José Antonio Dias Toffoli -
Ao impulso da História, em quase 30 anos desde a promulgação da Constituição de 1988, cujo aniversário se comemora em 5 de outubro de 2018, a Justiça brasileira passou por profundas mudanças. Foram muitos os desafios e os obstáculos, mas vivenciamos um processo contínuo de amadurecimento e fortalecimento das instituições e da democracia brasileira. Temos muito o que comemorar, mas há ainda muito o que transformar.
O Poder Judiciário de hoje é diferente daquele pré-Constituição de 1988 — o qual se encontrava mantido na “estufa” pelo regime autoritário, para utilizar a expressão de Wernneck Vianna na obra Corpo e Alma da Magistratura Brasileira —, quando basicamente se limitava à função tradicional de resolução de conflitos individuais entre os particulares ou entre os cidadãos e o Estado, aplicando a lei aos casos concretos específicos.
A Constituição de 1988, atendendo o clamor do povo brasileiro — sedento por Justiça —, elencou um extensivo rol de direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e de minorias. Para assegurar-lhes cumprimento e efetividade, a Carta Cidadã conferiu plena independência aos magistrados e total autonomia ao Poder Judiciário, o qual passou a exercer um papel proeminente na vida social, econômica e política brasileira.
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. Observa-se, mundialmente, o fortalecimento dos respectivos Poderes Judiciários nacionais, tanto em países de common law como em países de civil law. Vide, por exemplo, o caso da França, baluarte da supremacia do parlamento e da separação dos poderes — fruto da grande Revolução Francesa —, onde a magistratura historicamente era vista com forte desconfiança. Eis que a reforma constitucional de 2008 conferiu ao Conselho Constitucional da República Francesa poderes para realizar o controle de constitucionalidade das leis repressivamente (a posteriori) — até então, o controle de constitucionalidade estava limitado ao modelo preventivo.
No mesmo sentido, caminhou a Inglaterra (berço do common law), onde, sobressaindo, mais uma vez, a supremacia do parlamento, competia ao Comitê de Apelações da Câmara dos Lordes realizar o controle de constitucionalidade das leis. Em 2005, o Constitutional Reform Act conferiu à Corte Constitucional do Reino Unido essa prerrogativa, que, sob forte resistência, somente foi efetivada em 2010.
A Justiça contemporânea passou, portanto, a ser, cada vez mais, demandada para resolver questões de grande complexidade, sejam elas de natureza social, ética, cultural, econômica ou política. No Brasil, o Judiciário saiu daquela “estufa” que o inibiu por décadas e conquistou seu espaço na sociedade e na vida cotidiana do cidadão, passando a atuar constantemente no primeiro plano da vida pública.
Com a TV Justiça, ele adentrou o lar das famílias brasileiras. Com julgamentos televisionados, suas decisões passaram a ser submetidas não apenas aos controles recursais, mas ao escrutínio público, sendo aplaudidas por uns e desaprovadas por outros, como é próprio das democracias. Como órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal não é mais “esse outro desconhecido” dos tempos de Aliomar Baleeiro e de sua clássica obra.
A sociedade brasileira que, nos últimos anos, havia voltado seus olhos para os Poderes Executivo e Legislativo, passou a cobrar, cada vez mais, uma Justiça eficiente, coerente e previsível, pautada pela transparência. Para fazer frente a essa demanda crescente de protagonismo e a uma sociedade cada vez mais plural, aberta e complexa — a chamada “sociedade em rede” de Manoel Castells —, o Judiciário também precisa ser dinâmico, flexível e cooperativo.
Todas as novas teorias de gestão em voga no século XXI baseiam-se no tripé eficiência, transparência e responsabilização. Esses fundamentos são válidos para a administração privada e são ainda mais relevantes na governança pública, inclusive na do Poder Judiciário. Busca-se, assim, a substituição do modelo burocrático tradicional, idealizado por Max Weber, por um modelo de governança eficiente, transparente e, sobretudo, democrática, visto que está voltada para o cidadão. Como já falava o magistrado paulista Moura Bittencourt na obra O Juiz, da década de 1960, é preciso conciliar a arte de julgar com a arte de judicar. A Justiça brasileira precisa modernizar-se e entrar efetivamente na Era da Gestão Judicial.
Uma Justiça eficiente exige que o tempo de duração dos processos seja administrado de forma mais ágil, pois os conflitos do mundo pós-moderno atuam em um ritmo cada vez mais intenso. É desafiadora a missão de tornar efetiva a prestação jurisdicional de âmbito nacional.
Mais do que as leis e as estruturas processuais, é preciso mudar a cultura do litígio. O país hoje judicializa a boa-fé, o cotidiano, a política. Tudo depende do carimbo judicial. Para fazer frente a essa “explosão de litigiosidade” — para usarmos as palavras de Boaventura Sousa Santos —, precisamos estimular a cultura da pacificação social e da valorização do diálogo, e não a cultura do conflito. O Judiciário torna-se mais eficiente quando estimula soluções autocompositivas e meios adequados de resolução de conflitos — instrumentos céleres e econômicos para oferecer justiça.
Por outro lado, o compromisso com a accountability exige transparência, prestação de contas, controle e responsabilização, todos inerentes ao ideal democrático e republicano. A autonomia e a independência do Judiciário não são e não devem ser subterfúgios do controle e da responsabilização tanto pelos órgãos institucionalizados quanto pela sociedade, destinatária imediata da eficiente prestação jurisdicional. A publicidade dos processos judiciais e a fundamentação das decisões são importantes instrumentos de controle do Judiciário, mas não são os únicos. Juízes e tribunais devem prestar contas do exercício de suas funções estatais, sejam elas jurisdicionais ou administrativas.
Historicamente, há no Brasil a ideia de que o Poder Judiciário é excessivamente fechado, formal, distante dos anseios sociais e isento de qualquer responsabilidade. Como não poderia deixar de ser, a sociedade tem cobrado um Poder Judiciário menos elitista, mais responsável e próximo da realidade social.
Não há dúvidas da importância de medidas para a valorização da magistratura nacional e dos servidores da Justiça. Todos os esforços possíveis devem ser empreendidos nesse sentido, mas — é importante que se diga — não há espaço para excessos e diferenciações. O juiz não pode medir os outros com régua distinta da que ele usaria para medir a si próprio. Precisamos dar o exemplo!
Nessa busca incessante, o Conselho Nacional de Justiça vem empreendendo significativos esforços na busca por uma maior integração, sistematização e modernização do Poder Judiciário Nacional, aperfeiçoando a coleta de dados, realizando diagnósticos, estabelecendo metas e aperfeiçoando os sistemas de controle. À frente desses esforços, a ministra Cármen Lúcia, como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, tem coordenado, de forma democrática e dialógica, o enfrentamento dos desafios — que não são poucos nem fáceis — com que o Poder Judiciário tem se deparado nos últimos anos.
A democracia é essencialmente pluralista. E plural também são os tribunais, com a natural convivência, em seu seio, de juízes com concepções diversas de mundo e do Direito. Não é fácil conciliar e coordenar as diferenças. Mas o futuro do Judiciário e o Judiciário do futuro dependem, cada vez mais, do diálogo e da cooperação institucional.
Nesse contexto, não tem faltado o apoio do Poder Executivo e do Poder Legislativo na iniciativa e na aprovação de projetos legislativos que aperfeiçoem o sistema de justiça, em todas as suas áreas. A Lei 12.850/2013 é o exemplo maior disso! Ao definir organização criminosa e dispor sobre os meios de investigação e de produção de provas, com a possibilidade de realização da colaboração premiada, tem sido essencial nas investigações dos últimos anos.
Com as crises recorrentes da política brasileira, mais uma vez, o Poder Judiciário é destacado para arbitrar conflitos políticos e sociais e julgar denúncias, inclusive contra altas personalidades do mundo político, econômico e social. Inevitavelmente, caberá ao Poder Judiciário moderar esses conflitos e assegurar a pacificação social. Para tanto, deve julgar as questões que lhe chegam de forma célere, eficiente, técnica, imparcial e com absoluto respeito à Constituição e às leis do país.
Mas a legitimidade e a autoridade do Poder Judiciário andam de mãos dadas com a prudência e, por isso, ele deve evitar os excessos e a tentação de se investir no papel de Poder “superior” aos demais poderes estatais ou de mais alta instância moral da sociedade. O Judiciário não pode querer se transformar no “superego da sociedade”, como já advertia a socióloga alemã Ingeborg Maus. Diante da inevitável e natural expansão do protagonismo judicial, o apelo das ruas e o clamor social devem ser catalisados pela Justiça como mecanismos de controle social, aos quais originariamente se devem subordinar todas as instituições de um Estado Democrático de Direito.
Dessa perspectiva, o Anuário da Justiça é um grande aliado da cidadania, mostrando ao Brasil e ao mundo o complexo funcionamento do Poder Judiciário e das demais instituições essenciais à Justiça. O Anuário tem contribuído, ademais, de forma relevante, para a transparência dos tribunais, com a divulgação de julgamentos e, especialmente, de estatísticas e análises de dados — uma tarefa árdua, porém, essencial para se compreender a atuação do Poder Judiciário Nacional.
Enfim, a sociedade deposita muita esperança no Poder Judiciário e anseia por resultados. Os cidadãos urgem por prestação jurisdicional eficiente, célere, coerente e previsível. A Justiça do século XXI precisa estar atenta a isso. Essa é a revolução pela qual precisa passar o Poder Judiciário.
Mas, como falava Shakespeare, “a transformação é uma porta que só se abre por dentro”. Eis a chave dessa transformação: eficiência, transparência e responsabilização! Cabe a cada um de nós, magistrados, com a contribuição imprescindível dos servidores do Poder Judiciário e dos que exercem as funções essenciais à Justiça, liderar esse processo de transformação, com planejamento, estratégia, gestão administrativa moderna, muito trabalho e dedicação. Tudo isso com transparência e sob o olhar crítico e vigilante da imprensa e da sociedade brasileira. Se o Poder Judiciário contemporâneo não pautar sua atuação por essas premissas, certamente, se divorciará da legitimidade e do reconhecimento público.