenas, conforme se verifica da citação extraída da indispensável obra Teoria Geral do Processo(3), in verbis: 

"Alguns ordenamentos jurídicos admitem a submissão dos acusados à pena pecuniária; caso de submissão é também o plea of guilty do direito inglês. Há também, no direito americano, a bargaining, autêntica transação entre a acusação e a defesa para a imposição de pena referente a delito de menor gravidade que a daquele que é imputado ao réu. No Brasil, o ordenamento vigente também contempla a transação em matéria penal, com base na previsão constitucional (CF, art. 98, inciso I), podendo o autor do fato submeter-se voluntariamente à pena não privativa da liberdade, antes mesmo da instauração do processo, por proposta do Ministério Público." 

Imperioso, outrossim, estabelecermos os parâmetros para a aplicação do instituto, desvinculando-o de distorções que comprometam a sua efetividade.

O Ministério Público e os agentes de investigação, num primeiro aspecto, devem planejar a sua atuação, cotejando a possibilidade da adoção do instituto para avançar na quebra da operacionalidade da organização criminosa, devendo acompanhar de perto todo o desenrolar da investigação, inclusive se deslocando aos locais onde a prova é colhida.

O acompanhamento próximo e planejado das diligências permite antever o que virá e cogitar o que é necessário e relevante, possibilitando estabelecer os termos em que a proposta deva ser feita ao indiciado ou imputado, bem como dimensionando tal colaboração, também assim a forma pela qual deva ser efetivada a proposta, propiciando a descoberta dos demais integrantes das associações, mostrando-se eficaz meio da produção de prova futura.

O trabalho de inteligência, nesse diapasão, tem se demonstrado crucial e de extrema importância não só para a sociedade, mas também para subsidiar as decisões dos órgãos de repressão estatal.

A integração entre os órgãos e as instituições públicas deve ser tomada por essencial para aplicação do instituto, devendo a questão da análise da oportunidade e da conveniência da realização de diligências ser discutida coletivamente, analisando-se os prós e os contras.

Imperioso consignar a necessidade de célere implementação do sistema único de segurança no país, unificando-se os registros e as ações entre as polícias, para que se evite desperdício de recursos e confrontações que alijam a finalidade e os objetivos centrais.

O trabalho de investigação e, consequentemente, a análise dos termos e a oportunidade de pactuar a delação, necessário destacar, devem ser realizados sem personalismo, sem centralização na pessoa que ocupa o cargo, deverão ser realizados sempre em nome do objetivo precípuo, a verdade real, que faça prevalecer o interesse público da descoberta da verdade, sem promoção pessoal, que tanto tem contaminado a atuação das autoridades públicas.

Não se pode permitir que a presença da mídia comprometa as atividades das instituições públicas, posto que o excesso de exposição sempre é prejudicial a qualquer atividade humana. Além disso, recomenda a ética que se deva apurar para depois divulgar, desde que assim o exija o interesse público, não se permitindo, todavia, qualquer linchamento moral dos investigados, muito menos julgamentos prévios, comportamento odioso, que macula o devido processo legal material, devendo o colaborador ser preservado, posto que está, bem ou mal, prestando um relevante serviço à comunidade.

Importante enfatizar a necessidade da presença do advogado para elaboração da formalização do acordo de colaboração, tendo-se em consideração, principalmente, para assegurar a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, evitando-se, de outro lado, a presença de terceiros interessados, que não sejam os relacionados com a defesa do colaborador, até para própria garantia de vida e segurança do delator e do vazamento de informações, ao contrário da prática usual até agora empregada.

O pacto com o delator deve ser realizado com respeito aos direitos de qualquer cidadão, com diálogo direto e franco, informando-se ao delator os benefícios decorrentes do seu ato, bem como as consequências boas e ruins dele advindas.

Nesse sentido, apesar das diversas dificuldades para apurar o delito, seja tecnológica ou qualquer outra, não há como prevalecer o entendimento de que as autoridades públicas venham a eleger um investigado/acusado como a "vaca sagrada" das investigações, ou seja, aquele investigado que aparenta ter a maior quantidade de informações a respeito da organização criminosa e com menor possibilidade de oferecer resistência psicológica em face do cumprimento de uma prisão, sendo pertinente citar o papel do doleiro Alberto Youssef na Operação Lava Jato, razão da oferta a ele a tábua da salvação, a colaboração premiada.

Para preservação da aplicação correta do instituto, tendo-se como paradigmas as garantias constitucionais de todo e qualquer indivíduo investigado, não há que se cogitar da possibilidade de a delação ocorrer em período de coação moral do acusado, o qual, depois de subjugado, já sem perspectiva de sair do cárcere, não tem outra opção a não ser aceitar tornar-se colaborador, comprometendo, assim, o compromisso com a verdade, dada a ausência de volitividade do agente.

A prisão, por vezes, se incompatibiliza com a possibilidade do pacto, dado que o encarcerado, que deve ser sempre assistido por seu advogado, pode ter comprometido o requisito da voluntariedade, visto que a circunstância aludida compromete a eficácia do acordo, inclusive no que tange à veracidade do conteúdo da delação, dado que obtida com demasiada dose de coação.

Com efeito, não se deve, inicialmente, antes do aprofundamento das investigações, respeitado o requisito da volitividade, dar integral crédito ao delator, sendo necessário averiguar a viabilidade de ser verídica a versão, uma vez que a real intenção, por desvirtuamento, pode ser a de dar tempo aos comparsas ou mesmo desviar o foco da apuração.

Cotidianamente, verificamos críticas de ordem ética dos doutrinadores quanto ao instituto, ao denominarem o delator de traidor, criticando que seja ele premiado pela traição. Todavia, não nos parece pertinente a ponderação, uma vez que a aplicação do instituto leva à descoberta de algo de mais valia para o procedimento, ou seja, a descoberta da verdade real, permitindo a persecução penal com relação a criminosos de estirpe e as suas associações, tendo por escopo não só a prisão de um ou mais integrantes de organização ou associação criminosa, mas também a apreensão de bens, documentos e produtos, bem como, ainda, a recuperação de valores desviados do erário público.

O pacto que estabeleça o prêmio ao delator é possível a qualquer colaborador, seja ele autor, coautor ou mesmo partícipe, não se fazendo qualquer restrição quanto à modalidade de concurso de agentes, desde que se premie a contribuição efetiva, no resguardo do bom nome e dos interesses da justiça. Sobredita eficácia, entretanto, não diz respeito à efetiva prisão dos envolvidos, mas à identificação de tais integrantes, permitindo a investigação criminal e a instauração do devido processo legal (due process of law) contra estes. 

A proposta dos termos da colaboração, por derradeiro, depende da eficiente atuação do Ministério Público, ante o princípio da inércia, nos termos do acima exposto.

4 Delação, Deontologia e Presunção de Inocência 

Conforme já exposto, o mérito ou o conteúdo da delação não deve ser analisado sob o ponto de vista da moralidade. Tal não é o espírito ou o objetivo do instituto. O delator, por evidente, tem pleno conhecimento dos delitos praticados e só se dispôs a delatar na falta de outra saída.

Assim, mesmo que se dê um prêmio a quem é tão culpado quanto os delatados, tal não macula o instituto da colaboração premiada, já que a partir das informações colhidas terá o Estado a possibilidade de buscar as provas aptas à eliminação da atividade criminosa dos envolvidos.

A alegação de que haveria inidoneidade do delator, sob o prisma da deontologia, não nos parece sustentável, uma vez que a delação proporciona combater um mal maior, muito mais danoso para a sociedade.

Não se discute, desta forma, a ética da postura do delator ao entregar toda a organização, os nomes dos comparsas e as atividades, assim como não nos ocupamos sempre de indagar sobre a moralidade do comportamento do cidadão em sociedade, posto que o importante, em sede de delação, é o que a versão do investigado proporciona.

Não sem pertinência, como é do entendimento de nossos Tribunais Superiores, ainda que os delatores já tenham firmado acordos anteriores, os descumprindo, ou, pior, ainda que tenham se socorrido de leviandades ou mentiras em outras ocasiões, não haveria óbice para a realização de novo acordo de delação premiada.

Desta forma, não se cogita indagar a conduta do delator, sob o prisma do juízo de valor, devendo ser observado o conteúdo da delação e os seus benefícios para desvendar e punir a criminalidade organizada.

As versões inseridas no acordo da delação premiada, não sem motivo, sob esse aspecto, não podem ensejar condenação, mesmo que o fato seja confirmado por mais de um delator, sendo necessária uma conjugação de elementos e evidências que deem suporte às informações prestadas, como também não se exige que apenas primários e de bons antecedentes possam se socorrer do benefício, uma vez que se deve observar a relevância da versão para o sucesso das investigações, independentemente de quem esteja realizando a colaboração, além disso, conforme já exaustivamente relatado, não devemos nos cuidar da ética do delator, assim como não nos preocupamos em analisar as razões que levam um indivíduo a tomar qualquer decisão cotidiana.

Sob outro enfoque, imperioso o estudo da aventada coercibilidade, uma vez que se insere como requisito do acordo de delação a voluntariedade do agente, condição sem a qual a informação não terá validade, por ferir o devido processo legal.

Tal análise se torna relevante, vez que, não raramente, o delator encontra-se privado de sua liberdade quando do pacto, estando, assim, sob forte pressão pessoal e familiar, fato que pode levá-lo a optar inadvertidamente para a delação, haja vista o impacto do temor de permanecer privado de sua liberdade, o que poderia ser usado como instrumento indevido de coerção moral.

Nesse sentido, ponderam Júlio César Mossin e Heráclito Mossin:

"A teor do que restou consignado em várias passagens deste escrito jurídico, a delação, para ter validade jurídica, deverá ser livre de qualquer coação, não obstante o que se nota na prática é que o agente muitas vezes é induzido por órgão da persecução criminal a entregar seus comparsas de crime, sob a promessa de uma retribuição que vai desde o decréscimo da reprimenda legal até o perdão judicial, que se constituiu causa de extinção da punibilidade.

Ficou evidenciado, igualmente, que com o ato de entrega dos companheiros do crime, o delator confessa sua participação ou coautoria. É que o ato dilatório está intimamente vinculado com a confissão. Assim é que o comportamento traiçoeiro somente pode ser feito por aquele que está envolvido na prática delitiva. Isso leva a concluir, de maneira abundante, como não poderia deixar de ser, que a testemunha não pode ser instrumento de delação, mesmo porque nessa qualidade não está ela sujeita a nenhuma premiação de ordem legal, mas unicamente assume o compromisso de dizer a verdade sobre aquilo que é objeto de sua narração fática (art. 203 do CPP).

Traçadas essas premissas, cumpre agora enfrentar o objeto central da análise, que é a influência da retratação da confissão na delação premiada.

Nos termos normativos contidos no art. 200 do Código de Processo Penal, 'a confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre-convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto'." (Delação premiada: aspectos jurídicos. São Paulo: JH Mizuno, 2015. p. 223) 

Os riscos são patentes. A prisão cautelar não pode e não deve ser utilizada como instrumento de barganha, posto que tal indevida utilização poderá ser erigida como crime de tortura, sendo conduta ilegítima e contrária ao ordenamento jurídico.

Tal não implica, contudo, a impossibilidade de pacto pelo detido, posto que, por hipótese, a iniciativa de delação poderá partir do interessado, devidamente acompanhado de seu advogado. Seria um contrassenso exigir que só os que estão em liberdade pudessem colaborar, dada a gravidade dos crimes que dão ensejo à delação, quase sempre sujeitando os indivíduos à indispen sável e legal prisão cautelar, derivada dos basilares requisitos da decretação da custódia preventiva.

Nesse sentido, cumpre salientar que o entendimento do Supremo Tribunal Federal considera a colaboração válida se for resultante de um processo volitivo, querido com plena consciência da realidade, escolhido com liberdade e deliberado sem má-fé (liberdade esta psíquica, e não de locomoção), bem como o objeto ser lícito, possível e determinável.

O delator, desta forma, apesar de recolhido ao cárcere, poderá manter plena capacidade física e psíquica de decidir qual conduta quer adotar, não se cabendo falar que não lhe resta outra opção que não a delação, posto poder, em tal hipótese, assumir o compromisso de forma livre e deliberada, portanto, sem poder cogitar da possibilidade de tortura emocional ou moral.

A razão da conclusão é o próprio interesse do delator, haja vista que não é só a autoridade pública a única interessada na delação, por conta do progresso de investigação. O investigado/acusado também possui interesse, pelo exato resultado da delação, ou seja, angariar vantagens com o acordo de delação premiada, quer de poder reduzir a reprimenda ou até ser agraciado com o perdão judicial.

Ademais, o acordo e a versão serão realizados entre o delator e a autoridade pública, na presença de seu advogado, profissional capacitado e responsável por garantir a legitimidade da decisão tomada pelo indivíduo disposto a colaborar, afastando a viabilidade da alegada coerção moral.

Além disso, dentro dos parâmetros legais, conforme enfatizado, cabe ao Ministério Público e ao delegado de polícia, aqueles que participam obrigatoriamente do acordo com o delator, prezar pela idoneidade do instituto, garantindo que todos os requisitos estejam presentes quando da composição firmada com o agente, sendo dever o respeito pelos direitos basilares do delator, sob pena de invalidação do pacto e da sua não homologação.

Conforme já anotamos, atualmente o magistrado não é parte integrante do acordo firmado entre as partes, cabendo a ele apenas a análise e a valoração das provas juntadas dos autos, obtidas a partir da colaboração do delator, para daí então proceder à homologação e ao cumprimento da avença.

No processo penal pátrio, como é cediço, todos são considerados inocentes até que se prove o contrário (princípio da presunção da não culpabilidade). Vale dizer que, independentemente dos depoimentos prestados por um ou mais delatores, não serão os delatados considerados culpados, tampouco condenados a quaisquer penas atribuídas ao tipo penal que estiver em investigação, sem lastro em outros meios idôneos de prova.

Nesse sentido, vale ressaltar o entendimento dos Professores Heráclito Antônio Mossin e Júlio César Mossin:

"A confissão, explique-se, é meio de prova e de defesa. Isso significa, em outros termos, que o juiz pode, com base no interrogatório, condenar o acusado, desde que os elementos fáticos que surgiram da sua admissão quanto à responsabilidade pela prática do fato delituoso se harmonizem com os demais elementos de prova, conforme previsão legal estampada no art. 197 do Código de Processo Penal ('o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância'). Retornando ao preceito inserido no supradito art. 200, agora com adição da consideração de que a confissão é também instrumento de prova, a retratação não significa um meio absoluto de o réu se livrar da culpabilidade por ele assumida, que para ter eficácia no campo probatório deve ser feita de maneira livre, sem qualquer tipo de coação." (Delação premiada: aspectos jurídicos. São Paulo: JH Mizuno, 2015. p. 225) 

A falta de paradigmas legais, todavia, exige bom senso dos aplicadores do Direito na elaboração e na homologação do pacto, devendo observar os paradigmas constitucionais e os postulados que guardam primazia dos direitos do réu ou investigado.

Nesse contexto, inaceitável pensar-se em postulações de prisões cautelares, visando à possibilidade de coerção para realização de delação, o que fere os principais postulados do devido processo legal e macularia a virtual avença.

5 Conclusão 

Verificamos que o instituto da delação veio para suprir a lacuna deixada pela falta de investimentos estatais nas atividades de investigação, sendo este um instrumento oportuno para dar alicerce à persecução penal e elucidar a participação de terceiros, dentre eles, eventuais agentes públicos que possam estar inseridos nas organizações criminosas.

Se é verdade que o instituto, dando lastro à investigação, é um instrumento social importante, de igual maneira serve aos interesses do delator, que poderá ter o perdão ou a minoração da reprimenda.

A legislação que estabelece a possibilidade de aplicação do instituto é lacunosa e desprovida de diretrizes, o que torna a aplicação dele um terreno fértil à hermenêutica, dando, todavia, margem a equívocos e a abusos.

Portanto, deve-se evitar a coercibilidade, provocada pela prisão anterior ao pacto, bem como o perigoso artifício de analisar o conteúdo ético da delação, incumbindo aos profissionais responsáveis pela árdua tarefa de aplicar o instituto, desta forma, a ponderação inevitável da garantia e da supremacia dos direitos dos investigados, não os minorando.

Diante da força que a delação provoca, a preocupação da comunidade jurídica está evidentemente voltada à garantia do princípio constitucional da presunção de não culpabilidade, uma vez que os agentes delatados apenas serão considerados culpados a partir da prolação da sentença condenatória, que deverá estar fundamentada não simplesmente nas informações alcançadas pelo acordo da colaboração premiada, mas, principalmente, por outras provas efetivamente produzidas.

A geométrica aplicabilidade do instituto, cada vez mais presente em nosso cotidiano, está a exigir bom senso dos hermeneutas, posto que o instrumento, apesar de ser eficiente na busca da verdade real, não pode dispensar as autoridades públicas da observância escorreita dos direitos dos delatantes e delatados, harmonizando-se a aplicabilidade do instituto com os direitos garantidos aos réus e investigados, sob o paradigma maior da dignidade da pessoa humana, adjetivo maior do Estado Democrático de Direito, visando, desta forma, impedir que futuramente venha o instituto a ser aplicado às avessas.

Conclui-se pela inviabilidade de exercício do pacto derivado de prisões cautelares que visam coagir o delator, embora necessariamente a prisão não seja óbice à delação, posto que se deve cuidar para que se atenda também aos interesses do delatante, haja vista tratar a delação de um direito subjetivo público daquele que contribui para com os interesses da justiça, cabendo a ele a iniciativa da propositura, com acompanhamento profissional, do estabelecimento do acordo.

 

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