A QUESTIONÁVEL EXIGÊNCIA DA CONFISSÃO PARA A CELEBRAÇÃO DO ANPP

Por Flávio da Silva Andrade -  

O acordo de não persecução penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do CPP (inserido pela Lei nº 13.964/2019), é um instrumento pré-processual voltado à solução consensual de casos criminais de média ofensividade, firmado entre o órgão de acusação e o investigado, assistido por seu defensor, com o intuito de evitar a propositura da ação penal; é um acordo de vontades, um negócio jurídico processual.

Embora possua semelhanças, o ANPP tem natureza diversa dos acordos de admissão de culpa. Apesar de a lei brasileira ter exigido "confissão circunstanciada", esse tipo de ferramenta não se presta, como esclarece Vítor Souza Cunha [1]"a definir a responsabilidade criminal", a aplicar pena, podendo ser compreendido "como um tipo de diversão que ocorre antes da propositura da ação penal, ou seja, trata-se de uma saída alternativa à persecução criminal". O referido autor esclarece que, diversamente dos acordos de admissão de culpabilidade, firmados após o juízo de admissibilidade da acusação pelo Judiciário, com o propósito de simplificação processual, o ANPP não objetiva impor pena de uma forma abreviada, mas intenta evitar a persecução criminal tradicional a partir do cumprimento de condições consensualmente ajustadas [2].

Diferentemente do que se verifica com a transação penal e com a suspensão condicional do processo, para a celebração do ANPP, a lei exige que investigado tenha confessado "formal e circunstanciadamente a prática da infração penal". O ANPP não passa de uma transação penal ampliada, mas com a exigência da confissão.

A confissão, segundo Hélio Tornaghi [3]"é a declaração pela qual alguém admite ser autor de crime. (...) Confessar é aceitar, como verdadeira, a autoria de um fato ilícito, puro e simples, ou de circunstância exacerbante". E a confissão exigida pelo artigo 28-A é circunstanciada, isto é, detalhada, integral. Por conseguinte, só se poderia aceitar a confissão sem reservas, simples, na qual o investigado não invoca qualquer fato em seu benefício. A confissão qualificada, em que o confitente alega fatos em seu favor, visando a excluir a tipicidade, a ilicitude ou a culpabilidade ou pretendendo uma desclassificação, não pode, a rigor, autorizar o ANPP.

Num contexto em que promotores e juízes têm sido mais rígidos ou bem flexíveis quanto à exigência da confissão, ocasionando aplicação assimétrica da lei (o que não é nada desejável), tal requisito vem sendo avalizado e também criticado no campo doutrinário. Rodrigo Cabral [4], por exemplo, defende a constitucionalidade desse requisito, afirmando que se destina à formação e ao robustecimento da opinio delicti, ao fortalecimento da justa causa necessária para embasar o acordo, garantindo que "não se está a praticar uma injustiça contra um inocente". No mesmo sentido se posiciona Fábio Guaragni [5], asseverando que a confissão circunstanciada é necessária para se obter o devido esclarecimento do caso penal e viabilizar a resolução antecipada do processo, constituindo uma lícita contrapartida exigida do investigado/sujeito ativo do delito.

De outro lado, parte da doutrina sustenta que o requisito da confissão viola a garantia da não autoincriminação forçada, "materializada no artigo 5º, LXIII, da CF e prevista na CADH (artigo 8º, § 2º, g)", pois o "acusado não pode ser obrigado a autoincriminar-se e produzir, direta ou indiretamente, provas que levem à sua culpabilidade", já que se está numa fase pré-processual, em que a denúncia não foi oferecida e não há chance de contraditório [6]. Essa corrente entende que o investigado é impedido de exercer o direito ao silêncio, é forçado a se autoincriminar, na medida em que é obrigado a confessar para ter direito ao acordo.

A questão é delicada, de alta complexidade, havendo de ser resolvida pelo STF no HC 185913/DF, da relatoria do ministro Gilmar Mendes e afetado ao plenário em setembro de 2020. Além de definir sobre a natureza da norma do artigo 28-A do CPP, aclarando sobre sua aplicabilidade aos processos que já estavam em curso quando entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, a Corte deve decidir se "é potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo". O tema também é objeto de debate na ADI nº 6304, na qual se sustenta que a obrigação legal de confessar a prática de crime viola o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF).

Conquanto se compreenda que a exigência da confissão foi uma opção de política criminal do legislador, algumas razões indicam que esse requisito deve ser dispensado, isto é, não pode ser visto como obrigatório para que ao investigado seja apresentada uma proposta de acordo. Como muito bem aduzido por Walter N. da Silva Júnior [7], mesmo que "encarado o ANPP sob a justificativa de que seria uma forma de evitar que o inocente não seja submetido ao acordo, o sistema apresentaria uma solução negociada para o culpado, enquanto o inocente não poderia dispor dessa alternativa, senão enfrentar o processo". Aqui reside o principal fundamento para se dispensar (e até reputar inconstitucional) esse requisito, pois o inocente se vê privado de optar por uma solução rápida e eficiente do caso penal pela via do consenso. Se quiser celebrar o acordo para ver o caso logo resolvido (e não ter de se submeter ao processo criminal), terá de confessar um delito que não praticou. E muitas vezes a não persecução penal é mais vantajosa do que enfrentar o risco de uma possível condenação.

Ainda, da mesma maneira que a transação penal, o ANPP foi idealizado a fim de evitar a instauração da ação penal e não para promover a simplificação processual, a terminação antecipada do processo, com aplicação de pena por meio de um rito abreviado calcado na admissão de culpa. Como visto, não é um instituto destinado a fixar responsabilidade penal, mas uma saída alternativa ao processo criminal. Então, se a ferramenta foi concebida para abrigar uma solução consensual numa fase pré-processual (antes do oferecimento da denúncia), não tendo intuito punitivo (de aplicar pena), mas de estabelecer o cumprimento consensual de condições, é melhor que não se exija a confissão e que o eventual acordo seja embasado noutros elementos de prova colhidos pelas autoridades estatais.

Além de se conformar melhor à Constituição, essa posição evita que a confissão volte a ser impropriamente enxergada como regina probationum. Casara afirma que "não se pode descartar que a aposta no consenso penal estimula a permanência de vários vícios do sistema inquisitivo, tais como a busca da confissão, como a ‘rainha das provas’, a pressão sobre o imputado (...)" [8]. A intenção de apoiar-se em demasia na confissão pode importar "na coadjuvação das técnicas investigativas" [9]. A dispensa da confissão também impede, como adverte Schmitt de Bem [10], que ela venha a se tornar uma moeda de troca, como se o investigado, "para ser ajudado, precisa ajudar ‘circunstanciadamente’ (...). Se não o fizer, será processado". Há reais riscos de desvirtuamentos dessa natureza.

Ademais, na verdade, a par das considerações acima, a exigência da confissão tem gerado óbices à celebração do acordo, mesmo quando já há elementos bastantes para o amparar. Ela acaba por antecipar uma discussão sobre o mérito da causa sem que uma denúncia tenha sido oferecida, sem que a hipótese acusatória tenha sido regularmente formalizada. Ainda, o investigado pode confessar pensando em celebrar o acordo, mas este pode não ser proposto ou pode não ser homologado. Nesse caso, o MP obterá uma vantagem, pois naturalmente desejará utilizar essa confissão como elemento para respaldar a propositura da ação e depois convencer o julgador acerca da responsabilidade penal do acusado.

Todavia, uma coisa é a confissão ocorrer na delegacia, por exemplo, desligadamente de conversações tendentes à celebração do ANPP; outra coisa é ela se verificar diante do promotor justamente para atender à exigência para a celebração do acordo e este depois não se consumar por opção do MP ou por não haver a homologação judicial. Nesses casos, não ultimada a pactuação, não haveria quebra da boa-fé a obstar o uso de tal confissão?  Cabral [11] afirma que, "na hipótese de o acordo não ser homologado, volta-se ao status quo ante, não sendo possível, por força do princípio da lealdade e da moralidade administrativa, o seu uso em prejuízo do investigado". Daí a importância de se avaliar o contexto da confissão e o porquê de o negócio jurídico não ter sido pactuado. É nesse sentido o entendimento de Vítor Souza Cunha [12], que recorda que o § 6º do artigo 3º-B da Lei nº 12.850/2013 "proíbe a utilização pelo órgão persecutório das informações e provas apresentadas pelo colaborador que esteja de boa-fé".

A cobrança do requisito em comento (confissão) também leva a uma outra discussão. Havendo a revogação do acordo por descumprimento das condições, o MP pode fazer uso da confissão formal e circunstanciada para fortificar a justa causa e depois sustentar o pleito condenatório? Vozes têm surgido no sentido de que, nos casos de descumprimento do ANPP, "a confissão do indiciado no momento da formulação do negócio deve ser completamente esquecida", ante a alegada inconstitucionalidade decorrente da ofensa à garantia do nemo tenetur se detegere [13]. Nesse sentido é também a compreensão de Lopes Jr. e Higyna Josita [14], que refutam essa possibilidade porque ainda não havia processo regularmente instaurado.

Entretanto, se o investigado, livre e voluntariamente, confessou a prática delitiva e, espontaneamente, assistido por seu defensor, veio a celebrar o ANPP, evidentemente nada impede que o órgão de acusação faça alusão a tal confissão, se o pacto for quebrado por sua culpa e a denúncia for oferecida. Não tem sentido que tal confissão se converta em algo imprestável, que se torne completamente inutilizada pelo descumprimento e revogação do acordo, quando a rescisão da avença se dá por culpa do investigado. Ainda que revogada a avença, aquela confissão extrajudicial continua a ter valor jurídico e pode servir para reforçar a justa causa. Sobre essa questão, Souza Cunha [15], com propriedade, assinala:

A boa-fé também se mostra útil como referencial interpretativo para a solução desse caso. Embora não disponha o CPP expressamente sobre todas as consequências decorrentes da rescisão do acordo de não persecução, sinaliza que comportamentos contraditórios e contrários ao dever de lealdade e cooperação devem ser desestimulados. Assim o faz quando prevê, no § 11 do artigo 28-A, que o descumprimento do acordo pelo investigado pode ser utilizado pelo MP como justificativa para o não oferecimento de suspensão penal do processo. Esse dispositivo pode ser lido como a aceitação legal de que um comportamento violador da boa-fé, entendida como exteriorização de comportamentos coerentes e leais, pode implicar a perda de situações jurídicas processuais.

A situação em comento é diversa daquela antes referida, em que a celebração do acordo de colaboração premiada é frustrada "por iniciativa do celebrante", caso em que este "não poderá se valer de nenhuma das informações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé, para qualquer outra finalidade" (§ 6º do artigo 3º-B da Lei nº 12.850/2013).

Nessa ordem de ideias, revela-se adequado o entendimento expressado pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos MPs dos Estados e da União (CNPG) e pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM) por meio do enunciado nº 27: "Havendo descumprimento dos termos do acordo, a denúncia a ser oferecida poderá utilizar como suporte probatório a confissão formal e circunstanciada do investigado (prestada voluntariamente na celebração do acordo)". Nesse sentido também é o enunciado nº 24 PGJ-CGMP do MPSP a respeito da Lei nº 13.964/2019: "Rescindido o acordo de não persecução penal por conduta atribuível ao investigado, sua confissão pode ser utilizada como um dos elementos para a oferta da denúncia".

Não se pode perder de vista que o problema central se situa no desacerto ou na inadequação da exigência da confissão para se celebrar esse tipo acordo, requisito que se mostra desnecessário (em vista da possibilidade de a justa causa ser retratada por outros elementos) e ainda resvala nas garantias constitucionais do investigado. Todavia, se ele confessou de forma livre e consciente e se, acompanhado de sua defesa técnica, voluntariamente firmou (e foi homologado) o ANPP, não há razão para que tal confissão seja depois completamente desconsiderada. Há de se entender que o valor probatório dessa confissão é o mesmo daquela prestada perante a autoridade policial e que, sobretudo quando retratada em juízo, jamais servirá para respaldar uma condenação se não estiver corroborada por outros suficientes elementos de prova colhidos, no curso da ação penal, em contraditório (artigo 155 do CPP). Perceba-se que, mesmo se confirmada diante do juiz quando da audiência para a homologação do acordo, havendo depois a rescisão, tal confissão equivalerá a uma confissão extrajudicial, uma vez que prestada numa fase pré-processual.

Concluindo essas rápidas reflexões sobre o controverso requisito da confissão para celebrar o ANPP, impõe-se assinalar que o silêncio do investigado na fase policial/extrajudicial ou a negativa de responsabilidade por ele ali manifestada não significa que não terá interesse em resolver o caso por meio da ferramenta em estudo. Nessa linha é o enunciado nº 3 da I Jornada de Direito e Processo Penal do CJF: "A inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal".

Enfim, nesse cenário, à vista de todo o exposto, parece que, visando a compatibilizar com o Texto Constitucional o preceito legal que instituiu o ANPP, é mais adequado entender no sentido da dispensabilidade do requisito da confissão quando as autoridades estatais já reuniram elementos suficientes para formar a justa causa, evitando discussões quanto a existir, ou não, violações a direitos e garantias constitucionais do investigado. O assunto é dos mais relevantes, e a comunidade jurídica aguarda ansiosa a deliberação da Corte Suprema a seu respeito.

 

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