A Redescoberta da Vítima para o Direito Penal

Carlo Velho Mais -  

A história do Direito Penal revela que a vítima já protagonizou pessoalmente a punição do delinquente na chamada "fase da vingança privada", onde a retribuição do delito partia do próprio ofendido ou de pessoas a ele vinculadas. No sistema privatista da Antiguidade, a vítima possuía uma postura ativa frente à ofensa sofrida, visando, sobretudo, à retomada da harmonia comunitária. 

Uma das conquistas do Iluminismo foi justamente a "neutralização" da figura da vítima, com o Estado assumindo o monopólio do jus puniendi e adquirindo a prerrogativa legítima de instrumentalizar a pacificação social, por intermédio de seu aparato técnico-burocrático, de modo a censurar aqueles que transgredissem os precedidos normativos. O ofendido passou a participar como elemento informador de eventuais lesões a bens jurídicos sofridos (objeto material do delito) e a ação estatal passou a ter um reflexo meramente simbólico no apaziguamento das angústias deste sujeito. 

Mas há quem questione o caráter evolutivo desta mudança de paradigma, uma vez que a delegação da real titularidade do direito de punir acabou afastando a construção de soluções de acordo com os interesses pessoais das vítimas. O ofendido acabou se tornando um mero "objeto" (coisificação), o agente passivo, ou simples meio de prova para se alcançar o autor do delito. Com isso, esvaiu-se qualquer pretensão subjetiva. O interesse estatal no cumprimento da norma, com a condenação do delinquente, acabou sobrepondo o interesse individual por trás da punição. Assim, desconsideraram-se as necessidades e os anseios de justiça das vítimas.

Este "esquecimento" perdurou por aproximadamente três séculos, até que a humanidade se deparou com o "holocausto", a partir do qual operou-se uma reavaliação da importância dos direitos humanos. O genocídio ocorrido na 2ª Guerra Mundial deu origem a uma nova abordagem criminológica, denominada "vitimologia", que passou a estudar o papel desempenhando pelas vítimas na ocorrência do fato típico, bem como a questão da assistência judicial, moral, psicológica e terapêutica para os vitimizados. 

A restauração da vigência da norma jurídica violada pela aplicação de uma sanção penal deixou de ser suficiente para satisfazer o desejo de reparação. Surgiu a necessidade da construção de mecanismos de proteção materiais e processuais. 

Em pouco tempo, a sociedade passou a congregar múltiplas formas de vitimização, tais como catástrofes, crises e erupções de violência, medo e pânico coletivo face ao crime. Os movimentos sociais trouxeram reivindicações importantes neste sentido. A criminologia rompeu com o modelo positivista de orientação unidimensional, voltada ao crime e ao delinquente, e passou a adotar uma perspectiva interacionista (labelling approach), cuja principal característica era demonstrar que as instâncias de controle social podiam exercer um papel fulcral na seleção, estigmatização e vitimização. A lei penal converteu-se na "magna carta da vítima", superando a clássica noção de ser, antes de tudo, a "magna carta do delinquente". 

O crescimento dos movimentos de vítimas (gestores da moral coletiva), dentre eles as associações de ecologistas, feministas, consumidores, vizinhos, pacifistas, defensores da não discriminação contra as minorias, organizações não governamentais (ONGs) que defendem direitos humanos, etc., nada mais é do que uma resposta ao crescimento de uma sociedade altamente industrializada e automatizada (sociedade do risco).

As vítimas haviam sido excluídas do controle formal executado pelas agências estatais. Porém, determinados grupos não aceitaram essa situação e se organizaram para enfrentar a situação e reivindicar mais poder, adquirindo enorme força nos últimos anos, particularmente porque seus discursos passaram a ser encampados por políticos que fazem da "lei e ordem" sua principal plataforma eleitoral. É a construção de uma política criminal de (re)valorização da vítima, que encontra ampla aceitação a nível mundial. 

O legislador confere à vítima um papel novo, de acordo com o qual uma determinada ilicitude pode constituir um delito ou um mero conflito, conforme o grau de intervenção do ofendido na disputa. Ademais, atribuem-se aspectos jusprivatistas a este novo Direito Penal, agregando uma terceira via de sanção, qual seja, a da reparação da vítima, que passa a se somar à pena e à medida de segurança. 

A política de inclusão da vítima ganha cada vez mais espaço, propugnando sua efetiva intervenção no processo, na busca por um ressarcimento. Para tanto, é necessário que o processo penal seja orientado para a composição civil, aplicação de pena não privativa de liberdade, mediação e reconciliação entre as pessoas envolvidas, logrando assim maiores possibilidades de sucesso frente à ideia exclusivamente retribucionista ao delito. 

Sabe-se que, na relação criminosa, a vítima interage com o agente e com o ambiente, e pode, desta forma, às vezes, ter colaborado para o evento criminoso. Por "vítima"passou-se a denominar o sujeito que sofre as consequências (diretas e indiretas, mediatas e imediatas) do crime. Não se confunde, pois, com o "sujeito passivo" ou o "titular do bem jurídico", até porque todo e qualquer delito, mesmo os uniofensivos, repercutem não só ao titular do bem lesionado, mas também ao Estado, enquanto sociedade política e, por conseguinte, à própria sociedade.

O Direito Penal não se serve da proteção da vítima, ou seja, de todos aqueles que sofrem os efeitos do delito. O Direito Penal se presta à tutela dos bens jurídicos que, com seus titulares, guardem uma relação de dependência. A licença para a utilização do Direito Penal como forma de gestão dos danos auferidos pela vítima implica num ímpeto de otimização dessa gestão, já que se terão diversas vítimas para uma mesma ofensa ao bem jurídico. É o caso particular, por exemplo, dos abusos sexuais reais e simulados de crianças e adolescentes. Mesmo sendo a dignidade sexual infanto-juvenil o bem violado, os consectários desta lesão são sofridos pela cultura familiar, como os pais da criança vitimizada. Este conceito abrangente de vítima permite a visualização de uma sociedade majoritariamente amedrontada (sociedade do medo). 

A partir da necessidade de se abandonar a visão simplista do crime, em que, de um lado, teríamos uma pessoa totalmente inocente (vítima), e de outro, uma pessoa totalmente culpada (criminoso), surge o campo da "vitimodogmática", que investiga a contribuição da vítima para a ocorrência do delito e a repercussão desta na fixação da pena do autor, variando de uma total isenção a uma simples atenuação. 

Refere-se hoje, cada vez com maior insistência, como uma nova e autônoma finalidade da pena o propósito de com ela se operar a possível concertação entre o agente e a vítima através da reparação dos danos - não apenas necessariamente patrimoniais, mas também morais - causados pelo crime. 

Trata-se da posição da vítima nos âmbitos da tipicidade, ilicitude e culpabilidade, com a imputação objetiva, a auto e a heterocolocação em perigo e o consentimento do ofendido. 

Na concepção de BerndSchünemann, a "vitimodogmática" é uma regra para eliminar a penalização quando a vítima, com sua conduta, não merece e não necessita de proteção. Desenvolve-se, assim, o princípio da auto responsabilidade da vítima, mediante o qual o ofendido deve responder por seu próprio comportamento, a fim de evitar que este seja a causa ou o antecedente do ato que o afete. Significa dizer que a vítima deve tomar as precauções necessárias para evitar a afetação de seus bens jurídicos, caso contrário, estes ficarão excluídos da tutela estatal, acarretando a atipicidade. 

Segundo Manuel Cancio Meliá, a questão central das aproximações vitimodogmáticas é a de determinar se a corresponsabilidade da vítima no fato delituoso pode ter influência sobre a valoração jurídica penal do comportamento do autor. Assim, a "vitimodogmática" visa à exclusão do crime dado o comportamento da vítima, através da redução teleológica dos tipos penais fundamentada na recondução a uma intervenção mínima do Direito Penal como corolário da ultima ratio. 

Ao passo que aprimora-se este movimento de atenção às vítimas, tanto no Direito, quanto no Processo Penal, observa-se a redução das garantias dos acusados e o recrudescimento do sistema penal. Porém, em que pese a sobreposição que se evidencia, nos últimos tempos, da figura da vítima aos bens jurídicos alvos de tutela, não pode essa inversão implicar a relativização ou o completo abandono dos princípios constitucionais-penais limitadores clássicos (tais como a intervenção mínima, a subsidiariedade e a fragmentariedade). Isso porque, como bem aponta o criminólogo norueguês Nils Christie ao tratar do poder adquirido pela vítima na esfera penal. 

Percebemos um fortalecimento do poder da vítima no interior do sistema do direito penal em suas mais variadas fases. A vítima é, por vezes, convidada pelo acusador formal, é informada sobre planos e estratégias da acusação, pode contribuir com suas observações para o promotor, comparece às audiências do acusado e, em alguns sistemas, pode se manifestar ao juiz sobre a aplicação da pena. Muitas vezes, as vítimas também ganham o direito de serem representadas por seus próprios advogados. E se tudo terminar com um sentença condenatória, especialmente a pena privativa de liberdade, é dado à vítima o direito de ser informada sobre as condições do cárcere, sobre eventual progressão de regime e sobre a concessão de livramento condicional do acusado condenado. O poder está nas mãos e na boca da vítima. É um desenvolvimento que fatalmente conduzirá a mais encarceramentos e recrudescimento das condições nas instituições penais. 

Entendemos que é viável uma convivência harmônica entre os fins primordiais do Direito Penal e do Processo Penal e o papel de relevo que vem sendo conferido à vítima, mormente no que se refere às respostas punitivas e sua compatibilidade com o sentimento de justiça desta e da própria sociedade. 

Sem dúvida, as vítimas merecem o devido respeito e reparação e devem ser escutadas; contudo, é preciso ter em conta que suas vozes não podem simplesmente suplantar a voz que (ainda) é a mais fraca do processo: a voz do réu. Se o processo penal serve, em última análise, para impedir o arbítrio do Estado na aplicação da pena, por meio de mecanismos formais que deverão ser observados pelas partes, é preciso que se evite transformá-lo num instrumento oficial de vingança à disposição das vítimas. Do contrário, estar-se-ia regredindo a um Estado natural (pré-social), onde, na concepção de Hobbes, imperaria a guerra de todos contra todos e cada um seria governado por sua própria razão.

 

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