A ressuscitação da pena de morte

Frederico Afonso Izidoro -  

No final do mês passado a Turquia deu um “susto mundial”: uma tentativa de golpe de Estado, frustrada pelo presidente turco, Recep Taiyyp Erdogan. 

Participaram ativamente do golpe, segundo o governo Erdogan, militares, policiais, magistrados, procuradores, governador, prefeitos e outros funcionários do próprio governo. 

Um golpe de Estado malsucedido, traz consequências óbvias de retaliação aos golpistas, então, o governo turco iniciou uma “caça”, com milhares de prisões, cerceando o maior bem da vida que é a liberdade em todos os seus gêneros. 

Um maior problema entretanto se avistou. Erdogan, em entrevista à CNN afirmou que “o povo turco quer a pena de morte para os envolvidos na tentativa de golpe. O povo tem a opinião de que esses terroristas deveriam ser mortos. Por que eu deveria mantê-los e alimentá-los em prisões pelos próximos anos, isso é o que o povo diz”. 

Com a premissa básica de um país democrático, no qual, todo poder emana do povo, e, segundo Erdogan, “o povo quer a pena de morte”, seria isso possível? 

Erdogan “joga a morte” para o Parlamento, afirma que a competência para o restabelecimento da pena capital é deles, mas que a sanção é sua, e que sancionaria tal medida. 

As informações fornecidas por Erdogan alertaram diversas autoridades, como por exemplo o chanceler da Bélgica, Didier Reynders, o qual afirmou sobre o eventual retorno da pena de morte significaria o fim do processo de adesão da Turquia à União Europeia. “Não podemos imaginar isso num país que queira aderir à União Europeia. [...] Teremos de ser muito duros hoje. Condenamos o golpe. Mas a resposta precisa estar dentro do estado de direito”. No mesmo sentido o secretário de Estado americano, John Kerry afirmou: “Pedimos ao presidente Recep Tayyip Erdogan que mantenha a calma, garanta o estado de direito e mostre respeito pelas instituições”. 

O governo turco aboliu a pena de morte em 2004, sendo que já havia 20 anos da última execução (1984). A abolição da pena de morte teve relação direta com a pretensão de adesão ao bloco europeu. 

A Turquia, um país democrático, assim como o Brasil, também é membro fundador das Nações Unidas (ONU), ou seja, faz parte “dos países que assinaram a Declaração das Nações Unidas de 1º de janeiro de 1942 ou que tomaram parte da Conferência de São Francisco, tendo assinado e ratificado a Carta”, conforme os próprios dizeres da ONU em sua página oficial (https://nacoesunidas.org). 

No jornal “O Estado de São Paulo”, do dia 20 de julho, foi publicado que “A ONU alertou ontem que a independência do Judiciário na Turquia está sob risco depois das prisões de juízes e procuradores e, em reuniões com representantes de Ancara e indicou que o governo de Recep Tayyip Erdogan estará violando o direito internacional se reinstalar a pena de morte, como o presidente sugeriu na segunda-feira”. (Caderno Internacional, p. A10). 

Haveria então uma violação de direito internacional na reinstalação da pena de morte? 

O alto comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Ra’as al-Hussein afirmou que “A Turquia aboliu a pena de morte em 2004, mas não a pratica desde 1984. [...] “Reintroduzi-la seria uma violação das obrigações da Turquia em relação ao direito internacional”. 

No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, temos dois sistemas: universal (onusiano) e os regionais (americano, europeu e africano). 

O sistema universal tem como base uma espécie de “Bill of Rights” (não a original de 1689, por óbvio) composto pela Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e os Pactos Interacionais de 1966, abordando os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. 

A Declaração Universal em seu artigo 3º afirma que “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. 

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDC), traz o importantíssimo “núcleo duro ou inderrogável” de direitos humanos no art. 4º, § 2º, o qual não permite, nem em “situações excepcionais que ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente” que se derroguem algumas garantias: direito à vida; proibição da tortura; proibição da escravidão e servidão etc. 

O PIDC tem um caráter vinculante, a Turquia é signatária, portanto, atendendo inclusive um dos princípios da própria ONU – “Todos os Membros, a fim de assegurarem para todos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de Membros, deverão cumprir de boa-fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente Carta”, deveria cumprir o que, dentro da sua própria soberania, concordou com os termos do PIDC, mantendo seriedade no âmbito internacional. 

O direito à vida não é absoluto, pois a própria norma internacional prevê a retirada da vida: “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”, ou seja, dentro do devido processo legal, a pena capital existe e é usada em muitas partes do mundo, mas com relação à pena de morte, a norma é rígida – “Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais graves, em conformidade coma legislação vigente na época em que o crime foi cometido [...]”. Em uma hermenêutica simples, onde foi abolida, abolida está e não poderá ser restabelecida! 

No âmbito da Convenção Europeia de Direitos Humanos (da qual a Turquia faz parte), o Protocolo n° 6 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (nome técnico da Convenção) relativo à abolição da pena de morte afirma que “A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado”. 

Cabe à ONU, dentre outros propósitos, “manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz”. 

Uma das características básicas dos direitos humanos é o não retrocesso, conhecido de forma romanceada por alguns por “efeito cliquet” em alusão ao equipamento de segurança dos alpinistas para não retrocederem em suas escaladas, ou seja, um direito humano alcançado, não retroage (ou não deveria retroagir). 

Erdogan pensa que é Jesus Cristo para ressuscitar! Numa analogia ao nosso tipo penal de suicídio, está induzindo, instigando e deixando à disposição para o seu “auxílio material” a ressurreição da pena de morte. 

Morte à pena de morte! 

 

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